Macau deu mais um passo para o desenvolvimento do mercado obrigacionista local com o lançamento, em Dezembro, da Central de Depósito de Valores Mobiliários. É uma infra-estrutura financeira considerada fundamental para o sucesso do sector, cuja meta é promover a diversificação económica do território
Texto Marta Melo
Macau já tem um sistema centralizado de depósito de valores mobiliários. A infra-estrutura, acredita o Secretário para a Economia e Finanças do Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), Lei Wai Nong, vai “permitir consolidar as bases para o desenvolvimento” de um mercado obrigacionista local.
A Central de Depósito de Valores Mobiliários de Macau – conhecida pela sigla “CSD” – é operada pela Central de Depósito e Liquidação de Valores Mobiliários de Macau Sociedade Unipessoal Limitada (MCSD), empresa de capitais públicos que fornece serviços de registo, depósito e liquidação de valores mobiliários. Lei Wai Nong sublinha que este é um mecanismo “indispensável para os mercados internacionais maduros de obrigações”.
No primeiro dia de funcionamento do sistema foram efectuados o registo e depósito relativos a duas emissões de obrigações – pela Sucursal de Macau do Banco da China e pela Sucursal de Macau do Bank of Communications, respectivamente –, com o montante global a rondar 3,6 mil milhões de patacas, segundo a Autoridade Monetária de Macau (AMCM). As duas operações atraíram uma procura acima da oferta, com mais de uma dezena de bancos comerciais e instituições de investimento na posição de compradores.
Até agora, a cidade tinha apenas uma empresa a prestar serviços relacionados com obrigações – a Transacção de Bens Financeiros de Chongwa (Macau), S.A., fundada pelo grupo estatal Nam Kwong e conhecida como MOX –, mas o Executivo da RAEM tem vindo a promover várias iniciativas nesta área nos últimos anos. A AMCM assinala o incentivo à emissão em Macau de obrigações pelo Ministério das Finanças e pelo Governo Popular da Província de Guangdong, em 2019 e 2021, respectivamente, e a isenção do imposto de selo e do imposto complementar de rendimentos em relação a obrigações emitidas em Macau. Segundo dados do organismo, até Dezembro de 2021 tinham sido disponibilizadas 91 emissões de obrigações em Macau – emitidas ou listadas localmente –, com um valor total de 266,9 mil milhões de patacas.
Em mais um passo para promover a emissão de obrigações em Macau, a AMCM está habilitada, desde meados de Janeiro, para atribuir um Número Internacional de Identificação de Títulos (ISIN, na sigla em inglês) a valores mobiliários. O objectivo é tornar mais rápida a emissão de obrigações a nível local e facilitar a sua negociação, mesmo fora da região.
Alargar a oferta
Para Rose Lai Neng, professora em finanças na Faculdade de Gestão de Empresas da Universidade de Macau, é “sempre importante para qualquer economia um passo tão grande” como aquele dado por Macau com a criação de um mercado obrigacionista. Segundo a académica, não só pelos “benefícios reais”, mas também por “reposicionar Macau no mundo, para além de um local de jogo”.
As desvantagens da concentração económica tornaram-se mais óbvias nos últimos dois anos com a COVID-19. Os efeitos da pandemia nas indústrias do jogo e do turismo locais, entende Tirso Olazabal, advogado baseado em Macau e especializado em banca e finanças, vieram “acelerar a necessidade de diversificar as receitas do Governo”. No actual contexto, adianta, a resposta do Executivo de criação de um mercado financeiro “é fundamental para a diversificação” do tecido económico.
Nessa senda, no futuro, acredita Tirso Olazabal, “é expectável que a MOX também venha a explorar a introdução de outros produtos financeiros no mercado de Macau”, ligados a fundos de obrigações cotados (conhecidos como “bond exchange traded funds” ou “bond ETFs”) ou fundos cotados de gestão e investimento imobiliários (também designados por “real estate investment trusts” ou “REITs”). Um cenário que, argumenta o advogado, “será determinante para uma evolução sustentável do mercado financeiro”.
“A Central de Depósito de Valores Mobiliários constitui uma infra-estrutura financeira fundamental e indispensável para os mercados internacionais maduros de obrigações”
LEI WAI NONG
SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS
A meta da diversificação é clara para o Governo da RAEM. Segundo a Autoridade Monetária, o mercado obrigacionista vai não só “ampliar o leque de canais de financiamento para as empresas de Macau e da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, como permitir “o enriquecimento em termos de produtos e serviços de investimento disponíveis”. Tal irá, consequentemente, promover o desenvolvimento de indústrias relacionadas, nomeadamente instituições para a colocação de obrigações ou agências de notação de crédito, afirma a AMCM.
João Rato, director do Departamento de Gestão de Risco do Banco Well Link, entende que a criação de um mercado obrigacionista, “só por si, impele o sector financeiro para novos patamares de especialização e sofisticação”. Os benefícios podem ser a vários níveis: fontes alternativas de criação de valor ou a criação de novos postos de trabalho. “Mas também no melhor aproveitamento das características especiais de Macau enquanto Região Administrativa Especial da República Popular da China, possibilitando-lhe reposicionar-se de forma mais clara e efectiva como plataforma internacional de negócios na região da Grande Baía”, conclui.
Ainda assim, o caminho terá de se fazer caminhando. António Félix Pontes, antigo presidente do Instituto de Formação Financeira, ressalva que “a implementação com sucesso de qualquer mercado de obrigações é demorada”. No caso de Macau, há que contar ainda com o relevo da indústria do jogo: o “peso” relativo de um mercado de obrigações nas receitas públicas locais “não será comparável com o que o imposto sobre as receitas do jogo tem”, avisa. O economista compara o actual imposto directo de 35 por cento sobre as receitas brutas do jogo com, por exemplo, a taxa de 0,0037 por cento por ano cobrada pela Central de Depósito e Liquidação de Valores Mobiliários de Macau para a custódia de obrigações de valor total até 15 mil milhões de patacas. Segundo sublinha, a diferença é superior a 9000 vezes a favor do imposto sobre as receitas do jogo.
Grande Baía e lusofonia
A Grande Baía e o mundo lusófono são considerados dois importantes motores para a expansão do mercado obrigacionista de Macau. No lançamento da Central de Depósito de Valores Mobiliários, o Secretário Lei Wai Nong frisou a relevância do projecto para o posicionamento de Macau enquanto plataforma de prestação de serviços financeiros entre a China e os países de língua portuguesa. A integração do território no desenvolvimento nacional foi, por sua vez, destacada por Xu Liangdui, da China Central Depository & Clearing Co., Ltd, empresa do Interior da China que fez parte do grupo de trabalho para a criação da Central de Depósito de Valores Mobiliários.
João Rato observa que, embora a dar os primeiros passos, há “uma linha condutora” na criação do mercado de obrigações, que “assenta em bases muito sólidas” ligadas ao projecto de desenvolvimento da Grande Baía. “Macau tem vantagens comparativas históricas que lhe permitem um papel especial na abertura da área financeira ao exterior”, acrescenta o responsável do Banco Well Link.
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Com um plano de desenvolvimento bem definido, argumenta Rose Lai, Macau pode preencher “um nicho”, não só para a Grande Baía e para a China como um todo, mas também para o mundo. “Macau tem a vantagem única de servir tanto a China quanto os países de língua portuguesa”, afirma a académica.
A ligação à China parece certa num primeiro momento, diz o advogado Tirso Olazabal. Isto para depois, numa fase seguinte, abrir-se o mercado a “outras jurisdições que tenham interesse em aceder a capitalização chinesa, tais como empresas portuguesas com negócio na China”.
A lusofonia apresenta-se nesta realidade com “potencial”, reforça João Rato, mas o espaço lusófono “deverá ser trabalhado”, nomeadamente para dar a conhecer os emitentes e os respectivos projectos. “Macau pode ajudar a suprir esse ‘gap’ de conhecimento e informação”, aponta.
O responsável acredita ainda que “modelos de negócio que contemplem uma ligação à China terão mais possibilidade de sucesso”, como sejam “empresas lusófonas com participações de capital chinês, ou já com presença ou planos de expansão para a China”. Mas há outras sugestões: “Emissões de dívida soberana de países lusófonos seriam outra forma de ajudar a abrir este mercado a emitentes ‘corporate’”.
Nesta relação com o mundo lusófono, o papel de ponte de Macau, defende Tirso Olazabal, “poderá ajudar a uma aceleração da indústria financeira, nomeadamente no que se refere a áreas como obrigações, locação financeira e gestão de patrimónios”.
António Félix Pontes considera que Portugal e Brasil são os países lusófonos em condições, a nível governamental ou empresarial, de escolher Macau para a emissão de obrigações, “muito por força de motivos de ordem política”. Já da parte das empresas da Grande Baía e de outras zonas do Interior da China, Félix Pontes diz que podem escolher Macau “para dar um impulso ao desenvolvimento do mercado local desses títulos, indo ao encontro da intenção do Governo da RAEM”.
Nesta aposta de criação de um mercado de obrigações, e apesar do actual contexto pandémico, João Rato defende um foco em “emissões para financiar projectos relacionados com turismo e lazer, que é onde Macau tem ‘expertise’”. E, acrescenta, “nesta fase inicial, emissões por parte de [entidades] institucionais e do próprio sector financeiro são muito positivas para dar lastro e visibilidade ao mercado”. Futuramente, para João Rato, “emitentes de matriz lusófona poderão considerar Macau para se financiarem neste mercado, nomeadamente em renminbi”.
Tornar Macau mais competitiva
Um dos desafios para Macau, segundo João Rato, prende-se com o facto de o território “não ser muito conhecido pelo sector financeiro” internacional e de não ter praticamente histórico no domínio obrigacionista. Não esquecendo a existência, na vizinhança, de “um centro financeiro de nível mundial como Hong Kong”.
A concorrência na região é forte, concorda Félix Pontes. A emissão internacional de obrigações por entidades a operar na Ásia, contextualiza, “cresceu mais de cinco vezes de 2006 (US$106 mil milhões) para 2020 (US$575 mil milhões), com os centros financeiros asiáticos a ganharem quota crescente”. E, nesta realidade, destaca-se Hong Kong, que “ultrapassou os centros financeiros não-asiáticos para se tornar o sítio mais procurado” para a emissão deste tipo de títulos internacionais. Para o economista, há que ter também em conta outros centros financeiros desta região geográfica, como Singapura e Malásia, que “dispõem de reconhecimento internacional e que estão a funcionar há já muitos anos”.
João Rato entende que a concorrência deve ser vista como “um forte incentivo” para encontrar “factores diferenciadores”. Tal pode passar pela “competitividade ao nível do preço e da fiscalidade associada ao mercado de obrigações”, sugere.
No capítulo da regulação, Tirso Olazabal propõe introduzir “benefícios à emissão de obrigações em Macau”. O advogado aponta também a possibilidade de “isenções fiscais com carácter permanente”, bem como a redução dos “custos de emissão e listagem”, por forma a tornar o mercado mais “competitivo” na região.
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Actualmente, segundo a AMCM, são várias as medidas em vigor em termos da livre circulação de capitais e da competitividade fiscal. Tal inclui a isenção fiscal de imposto complementar de rendimentos aos juros e rendimentos obtidos através de obrigações emitidas em Macau, ficando ainda isentos do imposto de selo os actos de emissão, compra e venda, ou de cessão onerosa, de obrigações que sejam emitidas na RAEM.
Ainda sobre a questão da escala do mercado de obrigações de Macau, João Rato acredita que “pode ser mitigada”. Para tal, aponta soluções como “a criação de parcerias, regionais e internacionais”, para aumentar a “visibilidade e liquidez do mercado, principalmente no mercado secundário”.
Desafios do mercado obrigacionista
A par da escala do mercado local, a “falta de uma estrutura diversificada e experiente” é também um desafio para Macau, considera Tirso Olazabal. Actualmente, elenca, há apenas “uma sociedade com licença para prestar serviços de ‘asset management’, duas sociedades de locação financeira e duas instituições de intermediação financeira que prestam serviços de ‘broker’”.
A falta de mão-de-obra especializada pode ser outra dificuldade para o sector na sua fase inicial. Mas a académica Rose Lai acredita no “potencial” do mercado local. “Com algum tempo e oportunidades neste novo projecto, estou certa de que as pessoas em Macau serão capazes de corresponder às expectativas”, diz.
Félix Pontes propõe contar também com os estudantes do Interior da China que frequentam as universidades de Macau. O economista recorda que estão “sempre posicionados nas primeiras posições no ‘ranking’ dos alunos”. Por isso, sugere a adopção de medidas similares àquelas que existem em Hong Kong, que promovam a absorção dos estudantes do Interior da China pelo mercado laboral local após a conclusão dos respectivos estudos.
Do lado do Governo, e para melhor dinamizar o sector, a AMCM diz poderem ser “promovidas acções de formação” através do Instituto de Formação Financeira. O organismo espera que, com o desenvolvimento do sector, Macau “possa atrair mais emissores qualificados e investidores potenciais”.
Na rota dos desafios é ainda elencada a necessidade de adaptar a legislação financeira, que Tirso Olazabal considera “insuficiente”. O Governo está a trabalhar nesse sentido e, acredita o advogado, “toda esta revolução legislativa terá um papel preponderante no desenvolvimento sustentável do mercado financeiro de Macau”.
Quanto ao trabalho legislativo em curso, a AMCM dá conta da elaboração de um regime jurídico estipulando normas para o mercado de valores mobiliários, bem como da reformulação do Regime Jurídico do Sistema Financeiro. Esta última prevê, segundo a AMCM, a optimização do regime de emissão de obrigações, a introdução da autorização de bancos de investimento e a extensão do âmbito das actividades dos intermediários financeiros.
O enquadramento legal e a regulamentação específica, nota João Rato, “poderão ser decisivos para atrair e dar mais confiança aos vários ‘stakeholders’, nomeadamente emitentes e investidores internacionais”, em relação ao mercado obrigacionista de Macau.