Perto de celebrar 15 anos, o Museu do Oriente é hoje uma instituição multicultural que procura preservar o património material e imaterial de vários países asiáticos, incluindo a ligação secular entre Portugal e a China, através de Macau. Uma visita ao museu evidencia um diálogo enriquecedor entre o Oriente e o Ocidente
Texto Luciana Leitão
George Chinnery, James Cooke e John Webbe são nomes que se encontram no Museu do Oriente, em Lisboa, com peças alusivas a Macau. O território está representado ao longo dos corredores do museu, sobretudo através de peças que terão feito parte das rotas do comércio entre o Oriente e o Ocidente.
Localizado na Doca de Alcântara, o Museu do Oriente foi inaugurado em 2008 e procura mostrar o património material e imaterial de vários países asiáticos, através das suas duas colecções.
A primeira intitula-se “Presença Portuguesa na Ásia” e inclui mais de duas mil obras, artefactos e objectos da Índia, Sri Lanka, Interior da China, Macau, Japão e Timor-Leste. A segunda chama-se “Kwok On” e abrange mais de 15 mil objectos de uma área que se estende da Turquia ao Japão, entre os quais estão instrumentos musicais, marionetas, trajes, pinturas, gravuras, estatuetas e peças ligadas a rituais.
O museu reveste-se da missão de consolidar a comunicação entre o Oriente e o Ocidente, nomeadamente através da promoção do conhecimento, da arte e da cultura. Além das exposições, a instituição oferece também uma programação complementar todos os anos, acolhendo artistas, académicos, curadores e projectos cuja reflexão se foca na Ásia.
A chegada a Macau
No piso 1 do edifício, Alexandre Correia, técnico responsável pelo Centro de Documentação António Alçada Baptista – Fundação Oriente/Museu do Oriente, pára em frente ao quadro “Panorâmica de Macau”, de William Andersen, do final do século XVIII, que mostra a quase totalidade do território, a partir da colina da Penha – sobretudo a principal mancha urbana das duas áreas portuárias (Porto Interior e Praia Grande) e a ligação, através do istmo, a uma das ilhas do território.
“É uma das imagens que mostro [nas minhas visitas] para tentar explicar porque é que os portugueses se conseguiram instituir em Macau, ser os primeiros europeus a viver em Macau e, a bem da verdade, os únicos europeus até ao século XIX a viver em território chinês, com autorização chinesa”, explica Alexandre Correia, no início de uma visita ao museu.
Também a propósito desta obra, Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente – organismo que criou o Museu do Oriente –, dizia, gracejando, numa reportagem publicada no Diário de Notícias, por ocasião do décimo aniversário da instituição: “Gosto muito deste quadro, esteve muito tempo no meu gabinete. Depois roubaram-me o quadro que eu olhava todos os dias para vir para aqui [Museu do Oriente]. É uma Macau que já não existe. Com esta avidez do Museu de irem buscar as peças todas foram também ao meu gabinete.” Carlos Monjardino foi, na década de 1980, membro do governo de Macau.
Dos mapas a Chinnery
Toda a secção com mapas mostra a organização de Macau e a sua evolução, assim como “algumas cenas da cidade de Macau, vista de determinadas perspectivas”, diz Alexandre Correia, que avança um pouco, parando em frente ao “Mapa de Macau, Taipa e Coloane”, de James Cook e Robert Bénard, de 1784.
O mapa topográfico da península de Macau e das ilhas adjacentes marca as profundidades e a rota seguida pelo capitão James Cook. “Para os ingleses, James Cook, que é quem descobre a Austrália, é como se fosse o nosso Vasco da Gama”, menciona Alexandre Correia. “O que é muito interessante é que ele, obviamente, quando faz a sua viagem para a Austrália, passa por Macau. Isto aqui é desenhado pelo punho dele”, destaca.
Ao lado, temos alguns trabalhos do pintor inglês George Chinnery (1774 – 1852), que viveu em Macau, de 1825 até à sua morte. Durante esses 27 anos, o artista britânico pintou e desenhou a cidade e as suas gentes, deixando centenas de óleos com retratos, paisagens e desenhos com cenas da vida quotidiana.
“Outra peça muito boa será esta do John Webber, quase um esboço”, diz Alexandre Correia, referindo-se à “Vista da gruta de Camões em Macau”, de 1788, que representa a igreja jesuíta do Colégio da Madre de Deus, antes da sua destruição por um incêndio, em 1835.
E aproveita para explicar a importância desta peça. “Prende-se com a questão de Camões ter ou não ter estado em Macau, se salvou ‘Os Lusíadas’, se viveu numa gruta ou não.” Hoje em dia, refere, os historiadores dizem que “o facto de Camões ter estado em Macau não passa de uma lenda, é um mito inventado no século XIX exactamente para meter Camões como aquele herói sobrenatural que todos nós conhecemos”. Mas, olhando para este esboço de John Webber, nesta imagem do século XVIII, “já há aí uma pequena anotação, que nos remete para uma legenda, que diz que é a gruta de Camões em Macau, ou seja, o mito de que Camões esteve em Macau e nesta gruta não é criado no século XIX, como muita corrente historiografia diz, uma vez que no século XVIII já havia esta menção”.
A Batalha de Macau
Durante a visita, Alexandre Correia pára diante de uma escultura que retrata um homem, não se percebendo a sua identidade, mas que data da época em que aconteceu a Batalha de Macau, travada em 1622 entre a guarnição portuguesa de Macau e o exército holandês. “Em 1580, nós perdemos o trono português e todo o império colonial português fica sob o domínio espanhol”, conta, explicando que foi então que outras potências europeias da altura – os holandeses, os franceses e os ingleses – viram uma oportunidade para atacar os territórios onde estavam os portugueses.
“Se os holandeses dominassem Macau, cortavam o abastecimento para Manila e era mais fácil isolar os espanhóis para depois os atacar, mas depois, ao mesmo tempo, dominavam todo o comércio do Oriente com o Ocidente, via Macau”, declara, explicando porque esta peça, que remonta a essa altura, lhe parece de interesse. “Ninguém sabe se representa um português ou um holandês”, esclarece.
Macau, porém, iria continuar a servir de entreposto comercial, ao longo dos séculos, entre a China e Portugal, não só para troca de porcelanas, “o principal comércio”, mas também para comércio de leques, que “agradavam aos portugueses”.
Isso leva o visitante à parte da exposição mais virada para o coleccionismo. Não se tratando de peças exclusivamente de Macau, admite Alexandre Correia, são objectos que fizeram parte das trocas comerciais entre a China e Portugal, podendo ou não ter passado pelo território.
“Os portugueses trouxeram o leque, pela primeira vez, da China, por isso, ficou associado à China a descoberta e a invenção dos leques”, conta. Por outro lado, os leques são introduzidos na Europa também “graças aos portugueses”, acrescenta. “É por D. Catarina, mulher de D. João III. Quando os leques vêm parar às mãos da rainha de Portugal, o leque é fácil de abrir e fechar, é muito fininho, é superelegante”, diz, explicando que é depois disto que a corte passa a usar este objecto, assim como a nobreza e o povo, generalizando-se na Europa.
Continuando a visita, Alexandre Correia aponta ainda para a colecção de louça ali presente, disposta de maneira a formar um dragão. “É outro produto que em Macau teve uma grande importância, juntamente com o chá”, diz, parando em frente a uma peça específica. “Esta peça é uma bacia que veio para a Europa com o fundo branco, e depois na Europa foi pintado o fundo”, descreve, apontando ao mesmo tempo para algumas peças de louça ali expostas pouco antes do início da pandemia da COVID-19.
“Estas últimas peças são feitas ao gosto ocidental para vender aos portugueses, porque os chineses apercebem-se do que queremos. Têm um prato branco e pintam as armas da família”, afirma, revelando que os chineses desenhavam então os motivos que interessavam aos europeus, de forma a conseguir vender estas peças. “E são várias regiões da China que produzem estas peças, mas é através de Macau que entram nos nossos navios para vir para a Europa”, explica.
A colecção de Pessanha e os frascos de rapé
No decorrer da visita, Alexandre Correia destaca aquela que considera ser “uma excelente” colecção de Camilo Pessanha, autor português que viveu em Macau entre 1909 e 1926. “O Camilo Pessanha deve ser dos primeiros europeus a cair na realidade e a aperceber-se da importância da beleza deste género de escrita chinesa”, afirma, mostrando as peças de caligrafia chinesa, patentes no Museu. “Na altura, estava na China, neste período de convulsões e revoluções, em que há grandes famílias chinesas que têm de fugir e vendem os seus bens ao desbarato”, conta, dizendo que é aí que Camilo consegue comprá-los.
A encerrar a visita, o especialista acaba por parar em frente à colecção dos frasquinhos de rapé, aquele que considera ser um dos pontos altos do Museu do Oriente, dada a sua extensão. Parte da colecção do antigo Presidente da República de Portugal Manuel Teixeira Gomes, estes artefactos datam dos séculos XVIII a XX e marcam um momento importante na história. “Rapé é tabaco moído e nós acreditávamos que curava cataratas e dores de cabeça”, diz. No século XIX, o ópio acaba por se tornar mais importante do que este produto, e “é aí que o comércio português entra em decadência”.
Dos mapas e quadros às colecções, com peças de Macau e outras que fizeram parte da rota do comércio na qual o território teve um papel como intermediário, o Museu do Oriente conta um pouco da história de Macau, partilhando-a com a história de outros territórios.