Dezenas de horas de filmagens, tantas outras de edição e, acima de tudo, muita paixão e dedicação. Três jovens realizadores locais falam à Revista Macau sobre os desafios por detrás da câmara e os passos necessários para desenvolver a sétima arte no território
Texto Cherry Chan
Fotografia Cheong Kam Ka
Mostrar um mundo distópico ou contar vivências pessoais através de filmes é mais do que apenas um exercício criativo. O cinema representa arte, história, cultura e ajuda a difundir a mensagem que o realizador quer passar ao público, revestindo-se de um papel social de inquestionável importância, referem os cineastas locais Hong Heng Fai, Chan Ngai Lei e Lam Kin Kuan.
À conversa com a Revista Macau, os três realizadores sublinham que a indústria cinematográfica em Macau está ainda a dar os primeiros passos e que o caminho terá de ser trilhado na superação de vários obstáculos. Mas as dificuldades, realçam, não irão deter o desenvolvimento de um sector que tem estado em franca expansão nos últimos anos e que apresenta já alguns casos de êxito, quer na língua chinesa, quer nas línguas portuguesa e inglesa.
Mas quem são estes jovens cineastas de Macau e como vêem o estado actual da indústria?
Hong Heng Fai está envolvido no mundo do cinema há mais de dez anos. Em 2022, a sua longa-metragem de estreia tornou-se no primeiro filme de Macau a ser nomeado para os prémios “Cavalo de Ouro” em Taiwan, na categoria de “Melhor Novo Realizador”. O filme “Kissing the Ground You Walked On” foi também exibido no início deste ano no Festival Internacional de Cinema de Roterdão, um dos maiores festivais do cinema europeu.
“Ser realizador é um papel que desempenhamos, um cargo, mas ainda não é uma carreira nem uma ocupação a tempo inteiro”
HONG HENG FAI
Chan Nga Lei foi recentemente agraciada com a Medalha de Mérito Cultural pelo Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Realizadora e argumentista, as suas obras ganharam vários prémios ao longo de uma década. O filme “Madalena”, integralmente filmado em Macau e estreado em 2021, recebeu o prémio de “Melhor Filme de Macau, China” na 33.ª edição dos Prémios Huading, uma das cerimónias mais influentes do sector na China.
Com um mestrado em Cinema Documental pela conceituada Goldsmiths College, da Universidade de Londres, Lam Kin Kuan divide o seu tempo entre a realização de filmes, a curadoria de festivais de cinema e as responsabilidades de professor. O realizador começou o percurso cinematográfico no mundo dos documentários e fez a sua primeira curta-metragem, “Illegalist”, em 2017.
Lam Kin Kuan foi também um dos fundadores do Festival Internacional de Documentários de Macau, em 2016, para que o público local pudesse ter acesso a documentários com uma linguagem cinematográfica única que abordasse questões profundas.
Indústria com futuro
Comum ao percurso dos três realizadores é o facto de terem começado a carreira na sétima arte através de curtas-metragens, um cenário que tem vindo a evoluir, muito devido aos apoios providenciados pelo Governo de Macau.
O “Plano de Apoio à Produção Cinematográfica de Longas Metragens”, o “Rush: 48 Horas a Abrir” e o “Macau – O Poder da Imagem” são programas de apoio lançados pelas autoridades locais que ajudam jovens cineastas a produzirem o seu primeiro filme.
“Quando tinha 24 anos, procurei apoios financeiros para realizar um filme e foi uma tarefa muito difícil”, realça Chan Nga Lei, acrescentando que se estes programas governamentais estivessem disponíveis naquela altura, “teria sido muito mais fácil” lidar com todo o processo. A viabilização financeira de qualquer projecto cinematográfico continua a ser o “maior desafio” para quem quer realizar filmes em Macau, sublinha.
Uma opinião que encontra eco nas vozes dos outros dois realizadores. Hong Heng Fai explica que os “novos realizadores precisam de financiamento para fazer o primeiro filme, que será o cartão de visita quando se apresentam”. Com estes programas de apoio, defende, “é um prazer ser realizador em Macau”.
Olhando para o futuro, Lam Kin Kuan considera que a concretização de um projecto “dá renovada esperança aos realizadores”, pois uma maior facilidade em obter financiamento “dá confiança para continuar a filmar”.
Mas o facto de a indústria cinematográfica de Macau ser ainda muito jovem também traz vantagens, destacam os cineastas. “Podemos tentar novos modelos e as mais variadas formas de fazer filmes”, sem estar ancorados aos formatos tradicionais, explica Chan Nga Lei.
No actual contexto, Macau pode começar a explorar cada vez mais a produção de filmes de índole mais comercial, defende a realizadora. “À medida que há mais investidores a acreditar que nós podemos desenvolver a indústria cinematográfica local, haverá maior disponibilidade para investir, e o sector terá uma base mais sustentável para crescer”, acrescenta.
Lam Kin Kuan partilha da mesma opinião. “Não é normal que a cultura cinematográfica seja ainda tão inócua como é em Macau, mas acredito que isto significa que a indústria tem um grande potencial de crescimento e que vale a pena tentar ver até onde a podemos desenvolver.”
O interesse do público por filmes rodados em Macau é uma realidade, não apenas no território, mas também além-fronteiras.
Além dos palcos internacionais, a longa-metragem de Hong Heng Fai estreou em Hong Kong, em Abril, na 47.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Hong Kong, e também em Macau.
Mas há também outros casos de sucesso na filmografia de Macau, como o filme “Hotel Império”, do realizador Ivo M. Ferreira, uma longa-metragem que foi integralmente rodada em Macau, com um elenco internacional. O filme foi exibido não só no território, mas também em festivais no Interior da China, no Brasil e em Portugal, antes de chegar às salas de cinema portuguesas no início de 2019.
Também Maxim Bessmertny faz parte dos realizadores com vários títulos estreados em Macau, maioritariamente curtas, como “Dirty Laundry” (2019) e “The Handover” (2020). O realizador está agora a trabalhar na sua primeira longa-metragem, “The Violin Case”, cujas filmagens percorrem vários locais de Macau.
Viver para os filmes
Em Macau, porém, a maior parte das pessoas envolvidas em projectos cinematográficos fá-lo mais por paixão do que por sustento. Não conseguem ainda viver dos filmes, apesar de dedicarem grande parte da vida à sua criação.
É ainda comum a percepção de que a produção de um filme é apenas um processo criativo e não uma carreira profissional como tantas outras, lamentam os realizadores.
Esta visão ainda restritiva da indústria resulta numa dificuldade acrescida para que “as pessoas ligadas ao cinema” – como se descrevem – obtenham os apoios necessários para se poderem concentrar exclusivamente na produção de filmes.
“Penso que o cinema é também uma questão de marketing, temos de saber como atrair os investidores”
CHAN NGA LEI
Mesmo os realizadores locais com filmes exibidos em palcos internacionais não se assumem como cineastas. “Ser realizador é um papel que desempenhamos, um cargo, mas ainda não é uma carreira nem uma ocupação a tempo inteiro”, sublinha Hong Heng Fai.
Chan Nga Lei revela que a sua “carreira de eleição” seria como argumentista. “Há cerca de dez anos disse a mim mesma que gostaria de ter uma carreira como realizadora. Mas, mais tarde, especialmente depois de ser mãe, tive de ter outros aspectos em consideração, algo que acabou por me distanciar do papel de realizadora, mas que me levou à escrita de guiões para filmes.”
Já Lam Kin Kuan divide a sua paixão por várias tarefas ligadas ao mundo do cinema. Professor na área da produção de filmes, é também o principal dinamizador do evento local dedicado a documentários, curador de outros eventos cinematográficos, para além de passar várias horas envolvido na realização e edição de filmes.
“É importante que me possa dedicar a várias funções relacionadas com filmes, uma área na qual ainda existem vários desafios em Macau. Tenho de me desdobrar em todas estas tarefas para apoiar o meu trabalho como realizador”, diz Lam Kin Kuan.
Uma das dificuldades é quando a função do realizador abrange todos os estágios da produção de um filme, desde a pré-produção até à edição final. Em Macau, conta Chan Nga Lei, é comum a necessidade de se assumir os papéis de argumentista, realizador e produtor. “Isto impede que nos possamos concentrar exclusivamente na produção propriamente dita”, refere.
A solução, sugerem os três realizadores, passa por industrializar a produção cinematográfica, para que haja equipas multidisciplinares e as pessoas se possam concentrar em diferentes tarefas.
“Enquanto se encarar a produção de um filme meramente como um processo criativo, será difícil alterar o status-quo”, comenta Lam Kin Kuan. “O que devemos fazer é pensar em modelos para transformar este processo numa indústria, na qual possamos ter uma carreira.”
Formar talentos
Várias instituições académicas de Macau oferecem actualmente licenciaturas nas áreas do cinema e audiovisual, existindo também diversas associações locais que disponibilizam cursos de formação. Esta oferta, referem os realizadores, é importante para formar talentos locais para o sector. Além disso, há muitos jovens de Macau que vão estudar cinema para o estrangeiro e que acabam por voltar para o território.
Mas o que mais pode ser feito para reforçar a formação de profissionais qualificados para o sector? O melhor modo, defende Hong Heng Fai, é encorajar a formação “através da prática”, envolvendo os jovens no maior número possível de projectos.
Lam Kin Kuan refere que alguns dos planos de apoio do Governo de Macau, como o Plano de Financiamento de Estudos nas Áreas das Artes e Cultura, são uma base sólida para o futuro profissional. “Eu sou um exemplo de como este plano pode ajudar a formar talentos”, diz, realçando que beneficiou do programa para complementar a formação em Londres, onde aprendeu a promover filmes e até a organizar festivais de cinema.
“Acredito que a indústria local tem um grande potencial e que vale a pena tentar ver até onde a podemos desenvolver”
LAM KIN KUAN
Por seu turno, Chan Nga Lei lembra que o cinema não é somente arte ou cultura, mas é também um negócio. “Já participei anteriormente em alguns projectos cinematográficos, incluindo promoções realizadas fora de Macau, que são oportunidades para aprendermos a promover as nossas propostas”, salienta.
“Penso que o cinema é também uma questão de marketing, temos de saber como atrair os investidores”, refere a realizadora, acrescentando que esta é uma área que ainda tem de ser trabalhada em Macau.
Chan Nga Lei rebate a afirmação de que um filme de Macau tem de ser inteiramente produzido na cidade. “Antes achava que sim, que toda a equipa tinha de ser composta por pessoas de Macau e que o filme tinha de ser filmado cá”, conta. Porém, salienta, as equipas actualmente podem ser mais diversas e os projectos devem explorar outros mercados, sem perder a sua identidade. “Os filmes que faço continuam a ser filmes de Macau.”
Uma coisa é certa, garantem os três realizadores: o desenvolvimento do cinema em Macau vai ainda nas primeiras cenas, mas os esforços que estão a ser feitos actualmente alimentam a esperança de que a indústria local se tornará mais madura e sustentável no futuro.