O novo Plano Director da RAEM é considerado chave para o desenvolvimento urbano sustentável de Macau. O primeiro passo para a sua implementação está nos planos de pormenor, em que o Governo assegura já estar a trabalhar. No entanto, os efeitos no território serão medidos no longo prazo, sublinham vários especialistas
Texto Marta Melo
Em vigor desde meados de Fevereiro, o Plano Director da Região Administrativa Especial de Macau (2020-2040) é considerado estruturante para o desenvolvimento urbano futuro da cidade, ao traçar as linhas gerais de organização do território para as próximas duas décadas. De acordo com o Governo, o documento regulamenta o ordenamento do espaço físico da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e as condições de uso e aproveitamento dos solos, bem como inclui orientações sobre a organização das infra-estruturas públicas e dos equipamentos de utilização colectiva.
“Daqui para a frente, este plano tem capacidade e potencial para influenciar de uma forma positiva o desenvolvimento urbano de Macau”, defende o arquitecto Nuno Soares. Ao mesmo tempo, e depois de um desenvolvimento acelerado da cidade nas últimas décadas, pode “desempenhar um papel efectivo” na organização da utilização dos terrenos existentes, segundo o urbanista Kaleb Lam Iek Chit.
Ao estabelecer as linhas mestras a seguir até 2040, o Plano Director vai permitir olhar para Macau como um todo e não de uma forma “casuística”, afirma Nuno Soares, que é também coordenador do mestrado e licenciatura em arquitectura da Universidade de São José. Uma nova realidade que, acrescenta Edmund Li Sheng, docente em políticas públicas da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau, pode agilizar o trabalho dos vários departamentos públicos envolvidos na área do urbanismo. Segundo explica o académico, os projectos de empreendimentos urbanísticos deixam de ser analisados isoladamente, o que, consequentemente, “pode melhorar a eficiência” dos respectivos processos de aprovação.
Depois de apresentada a estratégia geral para o desenvolvimento urbano da RAEM, a materialização do Plano Director será efectivada nos planos de pormenor. Estes irão concretizar, de forma detalhada, as propostas de ocupação para as diferentes áreas do território, em função das finalidades estipuladas pelo Plano Director. Tal incluirá a definição e regulamentação para cada zona, de forma pormenorizada, das finalidades dos solos, das condições de construção e da distribuição das infra-estruturas públicas e dos equipamentos de utilização colectiva. No total, vão ser elaborados 18 planos de pormenor, correspondentes às Unidades Operativas de Planeamento e Gestão (UOPG) em que o território passa a estar dividido, segundo o Plano Director.
Começar pelo mais fácil
Com este Plano Director, e segundo a Direcção dos Serviços de Solos e Construção Urbana (DSSCU), pretende-se “criar uma cidade feliz, inteligente, sustentável e resiliente”.
Nuno Soares acredita no potencial impacto do documento na melhoria da qualidade de vida no território, mas acrescenta que tal depende dos planos de pormenor. “Para uma boa implementação do Plano Director, e para que tenha efectivamente impacto a nível da qualidade de vida e da organização do território, é muito importante a qualidade de cada um dos planos de pormenor e a sua respectiva articulação.”
Para o arquitecto, os planos de pormenor devem ser desenvolvidos de forma coordenada ao nível da calendarização e da articulação mútua, “mas com alguma rapidez”. A sugestão é que os trabalhos se foquem inicialmente em “zonas que estão a precisar de mais planeamento”.
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Do lado do Governo, há a garantia de que a elaboração dos planos de pormenor já começou, “de forma ordenada”. Numa resposta por escrito à Revista Macau, a DSSCU avança que “vai iniciar primeiramente os planos de pormenor de cinco Unidades Operativas de Planeamento e Gestão, incluindo a UOPG Este – 2”, ou seja, a Zona A dos Novos Aterros, junto ao norte da Península de Macau. Um trabalho que, acrescenta o organismo, além do Plano Director, terá em conta o Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da RAEM (2021-2025) e a Lei do Planeamento Urbanístico.
Na elaboração dos planos de pormenor, o urbanista Kaleb Lam defende que se deve “começar pelo fácil, antes do difícil”, sugerindo um foco, por exemplo, na Zona A dos Novos Aterros. O urbanista justifica-se com o facto de esta área já ter orientações de desenvolvimento urbano e por estarem em causa terrenos onde “não há propriedade privada”.
Também para o académico Edmund Li, a prioridade deve ser dada às zonas urbanas a nascer nos novos aterros. “São esperadas 100 mil pessoas a morar na Zona A”, recorda, acrescentando que parte dessa população poderá ser composta por pessoas actualmente a viver em prédios degradados na zona norte da península. A acontecer esse movimento, tal poderá “impulsionar os trabalhos de renovação urbana” nos bairros antigos do norte de Macau. “Existem muitos edifícios antigos na zona norte, o que causa muitos problemas nesta área”, sublinha Edmund Li.
Os planos de pormenor serão, de acordo com os esclarecimentos da DSSCU, sujeitos a “divulgação, exposição e consulta pública”. Mais informações serão divulgadas em “tempo oportuno”, diz o organismo.
Para a concretização efectiva do Plano Director, Edmund Li defende ainda medidas especiais por parte do Governo. Uma das sugestões passa pela “implementação de políticas ou regulamentação” para atrair privados para trabalhar em conjunto com as autoridades locais no desenvolvimento urbano da cidade. Também a nível da administração pública o académico considera ser benéfico “estabelecer um novo mecanismo de cooperação interdepartamental”, visando “coordenar e mobilizar os departamentos relevantes para completar” a execução do Plano Director.
Impacto: da habitação à economia
Um dos impactos do Plano Director será uma maior clareza na aprovação de projectos imobiliários, segundo Edmund Li. O académico aponta que o documento fornece novas ferramentas à administração pública para apoiar os processos de decisão.
Uma das apostas do Governo para o futuro, de acordo com o Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da RAEM (2021-2025), é a que se prende com as políticas de habitação. Ao abrigo do Plano Director, a habitação ocupará mais de 21 por cento da área total do território.
“Com o Plano Director, podemos saber que tipo de terrenos há e quais são os critérios para o desenvolvimento futuro”, sublinha Mark Wong, director da representação em Macau da consultora imobiliária internacional Jones Lang LaSalle. Porém, acrescenta, os efeitos da estratégia do Governo não serão imediatos.
Tendo em consideração os planos do Executivo, continua Mark Wong, uma das áreas de intervenção inicial do sector privado poderá ser a renovação urbana de prédios mais antigos. “Cerca de 30 por cento” dos edifícios de Macau “têm 30 ou mais anos”, refere. “Com o Plano Director, os investidores podem ajudar os proprietários, porque mais facilmente podem calcular os custos do investimento ou iniciar este tipo de empreendimento.”
O impacto da iniciativa do Governo sentir-se-á também na economia local. Para Ricardo Siu Chi Sen, docente da Faculdade de Gestão de Empresas na Universidade de Macau, os ajustes introduzidos pelo Plano Director vão dar uma “base clara e realista para apoiar a diversificação moderada da economia a longo prazo”, ao dividir o uso dos terrenos nas finalidades comercial, turística e industrial. “O Plano Director dá uma imagem clara e referências às empresas para definirem estratégias de longo termo”, diz o académico. O que, acrescenta, será relevante para o desenvolvimento da região como um centro mundial de turismo e lazer. Porém, Ricardo Siu, com obra publicada no campo da economia de Macau, sublinha que o impacto real do plano está interligado com a “reestruturação e melhoria de vários projectos de infra-estruturas”, incluindo estradas.
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Ao reorganizar o território por finalidades, Nuno Soares acredita que o Plano Director vai permitir que “exista, de uma forma mais clara, papéis urbanos para zonas diferentes da cidade”. O arquitecto dá o exemplo do Bairro do Iao Hon, que anteriormente era uma zona para a qual não existia uma visão estratégica particular, pelo que foi ficando como zona habitacional. De acordo com o Plano Director, “esta zona vai ser uma zona de comércio, junto às Portas do Cerco, o que vai ser um factor de desenvolvimento e vai reforçar a identidade nesse local”, refere.
Para Nuno Soares, a valorização das diferentes áreas da cidade passará, no entanto, pela articulação que for feita entre estas, através dos planos de pormenor. Um exemplo é a zona norte da península (UOPG Este – 1) e a Zona A dos Novos Aterros (UOPG Este – 2). “São casos claros em que, se os planos de pormenor forem bem articulados, conseguem trazer mais-valias a ambas as zonas. Consegue-se criar uma sinergia que aumenta muito o potencial de cada uma.”
Apostar na indústria
A concentração da indústria em zonas limítrofes do território é considerada positiva para a vida da população. O Plano Director estabelece quatro pólos industriais para Macau: Parque Industrial Transfronteiriço da Ilha Verde, Parque Industrial do Pac On da Taipa, Parque Industrial da Concórdia de Coloane e Parque Industrial de Ká-Hó. “Os terrenos originalmente destinados a indústria situados nas zonas habitacionais serão libertados para fins não industriais”, lê-se num comunicado do Conselho Executivo de Fevereiro, aquando da conclusão da discussão do regulamento administrativo referente ao Plano Director da RAEM.
Para Nuno Soares, esta medida permite “criar uma massa crítica” a nível industrial e acaba por “libertar o resto do tecido urbano da cidade para outras funções que são mais essenciais para a população no geral”.
A fusão, no passado, de áreas residenciais e industriais ficou a dever-se, diz Edmund Li, à inexistência de um plano de desenvolvimento económico e industrial a longo prazo, sendo um exemplo disso a Areia Preta. A deslocação das indústrias para fora das áreas residenciais trará, por isso, benefícios: “As operações de logística e de manufactura estão localizadas próximo de prédios residenciais, o que trouxe graves problemas de poluição e aumentou o congestionamento do tráfego. Se o Governo mantiver o seu plano de realocar estes empreendimentos industriais para a Taipa, Coloane e norte de Macau, a qualidade de vida dos residentes irá decerto melhorar”, afirma o académico.
Um dos objectivos da política passa também por incentivar a modernização e desenvolvimento industrial de Macau, de acordo com o Conselho Executivo. Kaleb Lam sustenta que tal deve ser assente numa estratégia: “Que tipo de indústria desenvolver? Qual o espaço que precisa? Qual o investimento?” O urbanista salienta, no entanto, que não deve ser criado um plano demasiado rígido, mas antes uma estratégia flexível.
Ricardo Siu considera que “é possível atrair empresas com forte valor acrescentado ou de pequena e média escala para criarem linhas de produção” nestes parques. “Por exemplo, o Governo poderia oferecer apoios e incentivos efectivos para atrair empresas ligadas à medicina tradicional chinesa ou a produtos de alta tecnologia”, diz.
É na promoção de indústrias de alta tecnologia que Edmund Li antevê estar o futuro dos pólos industriais de Macau. O académico acredita que os efeitos da pandemia na indústria do entretenimento demonstraram os problemas da concentração de Macau em torno de um único sector, relançando a necessidade de diversificação da economia. “A medicina tradicional chinesa e as indústrias de ponta tornaram-se a solução para a revitalização industrial” e, na opinião de Edmund Li, “devem estar no topo das prioridades governamentais”.
O académico defende igualmente uma maior cooperação entre universidades e sector industrial. “Esses parques podem servir como plataformas ou meios para unir instituições académicas e empresas, e também disponibilizar espaço para partilhar equipamentos científicos”, como acontece no parque empresarial tecnológico de Cyberport em Hong Kong, sugere.
Numa cidade de turismo, a indústria alimentar seria ainda “uma opção”, afirma Edmund Li, lembrando que há empresas históricas no território já bem estabelecidas e “com potencial para expandir o negócio e promover as marcas de Macau”. “Além disso, a indústria alimentar também pode criar sinergias com o sector de turismo e hotelaria, num efeito de complementaridade”, conclui.