Várias empresas tecnológicas de Macau estão apostadas em ajudar a moldar o futuro digital do território, através de projectos ligados ao sector do metaverso, apoiando a diversificação económica da cidade
Texto Viviana Chan*
As notícias sucedem-se: cada vez mais empresas de Macau a operar no campo da tecnologia digital estão a ganhar destaque local e regional fruto de projectos inovadores ligados ao metaverso. De acordo com vários empresários e especialistas desta área, o sector pode abrir novas portas de crescimento para o território, elevando a sua competitividade.
O metaverso refere-se a um universo digital paralelo, que funciona como cruzamento entre uma réplica do mundo real e novos mundos virtuais, permitindo aos indivíduos interagir e socializar entre si, adquirir conhecimento ou ter acesso a experiências de entretenimento, bem como transaccionar e consumir bens e serviços digitais, através de avatares personalizados e de tecnologia “blockchain”. Para concretizar esta visão, são utilizados diferentes formatos como realidade virtual, realidade aumentada e hologramas.
A BoardWare Sistema de Informação Limitada, start-up tecnológica fundada em 2010 em Macau, é uma das empresas locais empenhadas no sector do metaverso. Tal inclui investigação científica ligada a cenários de imersão no metaverso com recurso a interfaces cérebro-computador – isto é, tecnologias que permitem ao cérebro humano conectar-se e comunicar directamente com dispositivos externos. O grupo desenvolveu já um protótipo não invasivo, para ser utilizado em torno da cabeça. Além disso, a BoardWare – listada no ano passado no mercado principal da bolsa de valores de Hong Kong – está a desenvolver uma plataforma de geração de espaços metaverso, permitindo também a criação e personalização de avatares.
À Revista Macau, Nick Ng Hong Kei, membro executivo do conselho de administração da empresa, considera que existe já uma base óbvia de eventuais clientes locais no âmbito de produtos metaverso, nomeadamente as indústrias do turismo e entretenimento. “Estas tecnologias têm procura no mercado de Macau”, garante.
De acordo com o representante da BoardWare, o metaverso é ainda um “segmento emergente” a nível global. Ainda assim, o investimento necessário para entrar nesta área não é demasiado elevado, visto que recorre, em grande parte, a tecnologias já existentes, apostando na sua integração. “Se olharmos para as outras cidades na Grande Baía, Hong Kong, Shenzhen, Guangzhou, Zhuhai, quase todas estão na fase inicial de exploração do metaverso”, refere Nick Ng. Nesse contexto, o empresário acredita que há bastante potencial de investimento para Macau.
Universo em construção
O metaverso expande o conceito convencional de realidade virtual, ligado tradicionalmente a ambientes digitais fechados e com funcionalidades limitadas. Ambiciona-se a criação de um universo digital aberto, partilhado e imersivo, que possa ser acessível a todos – ainda que, na fase actual, o que exista sejam vários universos separados entre si, visto que não há uma plataforma unificada, mas sim várias, disponibilizando acesso a experiências metaverso: Decentraland, Upland, Sandbox ou Horizon Worlds estão entre as mais conhecidas. Daí que a interoperabilidade entre sistemas operativos seja uma das grandes questões ligadas ao desenvolvimento do metaverso.
Visto por muitos como parte da transformação “Web 3.0” rumo a uma internet multidimensional, o metaverso procura formas de digitalizar e virtualizar o mundo real, expandindo-o. As estimativas são que, no futuro, seja responsável por movimentar muitos milhões: segundo um estudo da consultora McKinsey & Company, divulgado em Junho do ano passado, o metaverso pode representar um mercado global de cinco biliões de dólares americanos em 2030, com a maior oportunidade de negócio ligada ao e-commerce, potencialmente responsável por uma fatia de até metade desse valor. Mas existem outras indústrias que devem beneficiar, desde o ensino universitário virtual até à publicidade e ao “gaming”.
A aposta empresarial no metaverso encontra respaldo no âmbito da estratégia governamental “1+4” de diversificação adequada da economia de Macau, em que o sector tecnológico de ponta é uma das quatro indústrias de desenvolvimento prioritário, em paralelo com as áreas da “big health”, da indústria financeira moderna, e das convenções, exposições, comércio, cultura e desporto, apoiadas no sector basilar do turismo e lazer. De acordo com o discurso do Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, de apresentação do “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o Ano Financeiro de 2023”, proferido em Novembro, um dos objectivos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) para o corrente ano é dar início à “angariação de investimento para a indústria de metaverso” e ao aceleramento da “implantação de cenários relativos a esta indústria e a aglomeração de empresas desta indústria”.
Nick Ng, da BoardWare, concorda com a visão do Governo. O responsável defende que a pandemia da COVID-19 serviu como lição sobre a importância de “investir em indústrias que demonstrem maior resiliência” face à adversidade.
“O sector da tecnologia é muito abrangente e engloba diversas subáreas, algumas das quais bastante complexas”, diz. “Como Macau não possui muito espaço, nem muita mão-de-obra local disponível, é preciso escolher subáreas que possam ser uma boa opção para ganhar uma posição de liderança face à concorrência.”
O responsável sublinha que, para ter sucesso, a cidade necessita de “ser mais competitiva” no que toca a atrair talento. Nick Ng dá o exemplo de Hong Kong que, em Dezembro do ano passado, lançou um novo programa de atracção de recursos humanos qualificados. Por outro lado, afirma, é preciso crescer em dimensão industrial. “Apesar de Hengqin possuir uma área maior”, que passou a ficar disponível para apoiar o desenvolvimento de Macau, no âmbito do projecto da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin, é preciso canalizar mais recursos para o sector da tecnologia, considera o representante da BoardWare, empresa que está também envolvida na exposição “Visitando as Ruínas de S. Paulo no Espaço e no Tempo – Exposição de Realidade Virtual nas Ruínas de S. Paulo”, organizada pelo Instituto Cultural de Macau e que emprega um conjunto de tecnologias avançadas, desde modelação tridimensional a realidade virtual e realidade aumentada.
Para apoiar o desenvolvimento de iniciativas metaverso, as autoridades de Hengqin anunciaram, em Julho do ano passado, planos para desenvolver na ilha um “Supercampo de Testes para o Metaverso”. Situado no complexo Chimelong International Ocean Resort, inclui um espaço de exposição de tecnologias digitais com uma área total de 3000 metros quadrados. O projecto é fruto de uma cooperação com o Chimelong Group Co., Ltd., um dos principais conglomerados chineses no sector do turismo.
Foi criado ainda um departamento ligado à promoção do metaverso no seio da Zona de Cooperação Aprofundada. O director, Liu Yang, diz esperar que o “Supercampo de Testes para o Metaverso” possa ajudar a elevar a competitividade de Macau e Hengqin neste sector, servindo igualmente para atrair projectos inovadores e talento jovem.
Interesse aumentado
O Barra Studio é outra start-up local a operar no campo da tecnologia digital. A empresa – que tem vindo a especializar-se na criação de conteúdos através da utilização de tecnologias de realidade aumentada – olha também com interesse para o sector do metaverso.
Kammy Cheong Ka Man, director e um dos fundadores, afirma que, “embora Macau não seja uma cidade particularmente competitiva no campo da tecnologia, a sua cultura e turismo tornam-na uma excelente base para criar conteúdos metaverso”. Segundo observa, o mercado local no campo da tecnologia digital tem crescido bastante. “Quando fundámos a empresa em 2017, tínhamos previsto um crescimento da procura de serviços de realidade aumentada em Macau, mas, na verdade, essa procura foi maior do que esperávamos”, reconhece. “No final de 2022, a utilização de tecnologias de realidade aumentada era já muito comum em Macau.”
O Barra Studio tem estado envolvido na criação de conteúdos de realidade aumentada para várias iniciativas do Governo visando atrair mais turistas ao território, incluindo os eventos especiais “Arraial na Ervanários”, “Arraial na Taipa” e “Arraial em Coloane”. Através de aplicações para smartphone, os utilizadores podem ter acesso a elementos virtuais, que são sobrepostos à visão normal da realidade, e com os quais é possível interagir, de forma a tornar a experiência turística mais divertida e interactiva. De acordo com Kammy Cheong, este tipo de acção de marketing está a demonstrar ter efeitos económicos positivos, o que, na sua opinião, justifica a sua adopção por parte de outras indústrias, como o sector das convenções e exposições ou a restauração.
Da hotelaria ao retalho
Um dos primeiros projectos metaverso associados a Macau a ganhar relevo mediático foi concebido pela Asia Pioneer Entertainment Holdings Ltd. A empresa local, com raízes no sector do fornecimento de equipamento de jogo, lançou em Junho do ano passado aquela que foi então apresentada como “uma experiência no metaverso para turistas digitais poderem explorar de forma virtual” algumas das principais atracções turísticas de Macau, como o Largo do Senado, as Ruínas de São Paulo ou o Templo de A-Má.
O protótipo – chamado “Mini-Macau” – recorreu à plataforma Sandbox. Um conjunto de marcas locais – incluindo a pastelaria Choi Heong Yuen, a joalharia Seng Fung e o restaurante O Junco de 9 Jades – associou-se ao projecto, abrindo lojas virtuais no “Mini-Macau”.
Em Julho, a Asia Pioneer Entertainment, empresa listada em Hong Kong, publicou um relatório sobre as oportunidades disponíveis no sector do metaverso para a indústria hoteleira e de resorts. O texto propõe a utilização do metaverso como uma nova plataforma de marketing para hotéis e complexos turísticos, permitindo aos seus clientes explorar as propriedades de forma digital, com o objectivo final de convertê-los em utilizadores das unidades físicas.
A moda tem sido uma das indústrias a agarrar as oportunidades abertas pelo metaverso. Já existem diversas cadeias internacionais de retalho com lojas no metaverso, bem como com colecções de moda virtual, a que se somam desfiles e até mesmo semanas da moda no metaverso. A tendência não passa ao lado da RAEM: até dia 28 de Maio, está patente na Galeria de Moda de Macau a exposição “Para Além dos Limites: A Fronteira entre o Virtual e a Realidade”, que combina a apresentação de moda virtual com roupas produzidas através de impressão 3D e com experiências virtuais de realidade aumentada, mostrando obras criadas por designers provenientes de Macau, Guangzhou, Shenzhen e Hong Kong.
A pandemia da COVID-19 e as respectivas limitações ao nível das viagens internacionais estimularam a entrada em força do sector das exposições no metaverso. Macau, mais uma vez, não ficou de fora: a edição do ano passado da “Beyond Expo”, a maior exposição internacional de inovação científica e tecnológica na RAEM, teve lugar em formato metaverso.
O sector universitário do território também possui em curso projectos ligados ao metaverso. Em Novembro do ano passado, a Universidade de Macau lançou uma plataforma no metaverso para investigação e desenvolvimento de tecnologias de condução autónoma, a qual permite a superimposição de veículos de condução autónoma reais em cenários simulados.
Criar uma comunidade
São já várias as associações em Macau ligadas ao metaverso. Só no ano passado, foram criadas pelo menos quatro. Uma delas foi a Associação da Indústria do Metaverso, cuja direcção é composta por investidores no sector do metaverso e elementos ligados aos desportos electrónicos, e que foi estabelecida em Março de 2022. Desde então, a organização trouxe ao território vários projectos, incluindo exposições apresentando ficheiros exclusivos de arte digital, recorrendo a NFTs (“tokens” não fungíveis assentes em tecnologia “blockchain”). Em declarações à Revista Macau, o fundador e presidente da associação, Thomas Ao Ka Seng, partilha a sua visão sobre o sector do metaverso, indicando que este universo se destina particularmente a criadores e consumidores da denominada “Geração Z”, isto é, nascidos entre meados da década de 1990 e 2010. É nesta faixa etária, afirma, que se deve focar a formação de talentos e também a atracção de quadros qualificados do exterior.
O responsável refere que a sua associação tem planos para apoiar o desenvolvimento do metaverso em Macau e estimular a educação do público sobre o tema. “O objectivo é criar uma comunidade local ligada ao metaverso, para unir pessoas com ideias similares”, diz.
Thomas Ao, empresário que começou a investir em tecnologias “Web 3.0” em 2012, concorda com a visão de associar o desenvolvimento do metaverso em Macau à indústria local predominante, o turismo e lazer. “Na parte de implementação, as tecnologias de realidade aumentada e realidade virtual podem criar experiências imersivas para diversificar os produtos turísticos de Macau”, refere. Segundo o empresário, o metaverso pode ser utilizado por sectores industriais tradicionais de duas formas: para a criação de novas ofertas virtuais ou para efeitos de promoção e marketing de ofertas já existentes no mundo real.
Thomas Ao, também fundador da empresa de investimento Mindfulness Capital, está convicto de que “o desenvolvimento do metaverso e da inteligência artificial vai beneficiar a diversificação económica” de Macau. “Em termos de criadores de software, criadores de conteúdos, artistas, estúdios, diferentes comunidades, todos podem enriquecer a indústria de Macau”, afirma.
Quanto ao apoio de Hengqin e do “Supercampo de Testes para o Metaverso” aí em criação, vê nisso uma vantagem para a RAEM. “Pode ser construtivo para unir recursos e ser um chamariz para a entrada de empresas”, defende Thomas Ao.
Após o impacto negativo da COVID-19, o metaverso é a nova oportunidade a agarrar, nota Miao Li, directora do Departamento de Gestão de Resorts Integrados e Turismo da Universidade de Macau. A académica é uma defensora do potencial do metaverso, especialmente no que toca ao turismo, como factor de oferta de experiências diferenciadoras.
Durante um simpósio realizado em Fevereiro pela Universidade de Macau, Miao Li apresentou diversas possibilidades de utilização do metaverso em Macau. A académica sugeriu a criação de hotéis e lojas virtuais, propondo encarar o turismo no metaverso como um sistema integrado, ligando versões virtuais de todos os monumentos de Macau, de forma a tornar a experiência turística mais divertida. Tal poderia inclusive funcionar como um mapa tridimensional da cidade, algo eventualmente popular entre os visitantes. “A procura dos turistas está a diversificar-se, as experiências imersivas e ampliadas são apreciadas”, defende, acrescentando que, por isso, “o metaverso terá um papel muito importante na era pós-pandemia”.
* com Emanuel Graça