A Trally, start-up lançada por uma jovem empreendedora de Macau, propõe-se a expandir o conceito de turismo, através de viagens virtuais personalizadas, com recurso a vídeo em tempo real. O objectivo é superar constrangimentos associados à distância, limitações de tempo disponível e falta de orçamento, satisfazendo o desejo de muitos de conhecer novos lugares – sem sair de casa
Texto Vitória Man Sok Wa
O avanço imparável das novas tecnologias de informação está a mudar o mundo nas mais variadas vertentes. O turismo não é excepção: a expressão “turismo inteligente” é cada vez mais prevalente, sobretudo após o surgimento da pandemia da COVID-19, que acelerou o aparecimento de modelos de negócio inovadores, integrando turismo tradicional e novas tecnologias. Foi neste quadro que surgiu a start-up Trally, disponibilizando “visitas” a diferentes pontos do globo, com recurso a “live streaming” (transmissão de vídeo ao vivo).
A plataforma – disponível em www.trally.com – foi criada em 2020 por Kylie Chim Kin Wai, uma empreendedora de Macau. O projecto permite a qualquer pessoa vestir a pele de turista digital para visitar outros locais. Apenas é necessário um computador ou telemóvel, seleccionar o destino e horário da visita e, na altura indicada, ligar o equipamento e começar a viajar… sem sair do lugar. Do lado de lá, no destino e hora escolhidos, um guia da Trally, munido de uma câmara de filmar, dá início a uma sessão de “live streaming”, levando os turistas digitais pelo itinerário seleccionado, ao mesmo tempo que interage com eles, de forma a tornar a experiência mais cativante.
Janela para o mundo
Nascida em Macau, Kylie Chim cresceu no seio de uma família ligada à indústria do turismo, dividindo o seu tempo entre Macau e Singapura. Sem surpresa, após concluir os estudos universitários, ingressou no negócio da família.
A interacção com turistas internacionais de diversas paragens levou a jovem a rapidamente entender que “os limites de tempo disponível, energia e orçamento eram pedras no caminho de quem queria explorar o mundo”, conta à Revista Macau. Kylie Chim começou então a pensar como seria possível conhecer novos lugares de um modo eficaz e barato.
“Numa viagem digital ao vivo, os turistas que estão em frente ao ecrã podem tirar dúvidas com o guia e direccioná-lo para diferentes pontos”, explica. “Seguindo esse conceito, decidi começar a criar experiências de viagem virtual como teste.”
Os produtos desenvolvidos pela jovem começaram a tornar-se populares entre os seus amigos em Singapura, para melhor conhecerem Macau. Entretanto, outros amigos, da cidade vizinha de Hong Kong, davam cada vez mais sugestões a Kylie Chim quanto a novos lugares e lojas em Macau para incluir nos seus roteiros.
“À medida que mais e mais pessoas começavam a aceitar este conceito e mostrar interesse na minha ideia de viagens virtuais, decidi criar a plataforma digital Trally”, conta. “Comecei a Trally sozinha, mas à medida que se foi tornando mais popular, comecei a envidar mais esforços no projecto e a contratar funcionários, usando as minhas próprias poupanças.”
Kylie Chim continuou a sua “vida nómada”, promovendo o desenvolvimento operacional da Trally entre Macau e Singapura. Segundo refere, embora o mercado de Macau seja limitado em termos de dimensão, tal significa também menos competição, pelo que é mais fácil a um empreendedor com uma boa ideia destacar-se. Do lado de Singapura, explica, há um ecossistema já bastante maduro no que toca à área de desenvolvimento de start-ups.
A empresária recorda que, na fase inicial, o seu principal desafio foi conseguir validação do mercado quanto ao novo modelo de turismo que a Trally estava a lançar, “especialmente considerando que os conceitos de economia partilhada e de viagens virtuais não eram populares” em muitas cidades. “Felizmente, em Macau, as gerações mais adeptas das novas tecnologias estavam dispostas a considerar esta ideia como interessante e a experimentá-la.”
Outros questões iniciais prenderam-se com o financiamento e a captação de recursos humanos. “Comecei este negócio em Macau, mas era difícil encontrar talentos desta área”, afirma Kylie Chim. “Quando cheguei a Singapura, tive que começar tudo do zero. Precisava de conhecer pessoas novas, contratar novos membros para a equipa, arranjar um novo escritório, continuar a arrecadar fundos, etc. No final, consegui montar uma equipa em formato de teletrabalho, com membros em vários países, incluindo no Reino Unido, Estados Unidos e Ucrânia.”
Kylie Chim diz que a Trally possui actualmente um quadro de colaboradores e modelo de negócio estáveis, mas acrescenta que os desafios de uma start-up nunca terminam. Neste momento, um dos principais obstáculos passa por coordenar de forma eficaz um grupo de funcionários disperso geograficamente à escala global, aponta.
Apoio das autoridades de Macau
Para fazer face às dificuldades inerentes ao lançamento de uma start-up, a Trally contou com o auxílio das autoridades da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Em 2021, a empresa foi um dos projectos seleccionados para receber apoio financeiro do então Fundo das Indústrias Culturais (actualmente Fundo de Desenvolvimento da Cultura), beneficiando de um empréstimo sem juros no valor de 2,5 milhões de patacas, a liquidar no prazo de cerca de cinco anos. Segundo Kylie Chim, tal tratou-se de uma grande conquista para a equipa.
A empresa foi também escolhida para integrar a “Zona de Empresas de Tecnologia e Inovação” da “Semana de Ciência e Tecnologia 2021 e Exposição de Resultados de Inovação e Tecnologia”, evento organizado pelo Fundo para o Desenvolvimento das Ciências e da Tecnologia de Macau. A zona tinha por objectivo divulgar projectos desenvolvidos por empresas de inovação tecnológica de Macau e das regiões vizinhas, criando oportunidades de intercâmbio e cooperação.
Além da assistência disponibilizada pelas autoridades da RAEM, a Trally tem também beneficiado de apoio de algumas associações locais sem fins lucrativos. Entre estas, destaca-se o Macao Startup Club, fundado em 2017 por um grupo de jovens empresários e outros profissionais, com o objectivo de promover o empreendedorismo em Macau.
Kenny Lei, co-fundador do clube, conta que conheceu Kylie Chim em 2020, durante a secção de Macau da terceira edição do Concurso de Inovação e Empreendedorismo para Jovens da Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau. A Trally foi um dos projectos premiados durante o evento.
“O Macao Startup Club ofereceu bastante apoio à Trally, nomeadamente quanto à promoção e estabelecimento de uma rede de contactos”, recorda Kylie Chim. “Convidaram-nos a participar nos seus eventos, inclusive no ‘Techstars Startup Weekend Macao’”, uma iniciativa para start-ups associada à organização internacional Techstars, organismo que combina programas de aceleração de empresas tecnológicas com acesso a fundos de investimento.
Kenny Lei diz que, “apesar de Macau ser uma cidade com um ecossistema de start-ups ainda recente, os empreendedores locais estão a tentar aperfeiçoar as suas capacidades com vista a fundar empresas inovadoras com alto potencial de crescimento”. E acrescenta: “Na situação actual, em que as pessoas em Macau têm a sua capacidade para viajar limitada, acho que conseguem apreciar ainda melhor a Trally e este tipo de experiência virtual imersiva”.
Kylie Chim está também ligada à Associação dos Hoteleiros de Macau. A empresária considera que o acesso a esta plataforma a ajuda a manter-se actualizada sobre os últimos desenvolvimentos na indústria do turismo da RAEM. “Quase todos os meses, reunimo-nos com a directora dos Serviços de Turismo de Macau e comunicamos as nossas sugestões para o futuro do turismo local”, diz.
Em paralelo, Kylie Chim tem promovido o conceito de turismo virtual desenvolvido pela Trally junto de instituições de ensino superior locais. A responsável já participou em palestras e apresentações no Instituto de Formação Turística de Macau, Universidade de São José, Universidade de Macau e Universidade Cidade de Macau.
Foco na Ásia
A Trally possui actualmente uma equipa com dez membros, espalhados por diversos países, desde as Filipinas à Tailândia, Paquistão e Reino Unido, coordenados a partir de Singapura. Além disso, a empresa mantém escritórios em Macau, na vizinha ilha de Hengqin no município de Zhuhai, em Singapura e em Hong Kong.
“Nesta fase, o nosso foco está no mercado asiático. No início, queríamos atrair também pessoas do Ocidente, mas a diferença de horário não ajuda”, admite Kylie Chim. “Entretanto, estamos em discussões quanto a lançar algumas viagens virtuais no Metaverso”, diz, numa referência a um mundo novo virtual em fase de desenvolvimento, que soma à Internet tecnologias como a realidade virtual e a realidade aumentada, visando criar um espaço colectivo partilhado.
Kylie Chim refere que a estratégia de marketing da Trally assenta em duas vertentes principais. “A primeira é a colaboração com influenciadores digitais. Organizamos regulamente programas de formação para guias de viagem em formato ‘live streaming’ e, através destes programas, temos conhecido bastantes influenciadores digitais, que depois podem praticar o que aprenderam liderando ‘viagens’ organizadas com recurso à Trally”, afirma. A segunda forma de promoção passa por colaborações com plataformas digitais de comercialização de produtos turísticos.
A empreendedora sublinha que o modelo de turismo virtual promovido pela Trally pode ser utilizado como ferramenta de promoção para qualquer destino. “Através das viagens virtuais, podemos convencer os utilizadores a visitar diferentes destinos presencialmente”, diz Kylie Chim.
Experiências positivas
Juvena Huang é uma das guias que colabora com a Trally. A jovem, originária de Singapura, define-se como uma apaixonada por viagens e uma aficionada por motorizadas. A também criadora de conteúdo digital, que passou dois anos a viajar sozinha desde Singapura até a República Checa, começou a trabalhar como guia na Trally após conhecer Kylie Chim num programa de formação, no início de 2021.
“Estava bastante intrigada com a perspectiva de viagens virtuais, em que o público pode viajar indirectamente comigo em tempo real”, recorda. “Isto é muito interactivo e espontâneo. Ao mesmo tempo, ainda posso obter algum rendimento enquanto viajo, por isso, porque não?”
Juvena Huang partilha com a Revista Macau que a sua experiência como guia na Trally passa por divulgar atracções menos comuns ou lugares menos conhecidos do grande público. “Acredito que as histórias humanas ajudam a promover a conexão e a empatia”, garante.
Jonathan Wan, gestor de projectos baseado em Singapura, já “viajou” com a Trally por mais de 30 vezes, incluindo a destinos em Macau, Japão e Filipinas, mas também até mesmo em Singapura. Segundo conta, aderiu à plataforma depois de ver uma publicidade numa rede social.
“Formei-me em hotelaria, viajar está no meu sangue”, diz. “Uma plataforma digital como a Trally, que traz o mundo para junto dos turistas em qualquer lugar, e vice-versa, é muito excitante. Além disso, há muitos guias e passeios interessantes disponíveis.”
Kylie Chim afirma que o modelo de viagem disponibilizado pela Trally tem vindo a ganhar popularidade em Singapura. O passo seguinte, assume, passa por fortalecer a promoção da plataforma em Macau.
Nas palavras da empresária, “criar uma start-up é muito mais difícil do que lançar um negócio tradicional”. Isto porque, explica, “é algo que visa quebrar limites, inclui elementos inovadores e não existem modelos anteriores que possam ser utilizados como ponto de partida”.
A empreendedora deixa um conselho a outros jovens de Macau interessados em lançar as suas próprias start-ups. “É muito importante ser inventivo, disciplinado e possuir as competências adequadas. Senão, uma start-up pode ser abandonada facilmente”, avisa.