Há cinco anos que o Colégio Diocesano de São José N.º 5 acolhe um projecto inclusivo de educação bilingue, em que a linguagem oral convive de mãos dadas com a linguagem gestual. Crianças com deficiências auditivas e meninos ouvintes sentam-se lado a lado na mesma sala de aula, para ouvir – e ver – aquilo que os professores lhes têm para ensinar. No final, todos saem a ganhar, garantem os responsáveis do estabelecimento de ensino
Texto Cherry Chan
É mais uma manhã normal de aulas no Colégio Diocesano de São José N.º 5, de língua veicular chinesa. Numa das salas, a pequena Lam Hei In faz uma apresentação oral ao resto dos colegas. No entanto, há duas pequenas diferenças em relação à maioria das outras turmas da escola: a acompanhar a apresentação, através de linguagem gestual, está uma educadora; além disso, a aluna – bem como uma mão cheia de colegas – possui uma deficiência auditiva profunda.
Esta é uma prática rotineira para os estudantes que integram as turmas inclusivas do colégio, localizado na zona norte da península de Macau. Desde o ano académico de 2018/2019 que a linguagem gestual se tornou presença habitual na escola, com o lançamento da primeira turma inclusiva bilingue em linguagem oral e gestual, na altura envolvendo um grupo de alunos do primeiro ano do ensino infantil (vulgarmente conhecido como “K1”).
Actualmente, há um total de cinco turmas do género no colégio, uma por cada ano de escolaridade, até ao segundo ano do ensino primário (vulgo “P2”). Estas incluem estudantes com dificuldades auditivas, que aprendem em conjunto com alunos ouvintes, isto é, que não possuem qualquer problema do foro auditivo.
O programa pretende garantir a inclusão em meio escolar regular de estudantes com deficiências auditivas – para isso, todos os alunos das turmas inclusivas aprendem linguagem gestual, independentemente das suas capacidades auditivas. Combater o preconceito é também um objectivo.
Cada turma é acompanhada por um professor ouvinte, a que se junta um educador surdo, fluente em linguagem gestual e com formação específica no campo da educação. O programa – que também envolve o Infantário de Nossa Senhora do Carmo, igualmente sob a alçada da Diocese de Macau – visa promover, a partir de uma idade precoce, o desenvolvimento educacional de crianças com deficiências auditivas e estimular os seus processos de aprendizagem. É fruto de uma parceria com o Centro de Linguística Gestual e Estudos Surdos da Universidade Chinesa de Hong Kong, entidade com mais de 15 anos de trabalho realizado na área do bilinguismo inclusivo, com participação em projectos similares na região vizinha.
Um raio de esperança
Segundo os padrões normais de desenvolvimento de um bebé, por volta dos sete meses de idade, a criança deve ser capaz de usar a sua voz para se relacionar com o ambiente envolvente, balbuciando. “Até ao oitavo mês isso não aconteceu e comecei a pensar que a situação da Hei In não era normal, pelo que consultei os médicos. Mais tarde, confirmou-se que ela era possuidora de deficiência auditiva profunda”, conta Lam Kit Wa, pai de Lam Hei In, a menina da apresentação. A criança integra actualmente a turma de nível “P2” que faz parte do programa de ensino inclusivo bilingue do Colégio Diocesano de São José N.º 5.
O pai recorda que, após ter sido detectado o problema auditivo da filha, não foi fácil encontrar recursos ou informação adequados sobre o tema. Quando chegou a altura da pequena Hei In ingressar no ensino infantil, a menina acabou por enfrentar dificuldades, apesar de ter a ajuda de um aparelho auditivo.
“A Hei In repetiu o primeiro ano do jardim de infância quando o esquema de ensino bilingue foi lançado” pelo colégio, explica Lam Kit Wa. “Acho que foi bom para ela porque pôde aprender de forma mais apropriada, com um melhor progresso.”
Lam Kit Wa destaca que tem sido emocionante, enquanto progenitor, ver a forma como a filha tem sido capaz de melhorar o seu desempenho académico e adaptar-se a uma vida escolar normal. A menina conseguiu contornar as suas dificuldades ao nível da expressão oral e fala agora chinês de forma inteligível. Essa é uma das mais valias do programa no que toca aos estudantes com problemas de audição: associar o ensino da linguagem oral à aprendizagem da linguagem gestual, de forma simultânea e desde tenra idade. De acordo com vários estudos científicos, esse tipo de modelo educativo estimula o desempenho destas crianças em ambas as vertentes e promove o seu desenvolvimento cerebral.
Tong Lok Tong é outra aluna do nível “P2”, portadora de deficiência auditiva muito grave. O pai, Tong Wai Man, explica como é que a família detectou o problema: “Achámos muito estranho que a Lok Tong não tivesse qualquer reacção ao som de panchões a rebentar, pelo que começámos a fazer exames e avaliações.”
O progenitor admite que o diagnóstico que receberam o deixou inicialmente angustiado. “Estava com muita preocupação: ‘a Lok Tong não consegue ouvir nada, como é que será a sua vida no futuro?’”, recorda.
O projecto de ensino inclusivo bilingue do colégio marcou uma mudança. “Gradualmente, ganhámos confiança, porque ela está a aprender linguagem gestual e pode frequentar a escola como todas as outras crianças”, afirma o pai. “Acredito que, no futuro, pode ter uma vida brilhante”, acrescenta. E há bons exemplos a seguir: o famoso inventor norte-americano Thomas Edison – criador da lâmpada incandescente – sofria de problemas auditivos graves desde a juventude, algo que, dizia, o ajudava a concentrar. Já em Macau, Hoi Long, nome cimeiro do atletismo local, é portadora de deficiência auditiva: além das muitas vitórias em corridas de longa distância e provas de triatlo, está a concluir um doutoramento em desporto.
Visão de longo prazo
Inicialmente desenvolvido enquanto projecto-piloto, com duração até 2021, o programa de educação bilingue em linguagem oral e gestual do Colégio Diocesano de São José N.º 5 visava acompanhar os alunos envolvidos durante os três anos de escolaridade do ensino infantil, isto é, dos níveis “K1” ao “K3”. “Decidimos alargá-lo de forma gradual, porque temos como visão apoiar estes estudantes de forma a que possam concluir os 15 anos do ensino não superior, possivelmente até chegarem ao ensino universitário”, explica o director da escola, Wong Kin Man. “O primeiro lote de alunos do programa está agora no segundo ano do ensino primário.”
Na altura do lançamento do programa em 2018, foram aceites cinco crianças com diferentes níveis de deficiência auditiva. Actualmente, a escola possui 26 estudantes com algum tipo de problema auditivo.
Wong Kin Man recorda que, quando o projecto arrancou, havia dúvidas entre os pais e encarregados de educação – particularmente das crianças ouvintes integradas na turma inclusiva – sobre o impacto que o programa poderia ter ao nível dos conteúdos ensinados e do progresso académico dos alunos. Existiam também receios sobre como poderia decorrer o relacionamento entre os estudantes com problemas auditivos e os colegas ouvintes.
“Em cada ano académico, realizamos uma reunião para explicar a situação e responder às dúvidas dos pais”, explica o director do colégio. “Também mostramos resultados de estudos sobre este tipo de ensino noutros países ou regiões, para que os pais compreendam as vantagens da iniciativa.” De acordo com o director, não são só os estudantes com deficiências auditivas que beneficiam: todos os alunos saem a ganhar, melhorando as suas competências linguísticas e sociais.
A promoção do bilinguismo envolvendo linguagem oral e gestual não se esgota nas salas de aula das turmas que fazem parte do projecto. “Temos actividades extracurriculares em que os estudantes com problemas auditivos interagem não apenas com colegas da mesma turma, mas com alunos de outras turmas”, afirma Wong Kin Man. “Mesmo quando não há um educador de linguagem gestual por perto, estes estudantes integram-se muito bem.”
Passo a passo, o colégio está a construir um ambiente bilingue abrangendo toda a escola. Há várias iniciativas abertas ao resto da comunidade escolar que visam promover a inclusão das pessoas com deficiências auditivas: por exemplo, é organizada anualmente uma Semana Promocional da Cultura Surda e Linguagem Gestual.
Pao Sio Kun, subdirectora do estabelecimento de ensino, enfatiza que, ao longo dos últimos cinco anos, a linguagem gestual tornou-se algo natural no seio do colégio. “Muito do nosso pessoal docente e não docente, bem como alunos que não estão nas turmas de bilinguismo gestual, aprenderam já alguma linguagem gestual”, diz. “Espero que, no futuro, todo o nosso pessoal e estudantes sejam capazes de comunicar usando linguagem gestual básica.”
Antes de avançar com o programa, os dirigentes do colégio realizaram visitas de estudo a estabelecimentos de ensino com turmas inclusivas bilingues e analisaram diversos relatórios sobre este tipo de ensino. O “know-how” nesta área do Centro de Linguística Gestual e Estudos Surdos da Universidade Chinesa de Hong Kong foi indispensável para a implementação da iniciativa – o centro continua a prestar apoio técnico especializado à escola.
Um dos maiores desafios em lançar o programa consistiu no recrutamento de educadores surdos. “Precisamos que os educadores de linguagem gestual sejam realmente surdos, porque é muito natural que, quando não conseguimos explicar o que queremos usando linguagem gestual, recorramos à fala”, refere Pao Sio Kun. “Os educadores surdos têm uma melhor noção sobre os métodos apropriados nestas situações para ensinar os estudantes com deficiências auditivas.”
A subdirectora do colégio reconhece que a implementação do programa tem sido uma tarefa complexa: é necessário assegurar uma boa comunicação entre os professores e os educadores de linguagem gestual, entre o corpo docente e os pais e encarregados de educação, e entre os vários parceiros envolvidos no projecto. “O processo é difícil, mas é uma forma de educação muito relevante”, sublinha. “Um resultado inesperado do esquema é que, entre a comunidade surda, as pessoas de repente descobriram que existem muitas oportunidades para elas, incluindo tornar-se num educador surdo”, avança Pao Sio Kun.
Abraçar a diversidade
Chio Weng Cheng é mãe de dois filhos ouvintes com experiência nas turmas inclusivas bilingues do Colégio Diocesano de São José N.º 5. O filho mais velho integrou o segundo lote de estudantes que participaram no projecto, tendo realizado todo o ensino infantil integrado neste tipo de ensino – actualmente, é aluno do primeiro ano do ensino primário na secção inglesa do colégio. Já a filha mais nova ingressou este ano na turma inclusiva bilingue do nível “K1”.
Segundo Chio Weng Cheng, o ensino inclusivo bilingue teve um efeito positivo no desenvolvimento do filho mais velho, tornando-o mais atencioso em relação aos outros – o menino ainda mantém contacto com os antigos colegas. A progenitora admite que, como mãe, também se preocupou inicialmente com a forma como poderia decorrer a comunicação entre os alunos ouvintes e aqueles com problemas auditivos, bem como se esta forma de ensino teria impacto ao nível da avaliação dos estudantes. “Mas, tanto do lado do meu filho como da minha filha, não há qualquer problema a assinalar em relação a isso.”
Com base nos seus quatro anos de envolvimento no projecto, Chio Weng Cheng nota as melhorias que têm vindo a ser introduzidas pela escola ao longo dos anos, para ampliar o apoio disponibilizado a pais e alunos. Por exemplo, o colégio organiza regularmente workshops de linguagem gestual destinados aos encarregados de educação.
Uma das colegas da filha de Chio Weng Cheng na turma inclusiva bilingue de “K1” é Cheong Cheng Cheng. A sua mãe, Cheong Pou Wa, diz que a menina costumava chorar quase todos os dias quando estava na creche, mas agora está feliz por ir para a escola. “Estamos muito satisfeitos por vê-la a dar-se bem com outras crianças”, afirma.
Cheong Pou Wa aprecia a forma como a escola procura envolver os pais na educação inclusiva bilingue. A sua expectativa é que sejam alargadas as oportunidades para que as famílias ouvintes possam aprofundar os seus conhecimentos sobre linguagem gestual e sobre a comunidade surda.
Progresso passo a passo
Professora da turma do nível “K1” do ensino inclusivo bilingue, Wong In San pensava inicialmente que, durante a aula, o educador de linguagem gestual teria apenas o papel de tradutor. “Na realidade, ambos funcionamos como professores, trabalhamos juntos”, explica.
Outra das coisas que a docente percebeu com o projecto é que “aprender linguagem gestual desde tenra idade é benéfico para as crianças na aprendizagem de outras línguas”. E, com base na sua experiência, diz que, “no que toca a resultados académicos, não há diferença entre os alunos ouvintes e aqueles com deficiências auditivas” envolvidos nas turmas bilingues.
Wong In San revela que, ao trabalhar com crianças muito pequenas – os estudantes do nível “K1” têm entre três e quatro anos –, o mais importante é compreender as necessidades específicas de cada aluno. E isso não é diferente no ensino inclusivo bilingue: “alguns estudantes usam óculos, outros usam aparelhos auditivos”, relativiza. Nesta faixa etária, o essencial mesmo é promover o desenvolvimento da empatia e tolerância mútuas, considera.
Lei Wan é responsável pela orientação do programa de ensino inclusivo bilingue do Colégio Diocesano de São José N.º 5, cooperando com os professores ouvintes e os educadores surdos, nomeadamente em relação às diferentes estratégias de ensino. Antes disso, trabalhou durante vários anos como intérprete de linguagem gestual.
“A principal dificuldade para mim é que anteriormente ensinava adultos, mas agora tenho que ter em consideração a forma como um adulto deve comunicar com uma criança”, reconhece. “Não é fácil para um adulto explicar um conceito complexo a uma criança ouvinte, e o mesmo acontece com crianças com dificuldades auditivas.”
Lei Wan sublinha que o projecto tem vindo a ser aperfeiçoado ano após ano, com base no conhecimento acumulado. Também ela recorda que, inicialmente, existiam dúvidas por parte dos pais e encarregados de educação dos alunos ouvintes quanto ao potencial impacto do ensino bilingue no progresso académico das crianças. “O programa tem vindo a obter, de forma gradual, reconhecimento público e agora há menos pais com este tipo de dúvidas”, afirma.
Para o sucesso do projecto, tem sido essencial a cooperação entre professores ouvintes e educadores surdos, considera Lei Wan. É preciso assegurar que ambos os docentes estão familiarizados com os conteúdos a ensinar, e que colaboram para que a aula decorra de forma fluída quer em linguagem oral, quer em linguagem gestual. Por exemplo, a escolha e disposição dos materiais didácticos utilizados é relevante, até porque o uso de acessórios visuais é um importante auxiliar de aprendizagem para alunos com problemas auditivos. “É necessário mais tempo para a preparação das aulas”, sintetiza Lei Wan. Apesar dos desafios, a responsável afiança ter grande esperança de ver o primeiro lote de estudantes com dificuldades auditivas do programa atingir o ensino superior.
O director Wong Kin Man também está convicto dos benefícios da iniciativa. O responsável espera que, através da educação que recebem, os alunos com problemas auditivos possam desenvolver de forma plena as suas capacidades. Além disso, tem a expectativa de que o programa lhes ofereça um sentimento de pertença. “Haverá uma rede entre estes estudantes, que pode funcionar como um apoio social”, afirma. “Quando, no futuro, obtiverem sucesso e outras conquistas, poderão também retribuir à sociedade.”