A integração da RAEM no desenvolvimento nacional através do projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau também passa pelo aumento da mobilidade transfronteiriça ao nível de quadros qualificados. Diversos profissionais do território estão já a agarrar as oportunidades abertas por novas políticas neste campo, com vista a desenvolverem carreiras ou projectos empresariais no Interior da China
Texto Viviana Chan
A Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin, um dos principais projectos ligados ao desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, celebrou o primeiro aniversário em Setembro. No âmbito da iniciativa, os governos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e da vizinha província de Guangdong, onde a ilha de Hengqin se situa, estão apostados em promover uma maior circulação de recursos humanos qualificados – rumo não só à zona de cooperação, mas também ao resto da Grande Baía. Para tal, têm vindo a ser lançadas várias medidas que possibilitam a quadros de Macau dos sectores financeiro, da saúde, engenharia e advocacia trabalhar e viver na província de Guangdong. Muitos talentos da RAEM estão a aderir à ideia, olhando para o outro lado das Portas do Cerco como um amplo mercado de possibilidades no que toca ao desenvolvimento profissional e ao lançamento de start-ups.
Raimundo Chang San Chi faz parte do primeiro grupo de advogados da RAEM autorizados pelo Departamento de Justiça de Guangdong a exercer actividade profissional nas nove cidades da província que integram o projecto da Grande Baía: Dongguan, Foshan, Guangzhou, Huizhou, Jiangmen, Shenzhen, Zhaoqing, Zhongshan e Zhuhai. De acordo com um esquema-piloto anunciado em Outubro de 2020 pelo Conselho de Estado, passou a ser possível advogados de Macau e Hong Kong tratarem de casos não contenciosos nas cidades de Guangdong que fazem parte da Grande Baía, desde que completem com sucesso um exame específico e obtenham a devida credenciação junto das autoridades provinciais. Antes desta política, os advogados de Macau apenas podiam ter acesso à advocacia no Interior da China caso passassem no exame nacional de acesso à profissão.
Raimundo Chang integra a sociedade de advogados ZLF Law Office, estabelecida em 2016 em Hengqin. A iniciativa foi apresentada na altura como a primeira “joint venture” ao nível dos serviços de apoio legal no seio da região da Grande Baía, fruto de uma união de esforços entre escritórios de advogados do Interior da China, Hong Kong e Macau – neste último caso, o escritório Rato, Ling, Lei & Cortés, do qual Raimundo Chang é “senior partner”.
A ZLF Law Office conta actualmente com três advogados do Interior da China, 11 de Macau e 16 de Hong Kong. As suas principais áreas de actuação estão ligadas ao apoio jurídico transfronteiriço, nomeadamente ao nível do investimento, serviços financeiros, propriedade intelectual e aquisição de imóveis. De acordo com Raimundo Chang, o facto de a equipa integrar advogados de três jurisdições torna o trabalho de âmbito transfronteiriço “mais eficaz, económico e conveniente” para os clientes. Ainda assim, o papel de pioneiro enquanto advogado transfronteiriço será “sempre desafiante”, diz.
Oportunidades e desafios
À Revista Macau, o causídico defende que, embora as novas políticas ainda limitem o campo de acção dos advogados de Macau no que toca ao exercício da profissão no Interior da China, estas oferecem já uma via de entrada facilitada. Tendo em conta que cada vez mais residentes de Macau estão a atravessar a fronteira para ir trabalhar, viver ou fazer negócios noutros locais da Grande Baía, o advogado espera que o mercado do apoio legal transfronteiriço continue em expansão – em parte estimulado pelo desenvolvimento da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin.
As oportunidades não se ficam pelo direito tradicional: em Dezembro do ano passado, foi fundada a Comissão de Arbitragem de Conflitos Laborais de Hengqin e seis profissionais de Hong Kong e Macau foram integrados como árbitros. Raimundo Chang foi um deles.
No primeiro trimestre deste ano, o advogado participou na arbitragem de um caso relacionado com uma alegada falta de pagamento de salário e indemnização por despedimento. A disputa envolvia um antigo trabalhador não residente de Macau, tendo a queixa sido apresentada em Hengqin contra a sucursal no Interior da China da empresa empregadora em Macau. Na altura, o litígio foi noticiado como sendo o primeiro conflito laboral transfronteiriço relacionado com a RAEM a ser tratado pela Comissão de Arbitragem de Conflitos Laborais de Hengqin com a participação de árbitros de Macau.
“Não é tarefa fácil defender o interesse da alegada vítima num caso de disputa laboral que envolve assuntos transfronteiriços”, contextualiza Raimundo Chang. “O novo mecanismo criado em Hengqin permite a participação de profissionais de Macau, o que pode melhorar o tratamento e interpretação de documentos emitidos por diferentes governos”, explica. Na disputa envolvendo o trabalhador não residente, este submeteu documentos emitidos pelos serviços públicos da RAEM como prova: sem o envolvimento de árbitros de Macau, seria bastante mais difícil verificar a relevância dos documentos, exemplifica Raimundo Chang.
Olhando para o futuro, o advogado não esconde as elevadas expectativas quanto ao potencial do mercado do Interior da China. Segundo revela, a ZLF Law Office tem planos para estender os seus serviços a Guangzhou ainda este ano. “O actual mecanismo permite a prestação dos nossos serviços nas nove cidades da Grande Baía – não é nada mau para expandir a nossa rede de trabalho”, diz.
Novo espaço de emprego
A facilitação da mobilidade de recursos humanos entre Macau e Guangdong é algo que já vinha a ser discutido entre as autoridades de ambos os lados há vários anos. Porém, o tema ganhou nova relevância após a publicação, em Fevereiro de 2019, das “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”. O documento, a cargo do Comité Central do Partido Comunista Chinês e do Conselho de Estado, prevê uma “expansão de espaços de emprego e de empreendedorismo” para os residentes de Macau no contexto das nove cidades da província de Guangdong que fazem parte da Grande Baía. Entre as metas traçadas, encontra-se “aperfeiçoar as políticas e medidas favoráveis a` vida e emprego” em Guangdong dos residentes de Macau (e de Hong Kong), “nomeadamente os formados nas escolas do Interior da China”.
O objectivo de promoção da circulação de recursos humanos qualificados de Macau no resto da Grande Baía encontra eco no “Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da RAEM (2021-2025)”, publicado pelas autoridades locais no final do ano passado. No documento, é referido que a Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin “e´ um novo espaço de conveniência para a vida e o emprego da população” da RAEM. “Esta zona ira´ oferecer novas oportunidades de inovação, empreendedorismo e emprego”, especialmente para a “geração mais jovem”, proporcionando um “novo palco de desenvolvimento”, é acrescentado.
Um dos passos iniciais para promover a livre circulação de profissionais qualificados da RAEM no Interior da China aconteceu há mais de uma década, em 2009, quando as autoridades de Guangdong lançaram um mecanismo de acreditação profissional para médicos e dentistas de Macau, Hong Kong e Taiwan. Através da medida, passou a ser possível estes profissionais obterem uma autorização temporária e renovável para trabalhar no Interior da China.
O médico urologista George Zhao recorda-se de quando a medida foi introduzida. No entanto, nota que “a acreditação profissional e o exercício das funções de médico são coisas distintas”. Segundo aponta, o esquema implicava que o profissional fosse contratado por um hospital no Interior da China ou abrisse, ele próprio, uma nova clínica. Condições que, na opinião de George Zhao, explicam, em parte, o número não muito expressivo de médicos de Macau que aderiram ao mecanismo nos anos que se seguiram.
O estabelecimento da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin está, no entanto, a levar a um aumento da circulação de profissionais de saúde da RAEM para o Interior da China. A contribuir para a mudança esteve a entrada em funcionamento, em 2021, da unidade de Hengqin do Hospital Popular de Zhuhai, com a qual George Zhao colabora. Segundo foi noticiado na altura, foram contratados para a infra-estrutura um total de 53 médicos de Macau, a maioria dos quais ligados ao campo da medicina tradicional chinesa. Os profissionais beneficiaram de um novo esquema-piloto introduzido pelas autoridades do Interior da China, o qual permite a médicos de Macau e Hong Kong que desejem trabalhar em Guangdong ver as suas qualificações directamente reconhecidas pela própria entidade empregadora, sem necessidade de envolvimento de outras entidades.
“Com este esquema, o procedimento de pedido de acreditação tornou-se mais claro e bem mais simples, em comparação com o passado”, elogia George Zhao. “Basta submetermos os documentos solicitados.”
A Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla inglesa), através da sua faculdade de medicina, está a apoiar as operações da unidade de Hengqin do Hospital Popular de Zhuhai, nomeadamente ao nível da formação de médicos. George Zhao continua também ligado profissionalmente ao Hospital da MUST.
O médico espera que o modelo de cooperação entre a MUST e a unidade de Hengqin do Hospital Popular de Zhuhai possa ser replicado noutras áreas da Grande Baía. “Estou muito optimista”, assegura.
“Hengqin é um campo de experiência. Esta política é muito positiva para os profissionais de saúde de Macau. Macau é uma região pequena, os profissionais de medicina não conseguem acumular muita experiência por causa do número limitado de pacientes e não há recursos suficientes para uma formação contínua dos médicos. As medidas de abertura e integração alargaram os horizontes dos médicos de Macau”, afirma. Além disso, acrescenta, a medida contribui para que os profissionais de saúde da RAEM conheçam as regras em vigor no Interior da China e possam compreender melhor o funcionamento do sector no outro lado das Portas do Cerco.
“É preciso algum tempo para que os médicos de Macau percebam e se habituem ao modelo dos serviços de saúde no Interior da China, porque o funcionamento entre os dois lados é diferente”, nota George Zhao. “Embora os médicos de Macau tenham experiência em servir pacientes do Interior da China, os hábitos dos habitantes no que toca ao uso de serviços de saúde é distinto.”
Novas possibilidades
Hazel Huang também está ligada à saúde. A jovem da RAEM estudou na Universidade de Macau e, em 2018, lançou a empresa Trendyi, que presta serviços na área da farmacêutica e medicina. A empresária aposta em Hengqin para implementar os seus projectos, sublinhando que a Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau é hoje um chamariz para recursos qualificados.
“Há cada vez mais jovens que mostram interesse em trabalhar em Hengqin, devido à sua reputação” enquanto local de emprego, defende, acrescentando que as directrizes para a zona de cooperação criaram um novo “espaço de imaginação” para o sector da medicina tradicional chinesa. “Hengqin é agora o nosso ponto de partida”, sublinha Hazel Huang, embora a Trendyi mantenha presença em Macau.
Parte dos planos da empresa passa por ajudar grupos farmacêuticos a tirar partido de um novo mecanismo que permite que produtos de medicina tradicional chinesa comercializados em Macau há mais de cinco anos sejam autorizados a entrar no mercado do Interior da China sem necessidade de um novo processo de licenciamento. A via é considerada uma “entrada expresso”, explica Hazel Huang. Isto porque normalmente são necessários mais de dez anos para completar o licenciamento para comercialização de um produto de medicina tradicional chinesa no Interior da China. A medida ainda está nos primeiros dias: de acordo com a empresária, apenas um produto de óleos essenciais beneficiou do esquema.
Hazel Huang reconhece que a Zona de Cooperação Aprofundada é um projecto “muito jovem”, pelo que é normal alguma incerteza em torno de determinadas medidas. Mas, como empreendedora, sublinha: é preciso abraçar os desafios.
O impacto das políticas destinadas a promover uma maior circulação de recursos humanos estende-se a toda a Grande Baía. Tang Yi, fundador da empresa KIDBOT Technology, decidiu mudar-se para Guangzhou em 2019. Antes disso, tinha passado pela zona do Delta do Rio Yangtze, onde chegou em 2007 – trata-se de uma das principais áreas metropolitanas da China, centrada em torno de Xangai.
O empresário reconhece que a KIDBOT Technology já beneficiou de medidas especiais das autoridades de Guangzhou para empreendedores de Macau. Entre elas estão as facilidades ao nível da atribuição de residência a quadros qualificados.
Além disso, estar em mercados de grande dimensão abre novas possibilidades, explica. Tang Yi dá um exemplo: no caso da KIDBOT Technology, que produz materiais didácticos na área das ciências utilizando técnicas de animação e multimédia, um produto destinado ao mercado de Macau pode atingir 50 mil alunos; em Guangzhou, o potencial salta para 9,45 milhões de estudantes, nas suas contas. Ou seja, há diferenças substanciais de potencial comercial entre Macau e as cidades da Grande Baía na província de Guangdong.
À Revista Macau, o empresário explica que escolheu Guangzhou como base porque a cidade é a capital provincial. Além disso, goza de uma posição privilegiada no que toca ao acesso aos outros mercados da KIDBOT Technology, que incluem Hong Kong, Macau, Shenzhen, Zhaoqing e Jiangmen.
Tang Yi considera que, face aos desafios que Macau enfrenta actualmente devido ao impacto negativo da pandemia da COVID-19, este pode ser o “momento oportuno” para entrar no mercado da Grande Baía, tirando partido das medidas de apoio existentes. Mas o empresário enfatiza a necessidade de ser competitivo. “Não se vende mais por ser ou não de Macau”, sublinha. “As pessoas compram ou não os nossos serviços ou produtos consoante sejam ou não bons.”