Entrevista

“A Orquestra de Macau pertence à população”

Lio Kuokman, maestro principal convidado da Orquestra de Macau
Falar com Lio Kuokman sobre as suas próximas actuações é dar a volta ao mundo em concertos: Paris, Dublin, Xangai… a agenda está tão repleta de viagens que o próprio maestro tem dificuldade em enumerá-las a todas. Mas agora, a somar à sua frenética carreira internacional, Lio tem em mãos um importante projecto em Macau, a cidade que o viu nascer: liderar a Orquestra de Macau. Isto para além de programar o Festival Internacional de Música

Texto Emanuel Graça
Fotografia Cheong Kam Ka

Foi nomeado maestro principal convidado da Orquestra de Macau no ano passado, mas só em 2023 foi possível ao público vê-lo nessa posição. De algum modo, o mesmo acontece com o seu papel como director de programação do Festival Internacional de Música de Macau: foi nomeado em 2020, mas as últimas edições do festival foram marcadas pela pandemia. Quão importante é 2023 para a implementação da sua estratégia em relação a estes dois projectos?

Em relação ao Festival Internacional de Música, fui nomeado durante a COVID-19, num período muito difícil para o festival: sendo um certame internacional, precisamos de ter artistas estrangeiros, mas todos sabemos que, durante a pandemia, era quase impossível viajar. Quanto à orquestra, fui nomeado no ano passado, também ainda durante a COVID-19, no seguimento da saída da orquestra da alçada directa do Governo e da sua constituição enquanto empresa. O que estávamos a fazer inicialmente era levar a cabo o nosso planeamento como se a pandemia não existisse e, depois, revisitávamos o que tínhamos planeado em função da situação: como as fronteiras na altura ainda não tinham aberto, tínhamos de cancelar ou alterar os programas. Em Fevereiro, tive finalmente o meu primeiro concerto com a orquestra enquanto maestro principal convidado: fiquei muito feliz por poder estar de volta. Em relação ao Festival Internacional de Música, vamos ter um certame muito excitante em Outubro, com muitos artistas internacionais. Vai ser uma grande celebração, agora que a pandemia acabou.

O Festival Internacional de Música e a Orquestra de Macau são dois projectos que o motivam? Face à sua ampla experiência no exterior, é também uma forma de retribuir à cidade onde deu os primeiros passos para a música?

Completamente. A Orquestra de Macau foi a primeira orquestra a que assisti ao vivo. Na altura, não existiam muitos eventos musicais na cidade. Recordo-me que a orquestra era maioritariamente composta por portugueses, assim como o público. Eu e a minha mãe, enquanto asiáticos, éramos uma minoria. Quanto ao Festival Internacional de Música, foi onde tive a primeira oportunidade de assistir a actuações de artistas internacionais. Tudo isto é realmente uma importante memória de infância para mim. Hoje em dia, estou constantemente a viajar, entre a Europa e a Ásia, mas Macau é a minha cidade e tento aproveitar qualquer possibilidade de regressar, de voltar às minhas origens.

De certa forma, é o exemplo perfeito de um “talento de Macau” que regressa para retribuir à comunidade. Isso é algo que pesa?

Não sinto qualquer peso. É uma alegria regressar, poder ver os meus antigos colegas de escola nos concertos, acompanhados pelos filhos. E é uma alegria porque vejo, cada vez mais, jovens entre o público dos concertos e que me abordam depois. Não sinto qualquer pressão, apenas alegria.

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Referiu há pouco a mudança da Orquestra de Macau para o formato de empresa (ainda que detida integralmente pelo Governo). Que alterações é que isso traz, do ponto de vista da programação?

Alterações ao nível da visão da orquestra. Na próxima temporada, isso será mais claro, já sem o impacto da COVID-19. A Orquestra de Macau pertence à população de Macau. Isso significa que a orquestra deve ter programas para aqueles que gostam de música clássica de qualidade; mas, também para aqueles que nunca viram uma orquestra ao vivo, deve haver um programa que seja capaz de lhes interessar. Para mim, a Orquestra de Macau deve oferecer um espaço que todos possam frequentar para apreciar música. Por isso, vou tentar que haja mais variedade na programação, de forma a incluir programas para audiências mais jovens e para famílias, mas também procurar apresentar concertos que, pela sua qualidade, possam atrair pessoas do exterior.

Apesar do regresso a Macau, a sua carreira internacional continua bastante activa.

A minha carreira internacional começou realmente no ano em que consegui ser nomeado maestro-assistente da Orquestra de Filadélfia, que está entre as melhores nos Estados Unidos, tendo sido o primeiro maestro chinês nessa posição. Isso realmente foi um reconhecimento das minhas capacidades e foi também o início da minha carreira nos Estados Unidos. Quando venci o Concurso Internacional de Regência Svetlanov, em França, isso lançou a minha carreira na Europa: a partir desse momento, comecei a ser convidado para vários espectáculos com orquestras europeias. Além disso, também tenho actuações na Coreia do Sul e no Japão e, claro, no Interior da China. Até ao surgimento da COVID-19, foram anos muito intensos. Mas, de repente, quase tudo parou. Uma das excepções foi Hong Kong: começou então a minha relação com a Orquestra Filarmónica de Hong Kong, para a qual fui nomeado maestro-residente em 2020. Com o fim da pandemia, as minhas viagens recomeçaram.


“Adoro tocar música, mas adoro a sensação de atingir algo em grupo. E isso é o que uma orquestra permite”

LIO KUOKMAN
MAESTRO PRINCIPAL CONVIDADO DA ORQUESTRA DE MACAU

Depois de tudo o que já atingiu na sua carreira, o que falta conquistar?

Para ser sincero, estou, acima de tudo, muito grato por tudo aquilo que me aconteceu: passar de um rapazinho de Macau que foi para Hong Kong, depois para Nova Iorque, depois para Filadélfia… valorizo realmente cada momento da minha carreira. Claro, tenho muitos sonhos: algo que gostaria que acontecesse é que, um dia, uma orquestra asiática fosse reconhecida como estando ao nível das melhores da Europa ou dos Estados Unidos – onde, aliás, já há muitos músicos asiáticos. É um sonho, mas é algo que, acredito, vai acontecer em breve. Por exemplo, a Orquestra Filarmónica de Hong Kong venceu a edição de 2019 do prestigiado galardão “Orquestra do Ano”, atribuído pela revista “Gramophone” e pelo qual competem as melhores orquestras do mundo. Ou seja, acredito que há muito futuro para a música clássica na Ásia, porque há uma fome enorme em aprender esta forma de arte.

Porquê a escolha pela posição de maestro?

Adoro tocar música, mas adoro a sensação de atingir algo em grupo. E isso é o que uma orquestra permite. O simples facto de, numa grande orquestra, mais de 100 músicos serem capazes de, em primeiro lugar, atingir um objectivo comum, que é o de tocarem em conjunto, é logo algo muito difícil. Individualmente, cada um deles é um artista, mas, depois, é impressionante a forma como são capazes de se unir, colocar as divergências de lado e tocar em conjunto, mantendo um diálogo musical. Para mim, uma das minhas maiores alegrias é o prazer de estar em palco a actuar em conjunto. Enquanto pianista, o percurso de cinco segundos desde os bastidores até ao centro do palco, onde estava o piano, parecia interminável. Sente-se a solidão, não vemos nada para lá do palco. Claro, temos toda a atenção sobre nós, o que é magnífico. Mas, pessoalmente, prefiro trabalhar em grupo com os músicos de uma orquestra e atingirmos algo em conjunto.

Qual o concerto mais memorável que deu?

Foram tantos, muitos mesmo. Na verdade, a actuação mais memorável é sempre a da semana anterior: cada espectáculo envolve muita preparação e ensaios e, chegado o momento do concerto, é de vida ou morte. Quando estamos em palco, suamos e colocamos todas as nossas emoções naquilo que estamos a fazer durante aquelas duas horas. Por isso, de certa forma, é o concerto mais memorável. Mas depois, na semana seguinte, recomeça tudo de novo. Dito isto, claro, há algumas actuações que são especiais. Um momento especial foi quando fui convidado para actuar no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, na Rússia. Quando entrei na sala de espectáculos, disseram-me: “Maestro, este pódio foi utilizado por Tchaikovsky”. Foi como se conseguisse chegar até ele: claro que conheço o trabalho de Tchaikovsky, mas ele esteve naquele local. De certa forma, para um músico, aquele é um espaço sagrado.

Começou a sua formação musical em Macau e, alguns anos depois, estava em Nova Iorque, na Juilliard School, uma das mais prestigiadas – e exigentes – instituições de ensino à escala mundial. Como foi esse tempo?

Quando um rapaz de Macau vai para Hong Kong e depois para Nova Iorque, cada passo é um abrir de olhos. Quando fui para Nova Iorque – da mesma forma do que quando fui para Hong Kong –, o que realmente queria era ver mais artistas e concertos ao vivo. Claro que, como músicos, temos as nossas ideias, mas é muito importante ver outras coisas. Comparo sempre a profissão de músico com a de chefe de cozinha: tem tudo a ver com experimentar coisas novas. Um chefe deve provar diferentes ingredientes para educar o seu palato; para um músico, os ouvidos são a sua forma de experimentar coisas novas. Nesse sentido, Nova Iorque serviu para alargar os meus horizontes. Claro, é uma cidade grande e não é fácil sobreviver: é fácil perdermo-nos, a diferentes níveis. Mas gostei do meu tempo lá.

O mundo da música clássica reúne grandes talentos, mas igualmente grandes egos. Ser maestro é também ser um gestor de pessoas?

Qualquer músico é um ser humano. Numa orquestra, todos têm uma história similar: aprenderam música durante muitos anos, desde crianças. Todos têm as suas próprias concepções ao nível de como querem tocar. É difícil de gerir? Eu diria que é uma questão de comunicação. Como músicos de orquestra, não estamos a criar algo completamente novo, mas sim a tentar descobrir a mensagem que o compositor de uma determinada peça queria apresentar ao público. De certa forma, estamos no meio, tentando decodificar a partitura e dar-lhe vida. E é desta forma que acabamos por encontrar uma base de entendimento entre todos.

Que conselho daria aos jovens que hoje vão ver a Orquestra de Macau e ambicionam seguir o seu exemplo?

Sejam curiosos. Quando olho para trás, a curiosidade foi algo que sempre me moveu. Não havia muitos concertos em Macau e, por isso, sempre que havia alguma performance, mesmo que fossem apenas estudantes, eu ia. Fosse um solista de violino, um quarteto de cordas, canto… sempre que havia algo, eu estava lá. Actualmente, vejo jovens que aprendem piano e que apenas vão a concertos de piano. Música é música: é importante ver outras coisas, que nos possam inspirar, abrir a nossa mente.