Poucos domínios levaram tão longe o nome de Macau como o desporto. Então presidente do Instituto do Desporto, Manuel Silvério foi um dos arquitectos de um processo que dotou Macau de infra-estruturas de vanguarda e trouxe à cidade os principais nomes do movimento olímpico internacional
Texto Marco Carvalho
Fotografia Cheong Kam Ka
O gosto pelo desporto emergiu cedo e foi uma escapatória para uma infância repleta de desafios. Manuel Silvério experimentou várias modalidades, representou Macau como atleta e chamou a si a responsabilidade pelo desporto local, dirigindo o Instituto do Desporto e o Comité Organizador da edição inaugural dos Jogos da Lusofonia. Uma façanha extraordinária para quem cresceu num bairro que a vertigem do tempo se encarregou de varrer da história.
Três ruas paralelas, grosseiramente empedradas, ladeadas por 14 blocos de edifícios espartanos de dois pisos, um naco de terra e de miséria onde se amalgamavam três mil almas de todos os credos, de diferentes línguas e de incontáveis origens. Do bairro onde Manuel Silvério nasceu e onde viveu até aos 21 anos, pouco mais resta do que memórias.
Politicamente inquinado, o nome com que foi baptizado – “28 de Maio” – eclipsou-se no turbilhão da história e as moradias, construídas originalmente para acolher militares e as suas famílias, há muito sucumbiram à vertigem urbanística que transformou a zona norte de Macau.
“O bairro tinha três ruas. A rua na qual eu vivia era a Rua do General Ivens Ferraz. Viviam lá cerca de três mil pessoas, entre portugueses, macaenses e chineses, provenientes dos mais diversos quadrantes. Também lá viviam estrangeiros, principalmente russos e japoneses. Havia ali de tudo, de simples funcionários públicos, a operários e refugiados”, recorda o antigo presidente do Instituto do Desporto de Macau.
Riscado do mapa, o Bairro 28 de Maio tem hoje uma nova alma e uma nova roupagem e sobrevive apenas na designação pela qual se tornou desde cedo conhecido entre a comunidade chinesa: “Foi sempre conhecido como Fai Chi Kei”. E Fai Chi Kei porquê? Porque os 14 blocos de edifícios estavam alinhados em duas filas, que faziam lembrar os “pauzinhos”, os “fai chis”, explica Manuel Silvério.
“Falar do meu bairro é falar das minhas origens, das minhas primeiras influências. Foram as vivências neste bairro que me deram raízes e referências, que me deram garras para lutar na vida e para nunca desistir dos meus sonhos”, sustenta Manuel Silvério.
Mas falar do Bairro 28 de Maio, reconhece, é falar também de um território periférico e marginal, das casas sem água canalizada, da pobreza, e, no seu caso, da maior das tragédias na flor de infância.
“O meu pai morreu em casa, no Bairro 28 de Maio, quando eu tinha sete anos”, sublinha. “Até à morte do meu pai, a minha família vivia numa casa de dois pisos, mas quando o meu pai morreu, retiraram-nos o piso superior.”
Viúva, com quatro filhos menores a seu cargo, a mãe de Manuel Silvério fez vários sacrifícios para assegurar a subsistência da família. Trocaram temporariamente o Fai Chi Kei pelo Lilau, o desamparo pela esperança: “Logo a seguir à morte do meu pai, fui colocado pela minha mãe durante um ou dois anos no Lilau, em casa de uma grande família. A família Castilho recebia na sua casa muitas crianças. Eles tomavam conta dessas crianças, alimentavam-nas, a troco do pagamento de uma compensação pecuniária”, revela o antigo dirigente.
“Foi no bairro do Lilau que comecei a aprender o ABC, com a professora Alice. Foi ali, quando vivi naquela zona, que aprendi as primeiras letras”, conta.
Breve, mas marcante, a passagem de Manuel Silvério, hoje com 70 anos, pela zona do Lilau terminou, em parte, graças a um expediente hoje inimaginável.
“A minha mãe explorava uma criação de suínos na Ilha Verde. Era a minha avó quem tomava conta dela. Tinham lá uma barraca e eram muitos os conterrâneos da minha mãe e da minha avó que ali criavam animais e cultivavam vegetais. Eu também ali passei algum tempo. A minha avó levava-me para lá. Na altura, isso era visto como algo um tanto ou quanto vergonhoso, sobretudo por parte da comunidade macaense”, sustenta.
Encravado numa pequena península na margem oeste da desembocadura do Rio das Pérolas, as zonas periféricas de Macau transformaram-se, com o alargamento da cidade, em zonas de cultivo. “Havia vários locais onde se cultivavam hortas, os chamados bairros rurais. Era o caso da Ilha Verde, onde a minha avó criava os porcos”, salienta Manuel Silvério.
“Tenho memórias muito vivas de tudo isto. O bairro de Mong-Há era um bairro eminentemente rural e o mesmo acontecia com o antigo Hipódromo, que hoje é aquela zona da Areia Preta”, complementa.
As hortas e os pequenos talhões de terreno que a expansão urbana empurrou para os limites da cidade, antes de os aniquilar por completo, foram durante décadas o meio mais imediato de Macau garantir o abastecimento de vegetais.
Para Manuel Silvério e para a família foi também o passaporte para uma vida ligeiramente melhor: “A minha mãe vendia os porcos que criava no mercado. Era uma forma de ganhar dinheiro”.
Foi durante o mandato de Manuel Silvério à frente do Instituto do Desporto que foi construída grande parte das infra-estruturas desportivas actualmente em uso em Macau, mas foi numa das mais antigas instalações ainda em operação que a sua paixão pelo desporto primeiro se revelou.
Contemporâneo do bairro de ruas empedradas onde Manuel Silvério cresceu, o Canídromo foi um refúgio incontornável nos longos domingos da infância. Foi, ainda assim, no Colégio D. Bosco, onde completou a sua formação, que teve a oportunidade de praticar, pela primeira vez, desporto de forma regular e estruturada.
“Ao fim-de-semana ia ao Canídromo. Vi ali muitos jogos de futebol. Futebol de bom nível. Vi boas provas de atletismo, boas performances que despertaram em mim o grande desejo de praticar desporto, mas não tinha meios”, admite Manuel Silvério. “Sem dúvida que a minha ida para o Colégio D. Bosco facilitou este panorama. O Colégio D. Bosco tinha campos de jogos e instalações invejáveis na altura e, para quem lá estudava, fosse por gosto ou por obrigação, havia duas sessões diárias de educação física. O futebol e o hóquei em patins eram quase obrigatórios, mas também pratiquei hóquei em campo, atletismo e ping pong”, acrescenta.
Foi, no entanto, numa outra modalidade – o karaté – que Manuel Silvério mais se notabilizou e inscreveu o nome nos anais da prática desportiva do território: “Foi a modalidade em que mais me empenhei. Treinava sete dias por semana. Treinava e dava aulas. Foi com o karaté que participei consecutivamente em três campeonatos mundiais, como capitão. O primeiro foi em Tóquio, o segundo foi em Madrid e o terceiro em Taipé”.
A modalidade abriu-lhe também as portas do movimento associativo local e ajudou a fomentar a convicção de que, de um modo ou de outro, talvez o desporto se pudesse transformar numa forma de vida. O resto é história. A de Manuel Silvério e a de Macau.