O Festival do Dragão Embriagado é mais uma das manifestações culturais que entrou para a lista de património intangível de Macau, em 2009, sendo posteriormente considerado Património Cultural Imaterial da China, em 2011. Um estudo do Museu Marítimo sobre a celebração garante que Macau é o único local no mundo onde a festividade se repete a cada Primavera
Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
De fitas vermelhas atadas à cabeça e braços, os homens – manda a tradição que só eles podem fazê-lo – desfilam pela cidade, cuspindo vinho de arroz enquanto dançam como se estivessem embriagados. Nas mãos carregam estatuetas com a forma de cabeças e rabos de dragão. Todos os anos se repete o ritual, um dos que caracteriza o Festival do Dragão Embriagado.
A tradição, que começou com os pescadores e vendedores de peixe, coincide com as comemorações do nascimento do Buda. A partir do sétimo dia do quarto mês do calendário lunar, tem início a festa, especialmente importante para os vendedores de peixe que a celebram para agradecer aos deuses e pedir prosperidade. O festival, antes cingido ao sector, é hoje uma tradição que para a cidade e que atrai locais e turistas.
Os jantares nos mercados, a festividade da “longevidade do arroz” e a dança do dragão são os pontos altos do Festival, organizado principalmente pela Associação dos Comerciantes de Peixe Fresco de Macau, apesar da participação de outras entidades. O Instituto Cultural refere que se trata de um festival popular tradicional celebrado por todos os sectores da sociedade local.
“O evento não se esgota na dança. Essa é só uma parte”, acrescenta Celso Sou, filho do presidente da Associação dos Comerciantes de Peixe Fresco, que também lidera.
Tudo começou com uma pandemia
À MACAU, Celso Sou explica que é difícil precisar os motivos da tradição e significados dos rituais, uma vez que foi através da oralidade que as histórias passaram de geração em geração. Há várias versões do mito que lhe deu origem. Sou partilha aquela que é reproduzida pela associação que preside, e uma das que tem resistido à passagem do tempo.
“Quando Macau ainda era parte do condado de Xiangshan, na Dinastia Ming, a zona foi atingida por uma pandemia que vitimou muita gente. Um dia apareceu junto ao rio uma cobra gigante, que na cultura chinesa é uma versão do dragão. Depois de ter sido matada e cortada aos pedaços, o sangue espalhou-se pela água do rio. Essa água foi dada a beber aos habitantes, e terá sido assim que se curou a doença e que nasceu esta tradição. O festival foi criado pela população para celebrar e agradecer aos deuses terem enviado a cobra. Até hoje”, detalha, acrescentando que a festa está associada aos pescadores porque era essa a principal actividade profissional dos habitantes da região naqueles tempos.
O facto de a cobra ser considerada uma versão do dragão não é de menos, já que o animal tem um papel preponderante na história e cultura chinesas. É um dos quatro animais míticos que, segundo o mito de Pan Ku, o ajudaram a criar o mundo. No Confucionismo, o dragão é símbolo de qualidades como força, honestidade e virtude. É também símbolo de poder imperial desde a Dinastia Han. Além de figura mítica auspiciosa, é considerado o símbolo de um povo, pois havia a crença de que o imperador era a encarnação do dragão.
“Devido aos seus atributos, o dragão tornou-se a partir da Dinastia Han (206 a. C. – 220 d.C.) símbolo do poder imperial. Os próprios imperadores eram encarados como encarnações do dragão. Para os letrados confucianos, o animal mítico dotado de poderes sobrenaturais representa força, virtude e honestidade. Para o povo, o dragão é uma divindade aquática”, refere um estudo do Museu Marítimo de Macau sobre o evento.
A ligação aos mares faz do dragão um animal emblemático para os pescadores, e por isso celebrado nos mares com as Festividades dos Barcos do Dragão, e em terra, com a Festividade do Dragão Embriagado.
O dragão, o único animal no zodíaco chinês que não existe e está ligado à ideia de boa ventura, tem uma forte relação com a água e é símbolo ainda de fertilidade.
Chegada a Macau
Celso Sou diz que a celebração do Festival do Dragão Embriagado chegou e enraizou-se em Macau por causa da migração dos habitantes da zona que hoje seria Zhongshan, e que trouxeram consigo os hábitos culturais. Nos primórdios da tradição em Macau, continua, o evento era dedicado a A-Má, a deusa protectora dos pescadores. Hoje é uma forma de agradecer a todos os deuses.
O festival marca aquele que em chinês é conhecido como Tchoi Long, o tempo de repouso para todos os vendedores de peixe. As bancadas dos mercados são lavadas e assim ficam, sem peixe nem marisco, até ao quarto dia depois do festival.
As comemorações servem para agradecer e pedir prosperidade para o negócio. Pescadores e profissões relacionadas – como vendedores, carregadores, responsáveis de armazéns e fornecedores – pedem que seja um ano livre de tempestades e epidemias, ou outras catástrofes prejudiciais.
Na véspera do dia principal, no final da tarde do sétimo dia do quarto mês do calendário lunar chinês, os residentes de Macau que se dedicam à venda e comércio de peixe juntam-se para jantar em vários mercados, como o de São Domingos, do Patane, do Mercado Vermelho e do Bairro Iao Hon. “O termo em chinês significa sentar, celebrar e preparar juntos o evento do dia seguinte”, esclarece Celso Sou, que sublinha que o festival se tornou também uma forma de exortar à união e ao espírito de comunidade. É também neste dia que tem lugar a habitual Ópera Chinesa.
O momento alto acontece no oitavo dia do quarto mês do calendário lunar chinês. Antes da parada, fazem-se as rezas e pintam-se os olhos do dragão e do leão para a dança, que só os homens aprendem com os mais velhos e num grande secretismo.
Em frente ao templo de Kuan Tai, atrás do Mercado de São Domingos, um monge taoista abençoa as cabeças e caudas dos dragões. Os dançarinos colocam a fita vermelha na cabeça e braços, queimam-se oferendas e dinheiro para agradar aos deuses e acalmar espíritos, e os leitões assados são benzidos pelos dragões abençoados. No Largo do Senado, mesmo ali ao lado, cumprem-se outros rituais. Os leões, que acompanharão os dragões na parada, “ganham vida” e começam a mexer. Tudo a postos para o início do desfile.
A rota percorre vários locais, sobretudo as zonas portuárias, respeitando a génese da tradição, eminentemente ligada aos pescadores e vendedores de peixe. Ao som dos tambores e dos gongos que acompanham o trajecto, os dançarinos com os dragões mexem-se desordenadamente dando a ideia de embriaguez. O desfile tem paragens em várias zonas da cidade e em locais como templos, estabelecimentos comerciais ligados à actividade piscatória e mercados. Dura praticamente o dia todo e termina no Templo de A-Má.
“Nos últimos anos, começámos a convidar equipas da dança do leão e do dragão de vários países asiáticos para se juntarem ao desfile”, realça Sou.
Ao longo da viagem, os participantes carregando estatuetas de dragões e dançando ao som dos tambores, vão cuspindo vinho de arroz, da mesma forma que um dragão cospe fogo. “Foi daí que veio o nome Festival do Dragão Embriagado. Bebe-se e cospe-se numa alusão ao mito, porque o álcool também destrói bactérias, assim como a água com o sangue da cobra que os doentes beberam os curou e sanou a pandemia”, explica Sou.
Outro dos momentos importantes do festival é a partilha do chamado “arroz da longevidade”, ou “arroz abençoado”, que é distribuído à população, rito também presente noutras celebrações culturais na região.
Em pelo menos três, às vezes quatro, dos mercados locais – de São Domingos, Vermelho, do Bairro Iao Hon e de Tamagini Barbosa – o arroz é cozinhado e oferecido todos os anos. Os residentes recolhem as caixas de arroz que se acredita trazer paz, longevidade e riqueza. O costume, tradicionalmente realizado por pescadores e homens do mar, expandiu-se aos restantes habitantes que levam o arroz para casa e o comem em família.
No final, há ainda um grande jantar que reúne os membros da associação, os participantes da parada, outras associações e representantes do Governo, momento que culmina a festa.
Há anos que Celso Sou cumpre e protagoniza todas estas tradições. Foi em criança, pela mão do pai que se iniciou. Sou Chon Heng é presidente da associação há cerca de duas décadas e contagiou o filho, também está na direcção do grupo. “Não há nada como este Festival. De todas as celebrações que existem em Macau, esta não tem paralelo.”
Confessa o receio que desapareça, sobretudo pela dificuldade em cativar o interesse dos jovens na tradição e na associação, com cerca de 100 membros. “É também por isso que foi fundamental a tradição ter sido reconhecida como património imaterial. É sem dúvida uma grande ajuda para a preservar. Sem este reconhecimento julgo que seria difícil que se mantivesse e que as pessoas continuassem a fazer o festival muito mais tempo”, salienta.