Há cinco anos assumiu protagonismo com destaque para a fotografia e curadoria, sobretudo de artistas asiáticos. João Miguel Barros, conhecido pela carreira na advocacia, tem-se profissionalizado em ambas as áreas, com o trabalho a merecer distinção local e internacional. À MACAU fala dos planos, nos quais inclui a inauguração de uma galeria em Lisboa com enfoque na Ásia e uma exposição dedicada a artistas locais
Texto Catarina Brites Soares | Fotos DR
João Miguel Barros fez carreira na área do Direito, mas a fotografia sempre o acompanhou. Nos últimos anos, permitiu-se levar o interesse (ainda) mais a sério e mostrar o que esteve guardado durante as três décadas em que a advocacia – que reparte entre Macau e Lisboa – foi predominante. O último marco de que se orgulha é a monografia de 60 páginas da Photo London sobre o trabalho que tem desenvolvido com a câmara, a que o emprego tem cedido tempo e espaço. Na nova fase, a curadoria assume igual importância, sobretudo de artistas asiáticos. Em Dezembro, irá levar a Portugal as obras de 17 artistas locais. João Miguel Barros, nascido em 1958, personifica o maior cliché sobre o tempo: nunca é tarde.
“Sempre achei que ter uma profissão era muito redutor. Vou para a Faculdade de Direito, mas sempre tive uma relação muito estreita com a cultura. Aliás, era uma das formas de me equilibrar emocionalmente e tem sido sempre assim ao longo da minha vida”, diz à MACAU. “Investi na minha formação e profissão, e isso fez com que aos 50 e tal anos tivesse a possibilidade de me dedicar à fotografia. Faço advocacia e tenho de o fazer porque não sou rico e só assim me posso dedicar à fotografia, mas posso fazê-la com os meios que quero.”
O gosto pelas artes fez-se notar cedo. Ainda novo, começou a escrever para jornais. Mais tarde, fez parte da direcção da SEMA, revista de cultura e artes visuais publicada em Lisboa que marcou o panorama das letras portuguesas entre 1979 e 1982. “É um gosto, uma atracção quase irresistível que tenho pelo papel e pelas actividades culturais.”
Sobre a edição e a escrita, falará mais tarde. Primeiro, a imagem.
“Durante todos estes anos, visitar exposições e prestar atenção ao que se faz foi sempre uma constante. É esse percurso que me leva a entrar, em determinado período da minha vida, no campo da fotografia. Até que decidi que tinha de a encarar de forma mais séria e não de uma forma tão passiva. Não sei quantos anos me restam e quero fazer mais, algo que me preencha verdadeiramente”, afirma Barros, que desempenhou cargos de direcção na Ordem dos Advogados de Portugal, na Associação dos Advogados de Macau e na União Internacional dos Advogados, além de cargos políticos.
É quando deixa o Ministério da Justiça em Portugal, onde trabalhou em diferentes períodos, o último de 2011 a 2013, que decide dar o passo. “Sempre gostei de fotografia, mas desta vez queria fazê-lo de uma perspectiva séria, sistemática, pensando na produção e edição artísticas.”
A sensação de que não há arte tão banalizada como a fotografia empurrou-o para ambientes profissionais em busca do que procurava: uma identidade. De forma mais regular, porque já o fazia, passou a frequentar feiras como a Photo Paris, Photo London, Photo Xangai, entre outros eventos que juntam o melhor da arte ao nível internacional. “Comecei a fazer uma selecção do que me interessa e naturalmente chego à fotografia a preto e branco, e muito contrastada”, refere sobre o trabalho que tem desenvolvido. “Sinto uma evolução, muito por influência de pessoas e de artistas.”
Primeiro a obra, depois o artista
Daido Moriyama é um, entre outros fotógrafos japoneses que o têm contagiado. “Acaba por ser uma referência num tipo de fotografia que explorei: de rua, intimista, que vai na sequência de outros autores como William Klein, que criou rupturas com práticas que vinham do passado”, acrescenta.
A par do olhar, houve outros elementos na escola nipónica contemporânea que o cativaram. “Os japoneses vivem para fazer livros e não tanto para exposições, que consideram um acto efémero e muito mais mitigado, depende das nossas memórias. Este estilo também se ajusta muito ao meu gosto pelo livro e tudo começou a fazer sentido.”
A primeira exposição individual teve lugar em Macau, no espaço Creative Macau em 2017. No ano seguinte, estreou-se no Museu Berardo. No espaço de arte em Lisboa, apresentou Photo-Metragens com 14 imagens acompanhadas de 14 textos, mostra que pensou para ser lida como um livro de contos. Os textos, também da sua autoria, acompanhavam as fotos sem a pretensão de as explicar, mas sim de as complementar. A exposição recebeu 85 mil visitantes. “Aqui, dou, de facto, um salto muito grande”, sublinha. “Essa exposição foi um grande estímulo e ainda hoje tenho exemplos da repercussão que teve.”
A maior, aponta, foi o convite da Photo London para uma monografia sobre o seu trabalho. “Fiquei admirado. A curadora tinha estado na minha exposição em Lisboa e foi a partir daí. Aqui, dou mais um outro pulo.”
Faz um parêntesis para falar de humildade. “As pessoas valem pelo trabalho que fazem. Não podem valer pelo modo como se exibem ou se promovem socialmente”, vinca.
E a propósito, introduz o fotógrafo chinês Lu Nan, também determinante no seu percurso. “Ele não fala inglês, eu não falo chinês. Falamos pelas redes sociais e tradutores, mas temos uma relação muito próxima. É um eremita e um fabuloso fotógrafo. Aprendi com ele as virtudes da humildade. Sem essa condição, não deixamos que a nossa obra possa respirar”, refere. “O artista não pode avançar demasiado porque cria o risco de se sobrepor à obra, deve recuar à medida que consegue que a obra avance, e este é o caminho certo.”
Interrompe para ir buscar a monografia da Photo London, que coloca em cima da mesa, para mostrar que tem procurado seguir “o caminho certo”. A capa tem uma imagem que ressalta. Em baixo, e decalcado, aparece o nome. A assinatura está lá, mas é a fotografia que sobressai.
Além das fotos
O momento também serve de contexto para recuperar a conversa que ficou em suspenso no início: o gosto pela escrita e edição. “Sempre tive muita atenção a essa vertente. Sou um comprador compulsivo de livros. Precisava de viver várias vezes para conseguir ler todos os que tenho. Não é só o conteúdo que me chama, mas o livro enquanto objecto. Tenho uma atracção irresistível.” Só de fotografia, conta 1300 livros na biblioteca privada. Também nesta área das artes, anseia por mais. “Acho que tenho algum jeito para a escrita, mas não tenho tido a coragem de escrever. Continuo com este projecto adiado na minha vida. Tenho um livro de Direito publicado, que vai na segunda edição, mas não conta muito, não tenho o livro que queria escrever.”
Enquanto ganha balanço, dedica-se aos livros de outra forma. Fazendo eco da prática dos que o inspiram, decide que as fotografias têm de ter outro espaço além das paredes das várias exposições – individuais e colectivas – que protagonizou. Between Gaze and Hallucination é o primeiro livro que publicou com trabalhos próprios, em 2017, a que se seguiu Photo-Scripts: 14 Short Stories, publicado pelo Museu Berardo em 2018, e Photo-Scripts, lançado pelo Instituto Cultural e na sequência da mostra com o mesmo nome que teve lugar no Centro de Arte Contemporânea.
Em papel, lança ainda a Zine Photo, em 2020, e com morte anunciada. A ideia é completar 12 números. Cada um conta uma história. Partilha a que parece tê-lo marcado mais, e que começou com uma competição de boxe internacional que teve lugar na região e que foi fotografar. “Foi vivido com grande intensidade e criou em mim o apetite de fazer alguma coisa em redor do boxe.”
Fascinado pela luta corpo a corpo e das imagens que daí saem, João Miguel Barros decide ir atrás de Emmanuel Danso, derrotado na final. Da primeira incursão nasceu ‘Blood, Sweat and Tears’, uma sequência de mais de 100 imagens sobre o pugilista ganês. “Não tem piada ir atrás de quem ganha, mas sim de quem perde.”
As viagens subsequentes que fez ao Gana culminaram na série a que chamou “Ghana Stories” e foi tema de quatro dos seis números publicados da Zine Photo. Mas João Miguel Barros quer regressar para fotografar mais e para entregar o dinheiro que reuniu para recuperar uma escola, projecto solidário da sua iniciativa que está por cumprir por causa da pandemia.
“A partir das minhas idas ao Gana abriu-se o mundo para explorar outras histórias, nomeadamente a escola onde o Danso e o grupo treinavam ao fim do dia. Apercebi-me da falta de condições e decidi que iria voltar. O número 3 da Zine Photo, ‘Courtyard’, mostra essa vida na escola entre as crianças que brincam e os pugilistas que treinam”, descreve. “O Gana foi um projecto que me marcou muito. Tenho de voltar. Falta-me o lado humano do Emanuel Danso.”
A ideia é depois fazer uma síntese do trabalho relacionado com o boxe. Mas, nem só de imagens vive a revista que tem guardado a marca do fotógrafo. O detalhe, realça, revela outro dos interesses que cultiva: o da edição.
A Zine Photo, com 40 por 28,5 centímetros e uma lombada cozida a ponto de linha à mão, é impressa em edição limitada e concebida de modo a torná-la um objecto com valor acrescido para ser coleccionado. Sobre a revista, salienta mais um pormenor: “Todos os projectos da Zine Photo têm um ponto de partida. A minha ida ao Gana não é por turismo. Vou atrás de uma história”.
Os números publicados – um deles sobre Macau – contam essas histórias, sempre a preto e branco. “Esta opção vai ao encontro do que pretendo: afastar o secundário e destacar o essencial. São opções estéticas que têm que ver com as minhas influências naturais, como a fotografia japonesa, e também com a intenção de privilegiar a substância em detrimento da forma”, esclarece. “Sinto que a cor vai criar ruído no tipo de fotos que faço e afasta-me do essencial. Quando vejo fotografias muito coloridas perco-me.”
Mais flexível na câmara do que na cor, recorre mais uma vez a Moriyama para assumir um dilema: “Diz ele que a câmara é um mero intermediário, não tem qualquer influência e que, por isso, qualquer câmara serve”, cita, com a confissão de que não consegue ser tão estoico. “Tenho um grande fetiche por aparelhos, acima de tudo os que estão ligados à fotografia. Tenho câmaras e lentes de várias marcas. Não posso dizer que sou um coleccionador, mas ando sempre a ver o que sai de material fotográfico. É outra faceta.”
A seguir, faz a ressalva: “O tipo de máquina acaba por ser um pouco irrelevante porque depois estrago as fotos. Carrego-as com os pretos, estoiro-as para evidenciar o contraste. As câmaras de grande qualidade são importantes para fotógrafos profissionais. Eu sou amador no sentido em que a fotografia não é o meu modo de vida, mas também já não me considero amador na prática e dedicação porque o faço de uma forma muito profissional.”
Mostrar o melhor da Ásia
Os prémios que acumula indicam-no. O terceiro lugar na categoria de fotojornalismo e a nomeação da FAPA – Fine Art Photography Awards, com o projecto “Akuapem”; o primeiro prémio numa das categorias do Festival de Lenzburg de 2020 com “Self-Portrait of A Not So Young Artist In Times of Crisis”; e o ouro numa secção do evento Prix de la Photographie (PX3), em Paris, com o projecto “Jamestown” foram alguns dos galardões recebidos entre 2018 e 2021.
Localmente também foi reconhecido. “Brumas de Macau”, um conjunto de quatro imagens publicadas na edição número quatro da Zine Photo venceu a categoria “Prémio de Obras Especiais” do concurso promovido pelo Instituto Cultural (IC), ligado à “Exposição Colectiva das Artes Visuais de Macau”. Recentemente, e também na região, fundou com mais 17 sócios a Halftone, associação local dedicada à imagem com o intuito de promover e desenvolver a fotografia na cidade.
A dedicação à fotografia não se esgota, contudo, nas que assina. “A curadoria é uma decorrência normal do meu interesse e de ler muito sobre fotografia, de me concentrar em alguns fotógrafos e artistas de quem gosto. Não sou profissional, mas acho que não o faço mal porque sei construir uma narrativa e sei escolher pessoas de qualidade.”
As exposições do austríaco Andreas H. Bitesnich, sobre a cidade de Lisboa e que deu origem a um livro; a do chinês Lu Nan, que recebeu 65 mil visitas nos três meses que esteve no Museu Berardo; e a dos artistas locais Ung Vai Meng e Chan Hin Io, através do coletivo YiiMa, foram algumas das que concebeu João Miguel Barros, que tem dado especial atenção a nomes da Ásia. “É aqui que estou e porque, sobretudo a China e o Japão têm sido fontes de inspiração e de atenção. Faz sentido.”
Agendadas para breve tem a exposição com o trabalho do japonês Daido Moriyama, e “Narrativas a Oriente”, que juntará obras de 17 artistas locais convidados por Barros. A mostra está prevista para Dezembro, na Fundação Oriente, em Lisboa. “Não há um tema comum deliberadamente. Cada um terá de fazer uma história, mais conceptual do que narrativa. Também faço a curadoria dos meus projectos. Perdoo-me esta pequena vaidade e pretensão de achar que sou capaz.”
No âmbito da curadoria dá a conhecer outras aspirações: a de editar uma revista de fotografias de artistas a nível mundial, e a de concretizar outro projecto, “o grande”, como o define, e que traz guardado desde a adolescência. O Ochre Space pretende ser a primeira galeria em Lisboa de fotografia e videoarte contemporâneos com enfoque na Ásia. O local, com 160 metros quadrados junto ao Palácio da Ajuda na capital portuguesa, vai ter um centro, uma galeria, uma livraria e uma editora dedicadas à fotografia. A correr conforme o esperado, abrirá ainda este ano. “A Ochre Space pode ter sentido, especialmente em Portugal, se conseguir criar uma identidade que esteja muito ligada à fotografia da China, claramente incluindo Macau e Hong Kong, e do Japão”, afirma João Miguel Barros, que diz ter uma ambição e um sonho. “A ambição é continuar a fazer fotografias que possam merecer reconhecimento, que falem por si e não precisem da minha voz. Acho que consegui criar uma identidade; e o sonho é conseguir que a Ochre Space possa ter algum mérito cultural.”