É dos eventos mais populares do calendário desportivo de Macau, mas a sua dimensão ultrapassa em muito a mera envolvente desportiva. As Regatas Internacionais de Barcos-Dragão vão voltar a concentrar no final do mês e no início de Junho dezenas de equipas e centenas de entusiastas no Centro Náutico da Praia Grande. À sombra da história, embalados pelo rufar dos tambores, os barcos-dragão elevam o conceito de espírito de equipa a todo um novo patamar. A Revista Macau foi perceber porquê
Texto Marco Carvalho
Duas braçadas de força, outras tantas de companheirismo, uma mão cheia de resiliência, uma pitada de disciplina, outra de perseverança. A receita não é uma fórmula mágica e não garante inequivocamente o sucesso de remo na mão, mas sem estes – e outros atributos – é pouco provável que qualquer equipa faça boa figura nas regatas de barcos-dragão.
A modalidade – que combina esforço, ritmo e tradição – ganhou inesperada popularidade um pouco por todo o mundo desde o final da década de 1970. Em Macau, as primeiras regatas organizadas foram promovidas em 1979 e tornaram-se, desde então, um dos mais populares certames do calendário desportivo do território, ao ponto de transformarem a paisagem sonora da orla ribeirinha da cidade nos meses que antecedem o tiro de partida para a competição. O rufar incessante dos tambores ombreia, às primeiras horas da manhã e ao final da tarde, com o canto dos pássaros primaveris, investindo as águas da antiga baía da Praia Grande de uma efémera centralidade. A zona, que acolhe desde há quase duas décadas o Centro Náutico de Nam Van, vai engalanar-se a 29 de Maio e a 3 de Junho para receber a edição de 2022 das Regatas Internacionais de Barcos-Dragão, uma competição para a qual dezenas de tripulações locais treinam – por vezes durante meses a fio – com indisfarçável afinco e sacrifício.
Muito suor, algumas lágrimas
Em termos formais, as únicas condições exigidas aos participantes para entrarem nas regatas são um atestado médico e “a adaptação ao meio aquático”, com o Instituto do Desporto e a Associação de Barcos de Dragão de Macau – China a fazerem depender a participação na prova da capacidade dos atletas para “nadar uma distância mínima de 100 metros”. A chave para um desempenho bem-sucedido na competição está, porém, menos na capacidade física de cada um do que na apetência para trabalhar em equipa.
O veredicto é de Sandra Bártolo, remadora macaense que capitaneou a selecção feminina de Barcos-Dragão de Macau que disputou a 7.a edição dos Campeonatos do Mundo da modalidade, em Berlim, na Alemanha, em Agosto de 2005. Antiga praticante de ciclismo e de triatlo, Sandra Bártolo garante que das três modalidades os barcos-dragão são, de longe, a mais exigente. “Os barcos-dragão estão a um nível muito mais elevado. É muito mais difícil porque é uma modalidade mais competitiva e é uma competição que exige um grande espírito de equipa”, assegura. “No caso do ciclismo, o desempenho depende de nós. Na natação e no triatlo também. Nos barcos-dragão não. Tu podes treinar aquilo que quiseres, mas o barco não é uma pessoa. Se não houver espírito de equipa, não vamos a lado nenhum”, reitera a antiga atleta.
“Os barcos-dragão estão a um nível muito mais elevado. Se não houver espírito de equipa, não vamos a lado nenhum”
SANDRA BÁRTOLO
REMADORA QUE CAPITANEOU A SELECÇÃO FEMININA DE BARCOS-DRAGÃO DE MACAU
Manuela Chan subscreve na íntegra a análise de Sandra Bártolo, mas à capacidade para trabalhar em equipa acrescenta ainda uma indispensável predisposição para o sacrifício. Directora de marketing de uma empresa de organização de eventos desportivos, Manuela Chan integrou pela primeira vez a tripulação de uma equipa de barcos-dragão há 22 anos e, mais do que um desporto, encontrou um desafio e uma filosofia de vida. “As regatas de barcos-dragão não são, para mim, apenas um desporto. Mais do que uma modalidade, é uma cultura. Uma pessoa, um indivíduo não consegue ser bem-sucedido nesta competição. A única forma de ser bem-sucedido é trabalhando em equipa. Há muita gente envolvida, muitas ideias, muitas perspectivas. O maior desafio é o de conseguir fazer com que todas estas pessoas partilhem as mesmas perspectivas e um mesmo objectivo. É a única forma de garantir um desempenho bem-sucedido”, assinala a atleta.
“São necessários muitos sacrifícios. É necessário sacrificar o tempo que dedicamos à família, é necessário conseguir estabelecer uma relação equilibrada com o trabalho e uma partição mais racional do nosso tempo. O sucesso vai depender, em grande medida, da forma como cada um encara os barcos-dragão”, complementa.
Abraçar o dragão
Para Manuela Chan, o nível de compromisso para com a modalidade atingiu há pouco mais de três anos um patamar inédito. Para além de praticante, a atleta é também presidente da Assembleia Geral da Associação dos Entusiastas dos Barcos-Dragão de Macau, organismo que ajudou a fundar e que tem como principal propósito promover “a cultura dos barcos-dragão” dentro e fora das fronteiras da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
Entre os grandes objectivos da associação, refere Lewis Lok, estão ainda a popularização da modalidade e o desenvolvimento de uma estratégia sistemática de preparação dos atletas e das equipas que disputam as regatas. Para isso, explica o presidente da Associação dos Entusiastas dos Barcos-Dragão de Macau, os responsáveis pelo projecto propõem-se arregimentar as escolas de Macau e reforçar as estratégias de divulgação do potencial da modalidade junto das gerações mais novas. “O nosso principal objectivo é o de desenvolver, promover e popularizar a cultura dos barcos-dragão. Por outo lado, queremos organizar e encorajar os residentes de Macau, em particular os estudantes, a treinar e a disputar as competições. Em certa medida, queremos transmitir valores como a combatividade e a responsabilidade, ao mesmo tempo que promovemos a cooperação e o espírito de equipa”, salienta o dirigente.
“Gizamos um plano a longo prazo. Contactamos diferentes escolas no sentido de as exortar a trabalhar connosco para promover os barcos-dragão. Aquilo que pedimos a esses estabelecimentos é que escolham dez ou doze estudantes e os convençam a criar uma equipa que possa representar a sua escola. O resto é connosco”, assegura Lewis Lok.
A modalidade, sustentam os dirigentes da Associação dos Entusiastas dos Barcos-Dragão de Macau, é uma boa forma de cultivar valores como a coesão, a partilha e o espírito de equipa. O desígnio parece explicar a grande popularidade de que as Regatas Internacionais gozam junto das principais empresas do território, mas também no seio da própria administração pública. A competição reúne desde há vários anos uma mistura eclética de tripulações em representação de associações, de concessionárias de jogo, de universidades, departamentos governamentais e instituições bancárias.
Armindo Vaz, que representa uma equipa de um banco local, diz que o grupo é inteiramente amador e detalha a exigência da prova. “A forma como se arranca é um aspecto crítico, mas manter o ritmo ao longo do minuto seguinte é igualmente fundamental. São menos de dois minutos de prova, mas são dois minutos extremamente intensos. É preciso dar-se tudo o que se tem, em termos de força, de concentração, de coordenação e de resistência”, explica.
O funcionário bancário estreou-se nas lides dos barcos-dragão em Maio de 1996, antes ainda de se radicar em Macau. A primeira impressão foi tão forte que a participação nas Regatas Internacionais se tornou um ritual anual desde então. “Os barcos-dragão são um bom exemplo de ‘team building’. Há duas décadas, quando comecei a participar, acho que todos participávamos apenas pela festa e pela oportunidade de estarmos num ambiente bonito, a fazer uma coisa divertida. Gradualmente as provas tornaram-se muito mais competitivas, aperfeiçoou-se a técnica, reduziram-se os tempos, mas a camaradagem e o espírito de equipa permanecem os mesmos”, salienta. “Iniciam-se os treinos com desconhecidos e acabam-se as provas com um grupo de amigos, festejando juntos num ‘yum cha’”, acrescenta Armindo Vaz.
O sopro do coração
Com uma envolvente cultural que não encontra par em qualquer outra modalidade desportiva, as regatas de barcos-dragão combinam – com surpreendente harmonia – ritmo e esforço, história e modernidade. Na tradição confuciana, o dragão representa a força, a virtude e a honestidade e o festival do Tung Ng – que homenageia a memória do poeta Qu Yuan, mas também assinala o solstício de Verão – é visto como uma comemoração da vida, celebrada com o ritmo do tambor a marcar o compasso.
“O tambor é a alma da experiência a bordo dos barcos-dragão”, esclarece Manuela Chan. “Da primeira estocada até ao final, é imperativo que todos os remadores prestem atenção ao tambor. É a alma, é o coração do dragão. A forma como o tamborileiro toca o tambor vai determinar a forma como a tripulação rema, uma estocada é recompensada com uma remadela por parte da equipa”, ilustra.
“As regatas de barcos-dragão não são, para mim, apenas um desporto. Mais do que uma modalidade, é uma cultura”
MANUELA CHAN
PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA GERAL DA ASSOCIAÇÃO DOS ENTUSIASTAS DOS BARCOS-DRAGÃO DE MACAU
Se o tambor é o metrónomo que dita o ritmo a que as embarcações galgam as águas, à tripulação dos barcos, sustenta Sandra Bártolo, é exigido que responda como uma orquestra em plena sintonia. Para a antiga capitã da selecção feminina de Barcos-Dragão de Macau, tanto o tamborileiro como o homem do leme têm um papel essencial na estratégia da equipa, mas o verdadeiro artífice dos bons resultados é o treinador.
“O treinador tem que conhecer cada um dos elementos que integram a equipa. E são 28 nas lides das grandes embarcações. São 28, contando com o homem do leme, o tamborileiro e os atletas suplentes. O treinador tem de perceber o que cada um desses atletas consegue dar e perceber que lugares devem ocupar na embarcação”, elucida Sandra Bártolo. “Com 20 lugares num barco, cada um tem o seu papel. Os primeiros dão o ritmo. O tamborileiro tem que olhar para os primeiros remadores. Os últimos, mesmo que não tenham ritmo, têm que ter força. São eles o motor do barco”, explica.
Exigente e complexa, mas ao mesmo tempo aliciante e arrebatadora, a modalidade viu o seu valor patrimonial reconhecido pelas autoridades da RAEM. O Instituto Cultural invocou o importante papel que as Regatas de Barcos-Dragão desempenham “na consolidação dos laços culturais da comunidade chinesa local” para justificar a sua inclusão na lista do Património Cultural Intangível de Macau. Em 2009, a UNESCO já tinha classificado o Festival de Tung Ng como Património Cultural Imaterial da Humanidade, tornando-se no primeiro festival tradicional da China investido do estatuto de património mundial.