O Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, acaba de lançar a primeira oficina dedicada ao patuá. O entusiasmo de formadores e alunos está apenas no começo: a ideia é conseguir criar em Portugal um grupo de teatro à semelhança dos Dóci Papiaçám di Macau
Texto e fotografia Hélder Beja
Da primeira vez que regressou à Macau que o viu nascer e de onde partiu rumo a Portugal com apenas dois anos, Joaquim Ng Pereira já era adulto. Foi em 2002, para passar o Natal. Joaquim comprou uma câmara fotográfica numa das muitas lojas de tecnologia do território e quando voltou a Portugal tinha mais de 2000 fotografias tiradas. Este “filho da terra”, fruto de pai português e mãe chinesa, simplesmente não conseguia parar de registar tudo aquilo que lhe aparecia diante dos olhos. Agora, 20 anos e várias visitas a Macau depois, Joaquim Ng Pereira está às portas da reforma de uma carreira de informático na Câmara Municipal da Amadora, nos arredores de Lisboa, e assume o papel de formador da primeira oficina de patuá lançada pelo Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), localizado na capital portuguesa.
“O meu objectivo principal com esta e outras actividades é que Portugal não esqueça Macau e que Macau não esqueça Portugal”, diz Joaquim Ng Pereira, que se prepara para dedicar cada vez mais tempo à sua grande paixão: a cultura macaense e em especial o seu idioma minoritário reconhecido pela UNESCO.
A oficina de patuá do CCCM, que decorre até Outubro, tem ainda Sara Roncon Leotte como formadora. A iniciativa arrancou em Junho, com oito inscritos, entre jovens e adultos.
“Escolhemos chamar-lhe oficina pelo aspecto prático: tem teatro, tem récita. Vão ser 32 sessões ao longo de quatro meses”, com uma pausa em Agosto, nota Ana Cristina Alves, coordenadora do serviço educativo do CCCM e estudiosa da China e da língua chinesa há mais de duas décadas. “O público mostrou um muito maior nível de adesão à oficina de patuá do que a todas as outras oficinas que temos neste momento – e nós temos uma oferta imensa. Esta é aquela que hoje está a recolher maior adesão, o que é fantástico e revelador de que as pessoas já não estão apenas à espera do tradicional, querem ter novas experiências culturais.”
“O público mostrou um muito maior nível de adesão à oficina de patuá do que a todas as outras oficinas que temos neste momento”
ANA CRISTINA ALVES
COORDENADORA DO SERVIÇO EDUCATIVO DO CCCM
Para criar esta experiência cultural singular, Joaquim Ng Pereira – licenciado em Ciências da Comunicação e Cultura e mestre em Programação e Gestão Cultural com uma tese sobre o Museu de Macau do CCCM – vai fazer uso dos poemas em língua maquista de Adé dos Santos Ferreira, o seu “herói favorito”, e dos textos dramáticos de Miguel Senna Fernandes, advogado em Macau e encenador do grupo teatral local Dóci Papiaçám di Macau. “Não há melhor via do que a poesia para ter o contexto da alma. Há sempre qualquer coisa que fica que é diferente do contexto normal, a poesia é uma forma mais sublime de récita. Gosto de recitar poesia, toda ela, mas o patuá tem uma musicalidade que é diferente”, elabora Joaquim Ng Pereira.
Aproximar Portugal da China e de Macau
A oficina de patuá do CCCM é “voltada para a transmissão de saber pela arte, uma arte empenhada e comprometida na defesa de uma identidade”, diz Ana Cristina Alves. “Vamos ter não uma oficina tradicional de transmissão de conhecimento, mas uma oficina que chama as pessoas através da representação lúdica, do teatro, da dramaturgia, da récita.”
O objectivo, nota a representante do CCCM, é cumprir a carta de missão da instituição. Nesse documento, explica Ana Cristina Alves, a presidente, Carmen Amado Mendes, comprometeu-se a estabelecer um espaço que privilegiasse não só as relações de Portugal com a China, mas também as relações Portugal-Macau-China. “Há aqui, se quisermos, um chapéu de três bicos, em que Macau assume um papel de plataforma.”
Esse trabalho tem sido feito através de actividades como as Conferências da Primavera, que reúnem boa parte da intelectualidade portuguesa que hoje trabalha a Sinologia, os Estudos de Macau e os Estudos Asiáticos. “Do ponto de vista dos Estudos de Macau, havia que assumir uma posição de não apenas fazer a conferência tradicional sobre Macau na Primavera, mas também mostrar o que é que caracteriza a identidade macaense. E o que a caracteriza é a gastronomia – e nós já tínhamos abordado esse tema nas palestras do ano passado – e o patuá”, acrescenta a investigadora.
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Para Ana Cristina Alves, ninguém melhor que Joaquim Ng Pereira para dar a conhecer a língua macaense aos alunos portugueses. “Desde há muito tempo que ele assumiu a bandeira da língua de Macau. O Joaquim vestiu inteiramente a camisola. Não há encontro que se tenha aqui ou na Fundação Casa de Macau [em Lisboa] em que ele não procure dizer um poema ou fazer uma representação em patuá – e agora vai dar a oficina. Tudo isto dá trabalho, tudo isto implica empenhamento e é evidente que, quando a presidente me perguntou se eu queria coordenar este curso, eu sabia com quem estava a contar à partida: pessoas empenhadas por inteiro, com o coração.”
Sara Roncon Leotte, que estagiou com Ana Cristina Alves no Museu de Macau do CCCM em 2021, vinda do Instituto Politécnico de Bragança no norte de Portugal, será o braço direito de Joaquim Ng Pereira nesta formação de patuá. “Ela vai assistir às aulas, vai aprender, e quando acabar aqui vai ministrar o mesmo curso em Bragança, com o meu apoio”, aponta Joaquim Ng Pereira, que tem planos ainda maiores para o papiar maquista.
“O meu objectivo principal com esta e outras actividades é que Portugal não esqueça Macau e que Macau não esqueça Portugal”
JOAQUIM NG PEREIRA
FORMADOR DA OFICINA DE PATUÁ
Em 2023, o responsável pretende voltar a dar a oficina, desta feita na Fundação Casa de Macau. Depois, com os alunos que mostrarem interesse, quer dar o grande passo: formar em Lisboa um grupo de teatro em patuá com o apoio de Miguel Senna Fernandes e dos Dóci Papiaçám di Macau. “Os alunos já terão alguma bagagem e poderemos desenvolver este projecto de teatro. O Senna Fernandes vai-me enviar textos para podermos trabalhar”, revela com satisfação. E este não é o único projecto ligado ao patuá que os dois macaenses estão a desenvolver em conjunto: há também um programa radiofónico na calha (ver caixa nestas páginas). Por agora, Joaquim Ng Pereira tem pela frente o desafio de ensinar o idioma maquista a um grupo bastante heterogéneo de alunos.
Papiar em todas as idades
Joana Gonçalves chegou à China com apenas quatro anos. Viveu com os pais em Pequim, durante dois anos, e depois em Macau, de onde saiu já com 10. Hoje com 12 anos, a jovem aluna da oficina de patuá do CCCM sente uma forte ligação ao território. “Foi uma decisão minha frequentar este curso. Em Macau, na escola, demos a história e falámos sobre o patuá e as línguas que já quase ninguém falava. Gostava de aprender e se calhar ensinar a outras pessoas que já sejam mais velhas, para não se perder a língua”, diz.
Joana Gonçalves quer “aprender a língua macaense e também a história que está por detrás, como se formou” o linguajar macaense. A aluna frequenta actualmente o 7.º ano de uma escola americana nos arredores de Lisboa, onde também estuda mandarim. A ligação futura a Macau e à China é algo que vê com bons olhos. “Quando for mais velha, se calhar vou para lá, ainda não sei, mas acho que sim”, diz, sorridente.
“Gostava de aprender patuá e se calhar ensinar a outras pessoas que já sejam mais velhas, para não se perder a língua”
JOANA GONÇALVES
ALUNA DA OFICINA DE PATUÁ
Quem tem uma ligação antiga a Macau é Maria Helena do Carmo, aluna da oficina de patuá e autora de vários romances históricos sobre o território, como “Mercadores do Ópio” e “Bambu Quebrado”. Quando, ainda jovem, retornava para Portugal – vinda de Goa, onde vivera e trabalhara como locutora de rádio durante os últimos anos da administração portuguesa daquele território –, havia passageiros de Macau a bordo do navio. “Achei muito interessante, porque criei amizade com pessoas que lá estavam, portuguesas e macaenses, e fiquei sempre com a ideia de que seria interessante conhecer Macau”, conta. A professora reformada e escritora acabaria por pisar o território muito mais tarde, quando o marido ali foi colocado em serviço, corria o ano de 1991. “Decidi acompanhá-lo e gostei imenso”, recorda.
Em Macau, Maria Helena do Carmo leccionou no ensino secundário e fez um mestrado que a levou a estudar a História de Macau e a interessar-se pela cidade onde viveu até 1999. “É uma cultura interessante, muito híbrida na junção entre o chinês e o português, que me motivou a começar a escrever sobre Macau.”
A autora, natural da Madeira e hoje radicada no Algarve, tem em casa alguns livros em patuá. Resolveu aprender o idioma por considerar-se “uma estudante militante”.
“Faço algumas leituras de patuá, percebo até a maior parte das coisas, mas há determinadas palavras que não entendo, porque são mais específicas. Então, inscrevi-me no curso para poder descodificar correctamente qualquer leitura que faça em patuá ou algo que eu queira publicar”, explica.
Outro apaixonado de Macau e do patuá que decidiu inscrever-se na oficina é Raul Gaião, que publicou até um dicionário maquista baseado na obra de Adé dos Santos Ferreira. Quando soube de tão ilustre aluno, o formador Joaquim Ng Pereira interpelou-o: “‘Você sabe mais patuá do que eu’, disse-lhe, e ele riu-se. A questão é que academicamente eles sabem, mas é na parte da alma do patuá que existem lacunas e é isso que estou a ensinar – a forma de se expressarem em patuá e de sentirem aquilo que estão a dizer”.