Turtle Giant, a banda que levou Macau longe

São o grupo de música mais internacional de Macau. Os Turtle Giant lançaram três álbuns, multiplicaram-se em concertos pelo mundo, encheram salas e fidelizaram público, aqui e lá fora

Texto: Catarina Brites Soares | Fotos: Gonçalo Lobo Pinheiro

A vida acabou por afastá-los geograficamente e, por isso, também ficaram longe dos palcos depois do auge entre 2011 e 2014. Apesar de cada um estar em seu canto, a banda formada pelos irmãos Beto e Frederico Ritchie e António Conceição continua viva. “Se não estivesse nos Turtle Giant não teria experienciado metade do que vivi. Foi uma família que se fez e que permanecerá, e a música também foi uma parte boa.” A frase é de António Conceição, o elemento que fechou o grupo que começou com a dupla Ritchie em 2010.

O grupo de rock e indie-rock foi um projecto dos dois irmãos quando coincidiram em São Paulo, cidade onde nasceram e para onde voltaram depois de estudarem e trabalharem noutros locais.

Da rotina de tocarem juntos, como faziam enquanto partilhavam o quarto na infância, nasceu o grupo que iria dar nas vistas no plano internacional. “Morávamos um ao pé do outro em São Paulo, começámos a gravar, a escrever e foi quando formámos os Turtle Giant e lançámos o primeiro disco”, recorda Beto.

“Feel to Believe” saiu em 2011 quando ainda eram só os dois irmãos. Foi o primeiro e único disco gravado em estúdio. Sucederam-se os convites para concertos e interesse no trabalho dos artistas locais, que acabou por ganhar ainda maior projecção com os álbuns que sucederam. Entre outros marcos, os originais dos músicos – já enquanto trio – integrou a banda sonora de diversas produções televisivas nos Estados Unidos.

A presença mais recente foi em 2017, com tema “Georgie”, do último álbum “Many Mansions”, num dos episódios da série “Supergirl”. No ano anterior, “We Were Kids”, do disco “All Hidden Places”, foi apresentada num trailer oficial do filme “Ten Thousand Saints”, de Shari Springer Berman e Robert Pulcini. Antes, outras músicas haviam figurado em séries de televisão como “Ghost Whisperer”, “Revenge”, “One Tree Hill” e “90210”.

Ainda a dois, e após o lançamento do primeiro disco, os irmãos decidiram que tinha chegado o momento de apostar a sério na carreira e rumaram a Barcelona na tentativa de se lançarem. “Depois de São Paulo, vim para Macau e o Frederico também ficou cá, mas acabamos por decidir que teríamos de ir para a Europa ou para os Estados Unidos para crescer. Escolhemos a Europa, onde ficámos um ano”, explica Beto.

A estadia em Espanha comprovou que estavam certos. Percorreram a Península Ibérica a dar concertos, conseguindo uma média de dois a três por mês. “Estivemos a tocar a sério, foi a fase que tocámos mais. Investimos mesmo na banda”, conta Beto. “Mas estava a ficar difícil só os dois e voltámos para Macau”, ressalva Frederico, também conhecido por Fred.

A dupla regressou à cidade em 2011, ano em que António Conceição, mais conhecido por Kico, se juntou. Beto já tinha tido uma banda com Kico no período em que viveu em Macau antes de Barcelona, de 2008 a 2010. Fred conhecia-o de uma jam session – das muitas que tinham lugar no estúdio que o irmão mais novo arrendava na Rua do Campo –, que fizeram num dos Natais que veio passar a Macau com a família, em 2009.

A sincronia não deixou dúvidas. Estava encontrado o que lhes faltava: o terceiro elemento. O convite foi feito e António Conceição aceitou. “As nossas músicas eram sobretudo rock alternativo e sermos só dois criava limitações quando tocávamos ao vivo. Eu estava sempre na bateria, o Fred com a guitarra e cantávamos. Com o Kico isso mudou. Também cantava, escrevia, tocava guitarra e baixo, e sobretudo eles os dois podiam ir alternando entre o baixo e a guitarra. O Kico facilitou bastante a parte de tocar ao vivo. Com um trio é bem mais fácil”, refere Beto.

A três

Ainda em 2011, começaram a compor e gravaram mais um álbum, desta vez no teatro D. Pedro V. Das três semanas fechados no teatro sairia o segundo disco dos Turtle Giant, o primeiro com Kico. “All Hidden Places” foi lançado em 2012, só com originais em inglês e totalmente produzido pela banda. “Fazíamos os três tudo. Juntávamo-nos e tocávamos muito. Fazíamos um género de jam session. Estávamos sempre a tocar e a improvisar. Umas vezes o Kico já tinha algo escrito ou o meu irmão ou eu, e os outros pegavam”, detalha Beto.

“Com os Turtle Giant foi a primeira vez que me senti parte de um grupo no qual as três pessoas do projecto tinham o mesmo nível de pensamento, objectivos e também gostos musicais. Havia uma força, uma energia colectiva”, sublinha Fred, que se dedicou inteiramente ao projecto de 2010 a 2014, ano em que foi para Los Angeles, nos Estados Unidos, onde vive agora.

Voltaram ao teatro D. Pedro V para gravar o terceiro álbum, “Many Mansions”, em 2015, mais experimental e psicadélico, depois de um ano preenchido com espectáculos. Tocaram no Vietname, onde actuaram no mesmo palco e dia que os Black Rebel Motorcycle, no clube Cargo Bar, em Ho Chi Minh, e em Hanói; em Hong Kong, estiveram no Festival Clockenflap na mesma noite de Franz Ferdinand, e no Grappa’s Cellar, como banda suporte dos neozelandeses Unknown Mortal Orquestra. Também actuaram várias vezes nos Estados Unidos, entre as quais em Nova Iorque, Seattle e no festival South by Southwest (SXSW), que tem lugar em Austin, no Texas; estiveram em Taiwan, Singapura, na Tailândia, Brasil, Espanha e Portugal.

No Canadá, marcaram presença no Canadian Music Week e representaram a China no festival Envol et Macadam, depois de terem vencido a edição chinesa do PlanetRox. Já no Interior do País, pisaram os palcos do célebre Foshan Expat Town International Music Festival e do Midi Festival, em Shenzhen.

“Nunca tivemos ajuda ou apoios. Tínhamos de pagar tudo. Fazer carreira artística, viver da música foi ficando cada vez mais difícil de ano para ano”, lamenta Fred, que explica porque acabaram por ter de privilegiar outros caminhos em detrimento dos Turtle Giant.

Terem a base em Macau contribuiu para os afastar dos palcos, de onde era mais caro e distante viajar para as zonas onde faziam sucesso. Cantar em inglês, por outro lado, complicou a entrada em força no mercado asiático, mais permeável à música em cantonês e mandarim.

Legado

Deixaram lembranças e saudade a quem assistiu aos muitos concertos frenéticos que deram na cidade, mas nenhum puxa dos galões. Recusam-se a falar de legado e preferem falar de (boas) memórias. “Ficaria contente se a projecção que tivemos tenha servido a jovens para alimentar a esperança de ser músico. Mostrámos que era possível, mesmo tocando tão longe de tudo”, afirma Fred.

“O maior impacto foi mesmo na nossa amizade e de fazer algo diferente em Macau. Foi uma oportunidade de ter uma carreira como considero que deve ser. Não a actuar em hotéis, mas a gravar discos e a dar concertos fora. Estávamos estabelecidos aqui, mas viajando”, diz Beto.

A distância ditou o afastamento. “Não vamos mais voltar para Macau e fazer a banda que íamos fazer, e nesse aspecto a banda acabou. O que pode acontecer é haver uma oportunidade de nos juntarmos, na Europa ou nos Estados Unidos, e voltamos a tocar, a gravar, a actuar”, acrescenta o baterista, que logo a seguir ressalva: “De qualquer maneira, não é uma decisão que precisamos de tomar. Não temos contrato com ninguém e não temos de dar essa resposta, nem mesmo para nós. O problema agora é só mesmo que um mora em Macau, outro em Los Angeles e o outro no Porto”.

Fred acrescenta: “Continuamos a tocar, temos muitas músicas que ainda não lançámos. Ainda no ano passado estive com o Kico em Portugal. Fiquei dois meses e gravámos novas músicas, e sempre que estamos os três na mesma cidade tocamos juntos. Isto é mais uma espécie de intervalo”, garante.

O músico, radicado há quase sete anos em Los Angeles, mantém projectos paralelos na indústria. Até à pandemia, que levou ao encerramento dos estúdios, trabalhava como editor de som numa empresa que fazia trailers para filmes da Marvel, Universal e Warner Bros, sem nunca descurar da outra música, a sua.

Em 2018, começou mais um projecto, o mais recente, com uma artista portuguesa que, ironia do destino, conheceu numa estadia em Portugal por causa de um concerto dos Turtle Giant na edição de 2017 do Indie Lisboa. O primeiro disco está prestes a sair depois da dupla ter cativado o interesse de um empresárionorte-americano que trabalha com vários artistas de renome.

O irmão Beto também mantém vivo o vínculo à música. Em Macau, onde vive e trabalha em informática desde 2012, continua a dar concertos, a compor e a escrever, ainda que tenha reduzido a intensidade. “Já pensei muitas vezes em formar outra banda, mas agora é mais difícil, e a vontade de o fazer em Macau não é muita, uma vez que já passei por isso”, desabafa.

Nos espectáculos que vai dando pelos bares da cidade, toca originais e versões de outras músicas. “Vou sempre gostar de actuar. Quando tenho convites, aceito. Manter a relação à música e o hábito de tocar ao vivo é uma questão de sanidade”, diz, entre risos.

A bateria é o que mais gosta, ainda que seja mais frequente vê-lo de guitarra ao ombro. “Também gostava muito de cantar e aprendi a tocar guitarra porque permitia que cantasse ao mesmo tempo, dava-me mais liberdade.”

“My Bonnie” e “Oh When the Saints Go Marching In”, um medley dos Beatles com Tony Sheridan, foi a primeira música que aprendeu, ainda tinha quatro anos. “Crescemos sempre num ambiente muito ligado à música dos anos de 1960, Beatles, Simon and Garfunkel, e assim. O meu pai sempre teve bandas, teve uma pequena carreira musical no Brasil e os meus tios também tocavam. Havia sempre música, nas festas e nos dias normais”, lembra Beto.

Kico, que nasceu em Macau em 1985, também cresceu com a música por perto e acabou por fazer dela ganha-pão. Em paralelo aos projectos musicais que vai tendo, como os Turtle Giant, sempre trabalhou na área para filmes e publicidade. Por agora, e desde 2018, está como realizador, compositor e produtor para a Cubewise, em Portugal.

Em Macau, onde trabalhou no Instituto Cultural de 2011 a 2014, também colaborou com o realizador António Caetano Faria, nos filmes “Rutz”, “Ina” e na curta-metragem “O Cravo”. Fez também a banda sonora do documentário “Mio”, de Pedro Cardeira.

Na calha, tem previsto “4 Hand Pianos” para breve, um álbum de pianos e instrumentais, de músicas que foram escritas para filmes mas que ficaram na gaveta, e outras composições que foi escrevendo desde 2017. Também espera este ano ter cá fora outro disco mais pop-rock a solo, chamado “My Baby, My Mind”. Quer ainda finalizar a banda sonora do documentário que realizou, “Beyond the spreadsheet: The story of TM1”.

Início

A ligação à música está no sangue de Kico graças aos pais. A mãe era responsável pelo departamento de Acção Cultural no Instituto Cultural de Macau e durante anos organizou o Festival Internacional de Música. “Levava-me aos ensaios e aos bastidores dos concertos, convivíamos com os artistas que cá vinham e lembro-me de ser uma excitação, embora fosse tudo muito confuso”, recorda.

O pai António Conceição Júnior, artista conhecido por se destacar em várias artes, tocava guitarra. “Tinha um grupo em Macau chamado Os Intelectuais e cedo me pôs a ouvir os eleitos dele: Dylan, Peter Paul and Mary, Sinatra, Joan Baez. Embora fossem relativamente interessantes na minha infância, são hoje muito mais valorizados por mim.”

Antes da guitarra, tocou violino dos 8 aos 11 anos. “E logo a seguir comecei a aprender guitarra porque achava que tocar violino era vastamente menos interessante, sobretudo na companhia de amigos e com a vontade de fazer bandas. Foi quando eu e o meu melhor amigo decidimos que tínhamos de tocar guitarra e largar o violino porque não era ‘fixe’. Hoje, ironicamente, recorro bastante à secção de cordas para escrever e gravar música. E acho que é dos meus instrumentos favoritos”, reconhece.

Na adolescência, quando estudava na Escola Portuguesa, descobre o rock dos anos de 1990, o grunge e o metal. “O que se ouvia naquela altura”, diz, para reforçar a urgência da guitarra. “Aprendi a tocar essencialmente por mim. Lembro-me que ia com amigos tocar e ouvir outros no Clube de Jazz, nessa altura no NAPE. Acho que foi aí que me envolvi com mais vontade na música. Primeiras bandas, primeiras músicas, primeiros concertos, primeiras festas. Conjugou-se tudo.”

Em Portugal, manteve o interesse. Licenciou-se em Som e Imagem, e fez um mestrado em Cinema e Televisão. Continuou a tocar em várias bandas com amigos e colegas até que criou o projecto a solo que depois trouxe para Macau, O Monstro.

Após uns tempos, conheceu Beto e Fred. “E juntei-me a eles nos Turtle Giant. Foi quando iniciei a minha vida mais activa na música, mais propriamente como compositor/músico. Gravámos dois álbuns, fizemos digressões por alguns países, conhecemos pessoas que nos ensinaram muito, que valorizaram o nosso esforço e a nossa música. Toda a viagem que temos feito com os Turtle Giant desde 2011 tem sido enriquecedora.”

Fred reitera que a ideia é que os Turtle Giant continuem a gravar, lançar álbuns e, quando possível, a actuar juntos como aconteceu em 2017, quando voltaram a coincidir em Macau e aproveitaram a oportunidade para mais um concerto. “Ainda agora, o Kico fez um documentário em Portugal e fui o editor de som. Estamos em permanente contacto e trabalhamos juntos até noutros projectos”, sublinha.

Fred não tem dúvidas de que a música é o que quer fazer, com mais ou menos sacrifício. Mas nem sempre foi assim. Em criança os sonhos eram outros. A viver no Brasil, era o futebol que lhe alimentava os sonhos. “A música sempre esteve presente em casa, mas nunca tive grande afinidade. O meu irmão sim, começou a tocar logo aos três, quatro anos. Eu era mais futebol”, recorda.

A viragem deu-se aos 9 anos, quando a família deixou a América Latina e emigrou para Miami, nos Estados Unidos.  A paixão pela música foi culpa do pai, também músico, e que fez dela o habitat dos filhos. Cedo os ensinou a tocar e a cantar. Fred começou pelo baixo. “Lembro-me que a primeira música que aprendi foi o ‘Stand By Me’, de Ben E King.”

E nunca mais parou. Aos 12 anos já compunha. Três anos depois, a família voltou a mudar-se, desta vez para Macau. “E foi igual. Começámos a tocar com amigos. A música está na minha vida praticamente desde os 10 anos”, sublinha. É no território que começa a ganhar contornos mais sérios. Na adolescência, com 17 anos, desdobra-se em bandas e concertos.

Aos 14, também em Macau, Beto fazia parte da Plasma, Search e Mandarina. Foram vários os concertos e festas que organizavam nos anos de 1990 na Escola Comercial Pedro Nolasco e noutros locais com o apoio da Fundação Oriente, o equipamento do estúdio Kai Sun e o dinheiro que iam conseguindo da venda dos bilhetes. Também cantavam em português, mas o inglês predominava já que era também nessa língua que cantavam artistas que admiravam. Acabaria também por ser o idioma privilegiado pelos Turtle Giant, por ser a mais natural para os dois irmãos que viveram vários anos nos Estados Unidos.

Outros tempos

Em meados dos anos de 1990, os irmãos terminaram o ensino secundário e deixaram Macau para estudar. Fred e Beto escolheram a Califórnia para seguir o ensino superior. Ainda não tinham passado três meses nos Estados Unidos e já tinham uma banda. Ambos optaram por não estudar música. Beto escolheu Ciência Cognitiva, na Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi com o grupo Pat Johnson que tocou nos anos da faculdade com o irmão, que seguiu Design Gráfico.

De forma autodidacta, como aliás aconteceu com os dois desde sempre no que respeita à música, Fred foi-se especializando em diferentes áreas directa e indirectamente ligadas ao sector. “A partir de 2003, 2004, comecei a gravar e fui aprendendo a ser produtor de música. Quando me mudei para os Estados Unidos, comecei a trabalhar como engenheiro de som para algumas empresas.”

Trabalhou no canal MTV, em estúdios e agências nas áreas de produção, engenharia e edição de som, sem nunca deixar projectos próprios de parte. Nijube, Stingray Domino e O Naufrago são alguns. “Continuo a tentar. A minha ideia é manter-me em Los Angeles, trabalhando em cinema como produtor musical e ao mesmo tempo ir tendo projectos na música”, refere. “Na verdade, está tudo interligado. Gravo, toco, componho. Dá para fazer tudo. O mundo na música está mudando muito, mesmo na relação com as gravadoras”, constata.

“É inevitável ter que trabalhar. São poucos os que conseguem viver só da música.

Para termos uma família, uma vida normal, segurança, que todos queremos, é muito complicado viver só disto.”

Beto reconhece que continua a ser difícil fazer percurso na música, especialmente para quem está em Macau e na Ásia, porque há que fazer viagens constantes e concertos fora para se crescer. “Essa é a parte que não sei se quero voltar a fazer”, assume. “Tenho outra idade. A motivação nunca foi ser famoso, mas sim o orgulho no que estávamos a fazer: as viagens, as pessoas que conhecemos, o que conseguimos expressar através das nossas músicas e, ao mesmo tempo, desfrutarmos. Isso é o que considero ter uma vida rica. Quando olho para trás, o que ficou de melhor foi a nossa amizade e as pessoas que fomos conhecendo.”