Quer seja em acções de patrulhamento, busca de estupefacientes, inspecção, perseguição ou salvamento, os 112 cães-polícia à disposição do Grupo Cinotécnico de Macau têm vindo a ganhar relevância perante o aumento do fluxo transfronteiriço. Desde a sua criação, o grupo, que prestou apoio a mais de 100 casos relacionados com droga e ajudou recentemente a resolver um homicídio, trabalha diariamente para obter resultados que, por si só, o homem não seria capaz
Texto Pedro Arede | Fotos CPSP
Olhos nos olhos, tratador e cão-polícia fitam-se a mais de três metros de distância. Ao sinal, a postura esfíngica transforma-se subitamente na silhueta de um predador focado. Jan, uma cadela da raça Pastor-Belga-Malinois, lança-se veloz em corrida e obedece sem hesitar sempre que é mandada parar a meio do percurso. Ao chegar junto do tratador é recebida em festa com elogios e presenteada com o seu brinquedo favorito.
“A relação entre tratador e cão-polícia é uma relação entre amigos. Ao início não se conhecem, mas depois, através do contacto e da comunicação, os dois começam, aos poucos, a confiar um no outro e tornam-se gradualmente bons amigos. O contacto inicial com os cães tem de ser feito através da comunicação e da interacção, para que se apaixonem e se criem laços de dependência e confiança mútua entre os dois. Ao longo do tempo, os treinos contínuos contribuem para aumentar o entendimento mútuo e para que se tornem bons amigos e parceiros de trabalho”, começou por explicar à MACAU Ha Kin Tong, chefe do Grupo Cinotécnico do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) de Macau.
A confiança é cega. Durante uma demonstração de exercícios de obediência é possível ver que, mesmo quando andam juntos, em passo de marcha e prescindindo da trela, Jan não tira nunca os olhos do tratador, ignorando até o caminho que tem à sua frente.
A pastor-belga-malinois faz parte das raças de maior envergadura que, a par do pastor-alemão e do cão-lobo de Kunming, são responsáveis pelas tarefas de patrulhamento e controlo de multidão, maioritariamente concretizadas em Macau, através de acções de apoio às forças de segurança nos diversos postos fronteiriços do território.
As restantes áreas de actuação do Grupo Cinotécnico incluem a busca de drogas, inspecções de segurança, perseguição e busca e salvamento. Para desempenhar funções nestas áreas, explicou Ha Kin Tong, são habitualmente escolhidas raças de pequeno porte, como o labrador retriever e o springer spaniel.
“Apesar de mais pequenos, o labrador retriever e o springer spaniel têm um olfacto mais sensível. Por isso, são responsáveis pelos trabalhos de busca de droga e também de explosivos. Estas duas raças são também adequadas para as tarefas de salvamento”, explica o chefe do Grupo Cinotécnico.
À semelhança das raças dedicadas ao patrulhamento, os cães vocacionados para a detecção de drogas são também destacados para desempenhar tarefas de apoio aos Serviços de Alfândega em postos fronteiriços. No entanto, aqui o destacamento é “aleatório” para que os criminosos “não saibam quando é que os cães vão lá estar”.
Sobre a importância do trabalho que é feito pelo Grupo Cinotécnico, Ha Kin Tong destaca a mais-valia que é utilizar, aliada à formação, os sentidos apurados dos cães-polícia para ajudar as forças de segurança em “tarefas que as pessoas não conseguem fazer”.
“Os cães de patrulha podem produzir um efeito dissuasor sobre os suspeitos e os criminosos. Já os cães especializados na busca de droga são capazes de procurar e encontrar, rapidamente, qualquer quantidade de estupefacientes que estejam guardados no interior de uma bagagem, por exemplo. As pessoas não conseguem fazer isto tão rapidamente. Já os cães-polícia de busca e salvamento podem procurar de forma rápida, precisa e eficaz por sobreviventes em locais de desastre. Coisa que as pessoas também não têm capacidade de fazer”, partilhou com a MACAU.
Aprender a brincar
Quando foi fundado em 1995, a propósito da inauguração do Aeroporto Internacional de Macau, o Grupo Cinotécnico dava pelo nome de Pelotão Cinotécnico e, ao invés de acolher as actuais cinco áreas profissionais de actuação, era responsável apenas por três – patrulha, perseguição e detecção de drogas.
Até aos dias de hoje, o crescimento tem sido exponencial e, se na altura havia 32 tratadores para cerca de 30 cães, em 2021 existem já cerca de 66 tratadores para 112 cães, albergados numa nova infra-estrutura inaugurada em 2019 na Estrada de Hác-Sá, em Coloane. Esta que é a sede do Grupo Cinotécnico inclui um canil com três pisos e 150 espaços para cães, um edifício administrativo de quatro pisos e ainda espaços exteriores, num total de 3500 metros quadrados. Juntamente com a Divisão de Tratamento de Engenhos Explosivos e Buscas, o Grupo Cinotécnico, explicou Ha Kin Tong, é parte integrante da Unidade Especial de Polícia.
Geralmente, é quando têm cerca de ano e meio que os cães-polícia começam a exercer funções, estando em actividade até aos oito anos, idade a partir da qual são aposentados e passam a viver exclusivamente na sede do Grupo Cinotécnico.
Os animais que chegam à unidade são fruto de procriação própria ou adquiridos a criadores de países europeus ou do Interior do País. A partir dos seis meses, os cães recebem uma formação de socialização para se começarem a habituar a diferentes ambientes e à interacção humana.
Quando têm cerca de um ano, os animais começam a receber um treino formal com a duração de três meses e meio e que está dividido em duas grandes áreas: patrulha e detecção de droga.
“O curso geral de formação de tratadores de cães-polícia tem a duração de três meses e meio. Os conteúdos das duas áreas são diferentes, já que os formandos da área de patrulha aprendem a treinar o cão para obedecer (…) e as técnicas que permitem, por exemplo, ordenar ao cão que se atire contra o suspeito para o morder e dominar. Já os formandos da área da detecção de droga devem saber, além das técnicas de obediência, conduzir o cão para detectar drogas em diferentes ambientes como postos de migração, veículos, bagagens ou até no corpo de uma pessoa”, detalhou o chefe do Grupo Cinotécnico.
A relação entre cão-polícia e tratador é para sempre, sendo cada dueto uma equipa inseparável que, desde cedo, utiliza brincadeiras para alcançar finalidades comuns em prol da população. “Para levar os cães a trabalhar para nós, utilizamos brincadeiras. No desenvolvimento das técnicas de treino, procuramos promover as características dos cães-polícia, que passam essencialmente por serem animados e por gostarem de brincar. Por exemplo, colocamos os brinquedos preferidos dos cães nas bagagens e os cães utilizam o seu olfacto sensível para encontrar os brinquedos. Numa fase seguinte, já colocamos drogas em malas para treinar os cães a sentir esse cheiro. Isto serve para que, mais tarde, os cães saibam fazer buscas por estupefacientes em situações reais”, explicou Ha Kin Ton.
Além do curso geral de formação de tratadores, todos os anos os cães-polícia recebem duas formações adicionais durante quatro semanas, dedicadas ao treino contínuo.
Com a formação feita e os cães-polícia prontos para entrar em acção, diariamente, após chegarem ao posto de trabalho, os tratadores levam os cães a passear e prestam alguns cuidados adicionais que passam pelo banho, para que os animais “fiquem em boas condições”. Depois disso, de acordo com as diferentes áreas de actuação a que correspondem, os tratadores organizam diferentes tipos de treino e preparam-se para se distribuir pelos diferentes locais onde prestam apoio.
“Os elementos deste grupo trabalham por quatro turnos e as suas tarefas principais passam por prestar apoio ao trabalho de patrulhamento em postos de migração (…) e prestar apoio aos Serviços de Alfândega na tarefa de detecção de droga. Durante o trabalho procuramos também colocar os cães em situação de descanso e disponibilidade, com o objectivo de permitir que bebam água e se mantenham em boas condições físicas e psicológicas durante todo este período”, explicou o responsável.
Heróis de quatro patas
Relativamente a casos que envolvem estupefacientes, partilhou Ha Kin Tong, desde a sua fundação, o Grupo Cinotécnico já ajudou a desmantelar mais de 100 casos. O caso mais notável, recorda, aconteceu em Abril de 2011 no Aeroporto Internacional de Macau, altura em que um cão-polícia impediu a entrada de 2,4 quilogramas de heroína.
Mais recentemente, um cão-polícia foi também determinante na resolução de um dos mais macabros casos de homicídio que aconteceram nos últimos tempos em Macau. O caso veio a lume no dia 12 de Junho de 2021, quando um funcionário de limpeza que varria folhas numa escadaria da encosta da Taipa Grande encontrou partes do corpo de uma mulher que tinha sido desmembrado.
No seguimento da descoberta foram enviados, de imediato, investigadores para o local e, apurando-se que se tratava de um homicídio, foi activado o grupo cinotécnico do CPSP.
Era de noite e estava a chover. Para o local seguiu o guarda principal do Grupo Cinotécnico, Chang Fai Pan, fazendo-se acompanhar com o seu cão-polícia, o Ivan. Apesar das condições adversas e de se tratar de um local recôndito, Ivan conseguiu detectar a presença dos restos mortais a vários metros de distância.
“Naquele dia em que levei o cão para o trilho estava a chover e, por isso, estamos a falar de um ambiente difícil para seguir pistas. Quando o cão chegou a 30 metros da cena do crime conseguiu sentir o cheiro do sangue, mesmo quando a água da chuva estava a dissipar esse cheiro. Podemos dizer que, neste caso, o cão-polícia deu um grande contributo para resolver o caso”, contou Chang Fai Pan à MACAU.
Numa operação conjunta do Ministério de Segurança Pública, Directoria Provincial de Segurança Pública de Guangdong e Directoria Municipal de Segurança Pública de Zhuhai, o suspeito do crime acabou por ser interceptado na cidade de Zhongshan, na madrugada de 13 de Junho, tendo admitido o crime de homicídio um dia depois de o Grupo Cinotécnico chegar ao local da investigação.
Separar as águas
Questionado sobre se é fácil separar as emoções do trabalho de campo, sobretudo quando este pode acarretar perigo real para o animal, Chang Fai Pan referiu ser muito importante que tratador e cão-polícia saibam distinguir com clareza os períodos destinados ao trabalho e à brincadeira e que, para isso acontecer, o processo de treino é fundamental.
“É muito importante conseguir separar a emoção do trabalho, porque o cão-polícia é diferente do cão de estimação que as pessoas têm normalmente em casa. As tarefas que desempenhamos na polícia acarretam um certo grau de perigo e os dois têm de definir muito bem quais são os períodos de trabalho e quais são períodos de brincadeira.”
“Por isso é que, durante o treino, ensino o meu cão a não tocar em explosivos, já que normalmente ele é enviado para os postos de migração para desempenhar tarefas relacionadas com a busca de explosivos. Por isso, para reduzir os riscos, é fundamental, neste caso, ensinar os cães a não tocar em explosivos quando os encontram. Ao detectar a presença de explosivos, os cães estão treinados para dar apenas um sinal ao tratador, em vez de ladrar e tocar nos explosivos ou objectos”, acrescentou.
Chang Fai Pan trabalha no Grupo Cinotécnico há 14 anos e não se imagina a fazer outra coisa. Para o guarda principal, para além da exigência de fazer treinos de longa duração ao ar livre e debaixo de condições extremas, a maior dificuldade passa por ser capaz de entender as diferentes personalidades dos cães e conseguir potenciá-las para as tarefas a que estão destinados e, muitas vezes, lutar com a mansidão de alguns animais.
“Alguns são mais malandros, outros não gostam de brincar ou são mais mansos e não têm reacção. Portanto os nossos tratadores têm que ter em conta as características de cada cão para delinear treinos diferentes e adaptados a cada um.” Para Chang Fai Pan a importância do trabalho que faz reside na satisfação de ver um cão a adquirir capacidades muito específicas e muito valiosas a partir do zero e através do processo de treino.
“Eu também tenho cães em casa e gosto muito de animais. O trabalho que fazemos no Grupo Cinotécnico é diferente do de outras unidades da polícia. Aqui o nosso trabalho passa por treinar os cães usando as suas características e personalidades para que eles possam desempenhar diferentes tarefas. Para mim este é um trabalho muito importante. Quando um cão vem não sabe nada e deixa-me muito satisfeito ver que, após o processo de treino, ele sabe perfeitamente o que deve fazer. Gosto muito deste trabalho”, partilhou com a MACAU.
Sobre a paixão que tem por cães, Chang Fai Pan sublinha que “o cão é um animal muito puro”, que se for bem tratado, irá retribuir da mesma forma. Com tantos anos de casa e conhecimento adquirido, o guarda principal do Grupo Cinotécnico defende ainda ser seu desejo “partilhar os vários anos de experiência com os colegas das novas gerações”.
Desafios transfronteiriços
Com o fluxo de circulação de pessoas a aumentar entre diferentes regiões, Ha Kin Tong considera que os desafios a nível do controlo fronteiriço têm conhecido igualmente uma tendência crescente, especialmente no que diz respeito ao tráfico de droga. Neste contexto, o responsável acredita que o trabalho dos cães-polícia irá ganhar uma relevância progressivamente maior.
Para que a fiscalização nas fronteiras decorra sem sobressaltos, Ha Kin Tong aponta ainda a importância da cooperação e intercâmbio que têm sido promovidos entre o grupo cinotécnico de Macau e os de diferentes regiões do Interior do País.
“Através desta cooperação podemos partilhar experiências de ensino e treino dos cães, bem como experiências de trabalho sobre o desmantelamento dos casos, com o objectivo de que todos os membros possam aprender uns com os outros”, explicou.
Além disso, no contexto da Grande Baía, o facto de Macau ser um território com um elevado número de postos de migração, faz com que a tendência, num horizonte próximo, seja para que o quadro de pessoal do Grupo Cinotécnico de Macau continue a aumentar. Até porque a entrada em funcionamento do posto fronteiriço de Qingmao está para breve.
“O Grupo Cinotécnico espera que o quadro de pessoal continue a aumentar, porque Macau tem actualmente muitos postos de migração. Por exemplo, o posto de migração de Qingmao vai entrar em funcionamento em breve e vamos ter de destacar cães-polícia para prestar apoio aos serviços de alfândega na tarefa de detecção de droga nesse local. Por isso, sentimos necessidade de aumentar o nosso pessoal e o número de cães-polícia que prestam serviço no nosso departamento. Isto para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e segurança de Macau”, vincou Ha Kin Tong.
Questionado sobre os impactos que a pandemia trouxe à entrada de estupefacientes em Macau, o guarda principal do Grupo Cinotécnico, Chang Fai Pan, apontou que actualmente, por haver menos pessoas a cruzar fronteiras, “há menos oportunidades de entrada de droga em Macau” e que, por isso, “o trabalho de fiscalização não mudou muito”. Sobretudo, ao nível da fiscalização de encomendas e mercadoria em postos de distribuição de correio.
“[Devido à pandemia] existem hoje menos oportunidades de entrada de droga em Macau, mas (…) os cães-polícias também são destacados para tarefas nos correios para fiscalizar as encomendas e mercadorias. Este é um trabalho diário e normal. Este trabalho continua a ser feito porque não há voos provenientes de países estrangeiros, apenas do Interior da China”, explicou Chang Fai Pan.