A Mok Yi Kei, a Tong Iec Pak Fa Fui, o Restaurante Solmar e a Companhia de Produtos da China completam o leque das 12 Marcas Típicas de Macau. Por se destacarem na respectiva área, as três empresas adquiriram o título atribuído pelo Governo por terem preservado o negócio ao longo de décadas
Texto Catarina Brites Soares | Fotos DR
Mercearia de Mok Yi Kei: Quem falou em sobremesas?
A Mok Yi Kei é uma das paragens obrigatórias na Rua do Cunha e mais uma das 12 Marcas Típicas de Macau. De fronte para a praça, no número 9, é das primeiras lojas da via pedonal quando se desce.
Assim que se avista o espaço de esquina, os olhos fogem para uma das especialidades por que é mais famosa: os gelados. A serradura, a gelatina de ágar-ágar e os produtos à base do fruto durião são outros dos fortes da loja conhecida pela variedade de sobremesas.
À semelhança de muitos outros negócios, também este começou de forma modesta, com uma carrinha que vendia petiscos e sobremesas. Ninguém conhece a história ao pormenor, mas Liang Kui Zhi, que a conta à MACAU, sabe que foram os avós do actual dono, seu marido, quem lançou o negócio perto da Rua dos Clérigos, em 1938.
Começaram de forma ambulante e mais tarde conseguiram fixar-se nos recantos que outras lojas com licença lhes cediam para evitarem problemas com as autoridades. Em 1954, o casal abriu um estabelecimento próprio na Rua do Cunha, perto do actual, que é hoje uma das marcas recomendadas pelo Guia Michelin, famosa pelo gelado de durião e a gelatina ágar-ágar fabricados manualmente.
Mok Pem Kuen e Liang Kui Zhi, que há cerca de duas décadas assumiram o negócio, diversificaram a oferta e melhoraram a que havia. O casal apostou nos sumos, maior variedade de gelados e gelatina de ágar-ágar – com cerca de 10 sabores agora, e novos petiscos, como almôndegas de peixe. Os produtos feitos à base de ninho de andorinha e de durião são os mais famosos. O gelado do fruto da Malásia é feito com o “Musang King”, o melhor, garante a dona, que começou na loja como funcionária há cerca de 30 anos. Foi assim que conheceu o marido. “A minha sogra queria passar-nos a responsabilidade, mas eu disse que só aceitaria se conseguisse fazer a gelatina de ágar-ágar com sabor de coco”, recorda, ressalvando que nunca tinha feito sobremesas antes. “Nem sequer prová-las. Sempre fui muito pobre. Tinha muito medo de não conseguir.”
Mas conseguiu. Não só foi bem-sucedida na receita caseira como a melhorou. “Até então a gelatina estava dividida em duas camadas: uma parte mais líquida com o sumo e outra mais sólida, onde se concentrava a gelatina. Consegui juntá-las e que ficasse tudo com uma textura homogénea”, orgulha-se.
Não guarda segredo do feito e conta que chegou ao resultado porque percebeu que ambas as camadas tinham de estar à mesma temperatura para se poderem fundir sem que uma solidificasse antes da outra. “Fui experimentando, experimentando até que percebi que a temperatura ideal seriam 60 graus.”
O percurso, confessa, foi solitário. Os sogros mudaram-se para Hong Kong, onde já viviam as restantes filhas, e ninguém lhe ensinou. O marido também pouco sabia dos segredos da casa e só lhe restou arriscar. É por isso que hoje fala com orgulho da marca que passou a ser uma das 12 típicas de Macau. “Olho para o reconhecimento como um incentivo para nos esforçarmos ainda mais e fazermos melhor. Este selo é o resultado do caminho que fizemos. Só somos uma Marca Típica de Macau porque os clientes nos apreciam.”
As filas no exterior confirmam-no. Apesar de ser dia de semana, há alguns gulosos que se juntam para provar as sobremesas e bebidas caseiras, como os tradicionais chás chineses e chás com café. “É tudo feito à mão. Sou eu que faço tudo. Só temos uma empregada que fica ao balcão”, salienta.
Antes da pandemia e do consequente decréscimo da procura, Liang diz que dormia três a quatro horas por dia. “Estava sempre a trabalhar”, realça. Desenvolveu truques para conseguir dar conta do recado sem ajuda. “Enquanto o chá ferve, por exemplo, vou adiantando outras coisas.” Todos os dias repete a rotina para ter os produtos frescos e na quantidade suficiente. “Ainda tentei ensinar e ter mais empregados, mas demora muito até que saibam fazer de forma perfeita e tenho receio. Só fico descansada quando sou eu a cozinhar”, admite. “Mas penso como será o futuro.”
Sem descendência e face ao desinteresse da geração seguinte, confessa a preocupação com a continuidade. “Estou cada vez mais velha e cansada. Gostava de arranjar alguém que tivesse carinho por isto porque este tipo de vida só é possível assim. É muito dura, e sem amor ao negócio, não dá resultado. Implica muita dedicação.”
Para o reforçar, recorre à expressão que se popularizou nesta área e reforça: “É difícil abrir um negócio, mas ainda mais difícil é mantê-lo”. “Tem de se gostar muito”, diz. “E eu gosto. Sempre fui muito gulosa. Adoro fazer sobremesas.”
Tong Iec Pak Fa Fui: Conservação de frutos com toque centenário
A Tong Iec Pak Fa Fui começou com o bisavô do actual gerente, em 1903, na cidade de Jiangmen. Foi na província de Guangdong que a empresa foi fundada. Vai na quarta geração. Lei Kam, um dos fundadores e o único com descendentes, transferiu a produção para Macau em 1918, por achar que seria mais fácil assegurar a exportação dos produtos por ser uma cidade portuária. “O meu bisavô achava que era mais conveniente o transporte marítimo porque no terrestre havia mais sobressaltos, que acabavam por estragar os artigos”, explica o bisneto, Lu Weiwen, herdeiro e a cara da empresa actualmente.
A fábrica foi transferida do Interior do País para a zona do Patane e a primeira loja abriu na Rua 5 de Outubro. Enquanto explica o início da empresa em Macau, Lu mostra fotos da zona e do processo de secagem ao sol dos diversos produtos, método artesanal que a empresa mantém.
Depois do bisavô, o negócio foi liderado pelo avô, pai e irmã mais velha de Lu Weiwen. “Em 2012, foi a minha vez. Sou o mais novo dos irmãos. A minha irmã esteve à frente do negócio cerca de 20 anos. Agora, compete-me a mim”, realça, com orgulho.
Abraçar o legado teve os seus desafios. O maior, diz, foi o de modernizar a empresa e a marca. “Para os meus familiares isto era um negócio de família e uma forma de ganhar a vida. Eu tive outras preocupações, como actualizar e criar uma imagem de marca, ter outro cuidado com a imagem das embalagens, ou seja, na forma nos apresentamos ao cliente”, explica. “Antes de mim, a contabilidade ainda era feita à mão. Também informatizei tudo.”
Mudou o que entendeu necessário, manteve o que percebeu ser essencial: os produtos são praticamente os mesmos, assim como a forma de produção, que continua a ser artesanal. “A oferta é praticamente idêntica: os molhos e frutos em conserva, cristalizados e secos. A única diferença é que deixámos de produzir alguns e acrescentámos outros.”
Dos molhos, destaca os vinagres de arroz e o doce. “Há um prato muito tradicional em Macau que se cozinha quando nasce um bebé e que leva gengibre, pé de porco, ovo e vinagre doce. Quase todas as famílias usam o vinagre da nossa marca para cozinhar esse prato.”
No que respeita aos frutos, Lu realça o pêssego cristalizado, uma invenção da marca e a iguaria mais famosa. “Nos anos de 1970, dizia-se que quem viesse a Macau e não provasse o pêssego da nossa marca era como se nunca tivesse vindo”, recorda, em tom de brincadeira.
A produção em Macau durou até 1993, quando a família fechou a fábrica na região e voltou ao distrito de Xinhui, na cidade de Jiangmen onde nasceu a marca. “Com o desenvolvimento de Macau, o custo da mão-de-obra aumentou assim como as rendas, e começou a haver cada vez mais prédios altos. Deixámos de ter espaço ao sol, fundamental para o processo de secagem dos alimentos”, refere, acrescentando que ainda há artigos embalados na cidade e que o molho de ameixa também é produzido localmente.
Na região permaneceram as lojas, uma delas na Rua da Encarnação, onde se realizou esta entrevista ao mesmo tempo que entram e saem vários clientes. De um lado e do outro, há filas e estantes de baldes com frutos e os molhos. A venda a retalho foi outra das inovações da era de Lu Weiwen. Até então, a empresa era apenas fornecedora de outras marcas.
A palavra “Tong Iec” significa “benefício para todos”e “Pak Fa Fui” quer dizer “o primeiro lugar de frutas cristalizadas”. Os produtos de frutas cristalizadas e molhos da empresa continuam a ser produzidos por método ancestral com materiais naturais, que a empresa garante de alta qualidade. É no Interior do País, na região de Taiwan e em Hong Kong que estão os principais clientes. Através de Hong Kong é feita a exportação para mercados internacionais, como os Estados Unidos.
O selo Marca Típica de Macau tem ajudado, afirma o jovem-gerente. “O título é um reconhecimento da perseverança da família. É muito difícil conseguir, desde logo porque um dos critérios é antiguidade. Sermos uma Marca Típica de Macau mostra como persistimos.”
Lu acrescenta que a promoção do Governo permitiu um apoio significativo sobretudo na construção da imagem, promoção e divulgação da marca, que emprega oito funcionários em Macau e 30 no Interior do País. “A maior mudança que noto é que esse apoio fez com que a marca se tornasse mais atractiva para os clientes mais novos. Este tipo de lojas estava associado ao antigo, desactualizado. A nova imagem fez uma grande diferença”, refere, ao mesmo tempo que mostra os rótulos dos frascos e das embalagens.
Agora, Lu Weiwen acredita que será mais fácil assegurar o futuro. “Se não tivesse havido essa mudança na imagem, receio que seria muito difícil que a empresa resistisse”, admite.
Lu, de 41 anos, está pouco preocupado com a continuidade já que por enquanto ainda é dele que depende. “Nem se coloca a questão se gosto ou não. Está aqui um trabalho de quatro gerações. Continuar é um dever”, vinca.
Restaurante Solmar, o ponto de encontro da comunidade macaense
É dos restaurantes mais conhecidos da cidade. Ficou célebre pelo menu variado com enfoque nos pratos portugueses e macaenses. Situado no coração da península de Macau, há mais de meio século que o Restaurante Solmar dá protagonismo sobretudo à gastronomia macaense. Desde 1961 que se dedica à confecção de pratos típicos da culinária, que passou a integrar a Lista de Património Cultural Imaterial de Macau em 2012. As receitas do restaurante misturam ingredientes de Portugal, Índia e África assim como os sabores da gastronomia tradicional chinesa. Intimista, com decoração vintage, é um espaço para se sentar e se comer com calma. No percurso de 60 anos, foi várias vezes premiado regional e internacionalmente.
No vídeo disponível no site dedicado às Marcas Típicas de Macau, Edith Silva, filha de um dos fundadores, explica que o restaurante surgiu pela necessidade de criar um local onde a comunidade macaense se pudesse juntar, tendo em conta que o café onde se encontrava habitualmente tinha fechado. “Depois do almoço todos gostavam de tomar café e de conversar, mas já não havia local para se encontrarem. Foi o caso do meu pai também. Sou a responsável da segunda geração do Restaurante Solmar. (…) Os accionistas eram pessoas do mundo da política e dos negócios, e sugeriram arrendar um terreno do Governo para abrir um café para nos reunirmos. Foi assim que o Solmar nasceu”, recorda.
“No início da sua actividade, o restaurante foi um local de agrupamento dos macaenses sob a forma de clube destinado apenas aos membros. Mais tarde, devido ao elevado reconhecimento dos seus pratos deliciosos, o restaurante foi aberto ao público”, acrescenta o texto que acompanha o vídeo na mesma página dedicada ao estabelecimento.
A maioria dos pratos foi criada por cozinheiros portugueses. Da carta, destacam-se receitas típicas como a galinha picante africana, galinha portuguesa, camarões picantes, pastéis de bacalhau fritos e serradura. “O cozinheiro principal melhorou o método de assar frango transmitido pelas guarnições portuguesas provenientes de África na época da Administração Portuguesa de Macau e combinou-o com o método local de cozedura, sendo o primeiro que criou um tipo de frango picante africano com mais de dez variedades de especiarias. Actualmente, em muitos restaurantes de Macau, é adoptado o método de cozedura com molho de soja para o prato de galinha africana”, aponta a marca.
Edith Silva sublinha como há outros elementos, além da comida, que tornaram possível que a marca chegasse aos dias de hoje. “No restaurante Solmar somos uma família. Num negócio tem de haver um sentimento de pertença. Só se o pessoal tiver um sentimento de pertença em relação ao restaurante e for bem tratado pelo patrão ficará no trabalho muitos anos. O restaurante transmite esse sentimento de uma família unida.”
Companhia de Produtos da China
É na Rua 5 de Outubro, na zona do Largo do Pagode do Bazar, que permanece a Companhia de Produtos da China. A loja fica num prédio de esquina, alto, de 10 andares com um rebordo a imitar azulejos. Nas prateleiras da loja no rés-do-chão encontram-se produtos típicos da Ásia, China e de países de língua portuguesa. Logo à entrada, sobressaem os vinhos de castas do Alentejo e do Douro, entre outras, assim como reservas.
Os licores de ginja – com a embalagem de copos de chocolate ao lado, como é tradição ser servida – e de Amêndoa Amarga compõem a prateleira dedicada a alguns dos artigos mais característicos de Portugal. Os recipientes em barro para cozinhar ou apresentar a comida, igualmente típicos do país luso, também estão à venda a par de outros produtos e marcas asiáticas. Os óleos e vinagres de arroz, de soja, doce, massas de diferentes formatos, os licores e bolachas tradicionais de Macau, as loiças e artesanato além da bijuteria compõem a oferta dos artigos orientais do patamar de venda a retalho.
Os empregados circulam e fazem questão de cumprimentar ou agradecer na língua do cliente. Neste caso, ouviu-se um “olá” e um “obrigada”.
A Companhia de Produtos da China começou em 1952, na sequência da Feira de Cantão. O site sobre a marca típica, refere que várias personalidades dos sectores industrial e comercial de Macau organizaram-se porque sentiram que era o momento de aproveitar o desenvolvimento das áreas agrícola e industrial do Interior do País. Foi pela iniciativa de Ke Zhengping, Ma Man Kei, Ho Yin, Kou Chan Mou, Chan Chek San, Leong Tit Chi, entre outros, que nasceu a empresa.
Sediada em duas das artérias principais da cidade, a Companhia de Produtos da China tem diversificado a oferta ao longo dos tempos. Inicialmente a loja da Avenida Almeida Ribeiro dedicava-se à venda a retalho de artesanato, vestuário, artigos de uso diário, fazenda, vinhos famosos e alimentos enlatados do Interior da China – e foi designada de “Companhia de Produtos da China”. Já a da Rua de Cinco de Outubro era de venda a grosso de cereais, óleos e outros géneros alimentares. O estabelecimento, no edifício actual no lote 114 da rua, foi baptizado de “Companhia de Produtos e Produções Especiais da China.
Em 1993, a empresa registou-se como “Companhia de Produtos da China, S.A.R.L.”, da qual fazem parte a Companhia de Produtos da China e a Companhia de Produtos e Produções Especiais da China.
A empresa tem vindo a importar produtos do Interior do País para promovê-los, incluindo aqueles de minorias étnicas chinesas e comunidades como as indígenas de Taiwan. A par desta missão, a Companhia assumiu como objectivo divulgar também produtos das indústrias criativas e culturais de Macau, assim como os de países de língua portuguesa, indo ao encontro daquelas que têm sido prioridades na política governativa da região.
“Em 2017, a Companhia de Produtos da China introduziu os produtos provenientes de diversas áreas, designadamente em termos das minorias étnicas chinesas, comunidades indígenas de Taiwan, indústrias culturais e criativas de Macau, e países de língua portuguesa, continuando a persistir em apoio ao desenvolvimento de Macau como o núcleo de exploração”, refere a página sobre a empresa, actualmente liderada por Ma Iao Laie Kou Hoi In.