Muitas cartas para dar

A histórica loja de magia Iong, fundada em 1986, que conta até com uma aparição em Hollywood, tem planos para continuar a crescer além de Macau. A aposta é continuar a dar cartas na Grande Baía. Para o fundador Raymond Iong, “pensar” deve ser a principal matéria-prima de uma arte capaz de fascinar o público e materializar visualmente estímulos provenientes da literatura, da filosofia ou da música. Abracadabra

Texto: Pedro Arede | Foto: Gonçalo Lobo Pinheiro

Tudo começou quando Raymond Iong tinha seis anos. Não foram precisas palavras mágicas. Certo dia, enquanto passeava com os pais numa viagem de família a Zhongshan, na província de Guangdong, reparou que um dos muitos artistas de rua que ganham a vida na cidade através da exibição do seu engenho, estava a fazer um truque de magia com um copo de água. O homem era já mais velho. A ideia simples. No início do número, era apresentado um copo vazio como tantos outros, que era depois coberto com um pano. Ao tirar o pano, o velho mágico revelava um copo cheio de água diante dos olhos dos mirones. Raymond ficou perplexo e não descansou enquanto não descobriu como se faz nascer água onde ela não existe.

“Na altura fiquei muito surpreendido e pedi ao homem para me dizer qual era o segredo do truque de magia. Na resposta, o velho disse que me explicava tudo se, em troca, lhe desse 300 yuans. A partir daí comecei a juntar dinheiro e, durante um ano, deixei de tomar o pequeno-almoço e guardei todos os envelopes vermelhos com dinheiro que me deram. Um ano depois, já com sete anos de idade, voltei a Zhongshan e dei os 300 yuans ao velho. Foi o primeiro truque de magia que aprendi na minha vida. Ainda hoje faço esse truque”, partilhou Raymond Iong, o primeiro ilusionista de Macau, agora com 52 anos, sendo o único em toda a China a ser galardoado com o prémio “Merlin Award”, a distinção máxima do sector a nível mundial.  

Raymond é o fundador da Loja de Magia Iong, a primeira do género em Macau e já com inúmeras cartas dadas, tanto ao nível da criação da sua própria marca de artigos de magia como na realização de espectáculos de grande envergadura em Macau, um pouco por toda a China, e não só. Além disso, a loja fundada em 1986, tem sido também responsável pela formação da nova geração de ilusionistas do território, promovendo semanalmente ateliês em várias escolas de Macau.

Com o copo já meio cheio, a vontade de aprender magia surgiu, explicou Raymond Iong à MACAU, pelo facto de “não haver ninguém” dedicado a essa arte em Macau. “Só havia [ilusionistas] estrangeiros e tinha o sonho de abrir uma loja de magia em Macau e começar a desenvolver aqui esta arte”, acrescentou. Além disso, a vontade de “fazer a diferença”, inspirada pela conhecida frase, com o mesmo conteúdo, proferida pelo antigo presidente norte-americano John Kennedy, contribuiu para que o artista começasse a palmilhar o caminho para mudar o sector da magia em Macau.

“Ao longo da minha vida, mantive sempre uma frase dentro do meu coração: ‘I want to make a difference’ [eu quero fazer a diferença]. Esta frase entrou logo na minha cabeça e, tal como o antigo presidente dos Estados Unidos, fiquei com uma enorme vontade de introduzir uma verdadeira mudança na minha área, que é a magia. Queria começar a fazer coisas em grande quantidade, como organizar competições e dar aulas, por exemplo, para mudar o sector da magia em Macau”, apontou.

“Olhando para o futuro não existia nada. Na altura, o sector da magia na China não era como o dos Estados Unidos, onde havia uma grande figura como o David Coperfield, em Las Vegas, e toda uma estrutura já bastante desenvolvida. Em Macau fui a primeira pessoa a enveredar por este sector, tendo sido capaz de liderar os meus discípulos e estudantes na área da magia, ainda com toda a estrada à nossa frente por construir.”

Dentro do segredo

Ao entrar na loja, situada a poucos metros da escadaria das Ruínas de São Paulo, o fado ecoa aos ouvidos de quem entra, há pouca luz, objectos mirabolantes e pombas brancas fechadas em gaiolas, talvez na esperança de, um dia, poderem vir a sair de uma qualquer cartola perante as exclamações surpreendidas da audiência. A forrar as paredes é possível ver cartazes de Houdini e de outros ilusionistas famosos. Ao balcão há baralhos de cartas, bolas de cristal e varinhas mágicas de todos os tamanhos e feitios à espera de que alguém lhes desperte os sentidos para viver uma vida oculta.

“Por detrás do valor da magia está sempre o segredo e em cada truque há um segredo. No entanto, para ensinar magia às novas gerações, não basta ensinar como se faz um truque e qual o seu segredo”, começou por explicar Raymond Iong quando questionado sobre o que é preciso para domar o dom da ilusão.

Na visão de Raymond, a magia é algo que, à semelhança, por exemplo, do kung fu, deve ser passado de geração em geração e onde o mestre transmite conhecimento aos discípulos através de uma convivência próxima e quase familiar, baseada na partilha de situações do quotidiano e na construção do seu próprio conhecimento e ferramentas. 

“No Ocidente, abre-se uma escola e envia-se os alunos para aprender magia. Aqui é diferente, é semelhante ao que acontece no kung fu, em que o mestre ensina a técnica aos seus discípulos. Para mim, a magia também é assim. Aqui, não existe uma mera relação entre professor e aluno, [a aprendizagem] passa muito por conviver de perto com o mestre, como se fossemos membros da mesma família. Aqui trabalhamos todos juntos, convivemos durante muito tempo e criamos até os nossos próprios materiais para fazer magia, em vez de os comprar já feitos. O conhecimento transmitido pelo mestre é segredo, não é uma coisa que se conte às pessoas na rua. Apenas é possível aprender magia através de um mestre e, daí sucessivamente, o conhecimento vai passando de geração em geração. É preciso construir as raízes para se criar uma família da magia”, partilhou.

Além disso, para o ilusionista importa, acima de tudo, fornecer aos aprendizes as ferramentas e as matérias-primas necessárias, em termos de ideias, para que sejam eles próprios a criar os seus truques de magia. Para tal, e porque “a magia vem na sua totalidade do conhecimento que temos da natureza”, os discípulos são incentivados a partir em busca da criatividade.

“Um mestre deve ensinar que um truque de magia inclui vários elementos que vão desde a literatura, a história e a filosofia, até às ciências. Isto é extremamente importante porque a magia vem, na sua totalidade, do conhecimento que temos da natureza. Agora, para se introduzir elementos das ciências, literatura e filosofia num truque de magia é preciso criatividade e, por isso, em vez de se ensinar como se faz um truque, acredito que se deve ensinar de que forma é possível criar um truque de magia. Foi isso que procurei fazer com os meus alunos. Para se chegar a uma obra de excelência, é preciso desenvolver um elevado nível de criatividade. Para activar essa criatividade e incentivar a criação de ideias originais, aconselho sempre os meus alunos a lerem mais livros, ouvirem música e a verem mais performances. Isso é o mais importante e aquilo que tem mais valor.”

No centro de toda esta equação, explica o histórico ilusionista de Macau, está uma palavra, que é também um aspecto “fundamental” para se chegar à inspiração necessária: pensar. Para Raymond, “pensar” é o mecanismo que permite a qualquer mágico materializar e aglutinar numa performance, o conjunto das ideias recolhidas através da exploração do mundo que nos rodeia, quer seja através da exploração de diversas áreas do conhecimento, quer da própria experiência de vida. Até porque, no limite, e na óptica de Raymond, qualquer truque de magia deve ser capaz de transmitir emoções à audiência.

“A magia é um caminho feito de pensamento e criação. Considero também muito importante, em qualquer truque de magia, sermos capazes de passar emoção, pois todas as pessoas têm as suas próprias emoções. Há pessoas mais expansivas, há quem chore ou acabe a partir coisas, por exemplo, mas eu canalizo tudo através da magia. Quando estou triste, feliz ou zangado, procuro passar essas emoções através da magia. Se estou zangado ou se me chateei com a minha família, crio uma magia. Isto é aquilo a que chamo experiência de vida e, quando temos mais experiências de vida, a nossa obra passa a ter mais conteúdo. Pensar e criar é fundamental”, contou.

Outra das funções que a magia deve ter, conta à MACAU, deve ser a de passar “uma mensagem”, tal como num filme, peça de teatro ou na literatura, seja ela uma “crítica social ou ao poder instituído” durante uma guerra ou revolução. Exemplo disso, e estando já num patamar mais evoluído no que diz respeito aos meandros da ilusão, é aquilo que Raymond tem procurado fazer através da adaptação de literatura chinesa clássica à magia, materializando-a num formato mais visual.

“Através da magia é possível passar as ideias de um livro para um formato mais visual. Foi isto que procurei fazer, por exemplo, através da adaptação de literatura chinesa clássica que dura até aos dias de hoje. Depois de fazer as minhas leituras e de assimilar a filosofia nelas contidas, procurei materializar tudo nas minhas obras. Com os meus espectáculos de magia não pretendo apenas revelar segredos ou executar números, mas sim transmitir ao público o que transparece dessas obras ao nível da filosofia, das emoções e da história chinesa.”

Aprendizes

O dia-a-dia na loja de magia Iong é composto por uma miríade de tarefas, desde a venda de artigos de magia até à formação de jovens ilusionistas, passando, claro, pela organização e discussão de propostas de realização de espectáculos, cujos principais clientes são sobretudo o Governo, os resorts integrados e algumas empresas do sector privado.

Conta Victor Choi, ilusionista que começou a aprender magia com Raymond Iong quando tinha 15 anos, que a seu cargo estão também os ateliês de magia promovidos semanalmente em várias escolas de Macau. Assumindo à partida que “nem todas as pessoas que aprendem magia querem ser ilusionistas”, a iniciativa pretende vincar que a magia, por ser “uma arte que envolve muita criatividade e pensamento”, pode ser um meio para “activar o interesse dos alunos pela aprendizagem” de todo o tipo de matérias, desde o inglês à matemática.

Outro dos elementos que faz parte da equipa de Raymond é Jiro. Mais conhecido por “One”, o ilusionista corrobora que nem todos os alunos dos ateliês demonstram interesse pelo mundo da magia, embora assegure que aqueles que demonstram talento e apetência para aguentar a prática, são depois convidados para ir para a loja. “Se conseguirem ter a paciência para aguentar todo o processo e a prática ao longo do tempo, provavelmente irão mudar-se aqui para a loja, deixando de ser alunos e passando assim a ser aprendizes”, apontou.

Conquistar a sorte

“Crescer em Macau é uma sorte. A vantagem de viver aqui é, em primeiro lugar, a calma e a possibilidade de fazer tudo lentamente”, afirma sem rodeios Raymond Iong, quando questionado sobre de que forma a cidade o influencia a continuar a fazer magia. “Ainda bem que nasci e cresci em Macau. Aqui temos um ambiente muito calmo que nos permite ter tempo e matérias para pensar”.

Falando ainda da forma como Macau o moldou, Raymond acrescenta que a terra onde nasceu lhe permitiu “receber uma cultura diversa, proveniente de todo o lado”. “Em Macau há mais diversidade e uma mistura única de cultura oriental e ocidental. Além disso, sofremos também a boa influência de obras de toda a Ásia, como por exemplo do Japão”, rematou.

Mas a sorte de Raymond e da loja de Magia Iong não se ficou por aqui, acabando, literalmente, por bater à sua porta em meados de 2016. Isto porque, ainda a loja se localizava perto do hospital Kiang Wu, quando uma equipa de produção de Hollywood entrou no espaço para averiguar a possibilidade de filmar algumas cenas para o filme “Now You See Me 2” (“Mestres da Ilusão 2”, no título em português). A ideia seria gravar no interior da loja, assumindo o nome original do estabelecimento. O conhecido actor de Taiwan Jay Chou interpretaria o papel de Raymond Iong. Assim foi.

“Só tenho uma palavra para explicar como é que a nossa loja acabou por aparecer num filme de Hollywood: sorte. Claro que não foi só sorte. A produção queria fazer um filme que incluísse Macau e elementos relacionados com magia e por isso enviaram cá uma equipa de filmagens e, a partir daí, a única hipótese de juntar Macau e magia num filme era através da Loja de Magia Iong. Digo que não é só sorte, pois acredito que se não tivéssemos trabalhado bem não teríamos tido a capacidade de receber este trabalho. A primeira vez que a equipa de produção entrou na loja não se identificou, fazendo-se passar por um grupo de turistas. Viram algumas obras e performances, gostaram e, na terceira vez que visitaram a loja, disseram que eram de Hollywood, estavam a fazer o filme ‘Now You See Me 2’ e convidaram-nos para participar no filme”, conta Raymond.  

A partir daí, explicou o ilusionista, foram negociados os termos das licenças e os direitos de imagem e, embora acredite não ter lucrado muito com a situação a nível financeiro, o reconhecimento e a exposição que o filme trouxe à loja, foi uma “grande vitória”.

“Nunca tinha tido uma experiência do género e, por isso, não sabia como negociar e até hoje não sei se foi muito ou pouco. Na verdade, penso que o valor que recebemos [pelas gravações] não foi muito bom, mas a grande vitória desse acontecimento foi mesmo o elevado número de oportunidades e o reconhecimento que surgiu a partir daí.”

Continuar a crescer

As portas que se abriram com a aparição da Loja de Magia Iong numa montra tão prestigiante como a de Hollywood cedo começaram a dar os seus frutos, ao ponto de passar a existir uma sucursal da marca “Iong’s Magic” em Hengqin, sob a gestão de uma companhia de Hollywood. Os objectivos agora passam por continuar a expandir o negócio no Interior do País, especialmente na Grande Baía.

“Na Ilha da Montanha passou a haver uma loja com a nossa marca dentro de um centro comercial luxuoso situado no Parque Turístico de Hengqin. A loja não é gerida por nós, mas por uma empresa de Hollywood, sob o nome ‘Iong’s Magic’, que vende os nossos produtos. Tudo isto é graças ao filme ‘Now You See Me 2’, que nos trouxe reconhecimento, nome e levou os nossos produtos, não só para o Interior do País mas também para o resto do mundo”, disse Raymond à MACAU.

Além disso, revelou Raymond, existe uma outra loja na cidade de Cantão que se assume como “a sede do grupo Iong na província” e que tem como objectivo “desenvolver os trabalhos futuros no Interior do País”. Na calha, para além de estarem já a ser estabelecidos contactos com empresas artísticas para continuar a organizar cada vez mais espectáculos no Interior do País, está ainda o sonho de construir uma atracção alusiva à magia no parque de diversões Chimelong.  

“Brevemente, gostaria de cooperar com o parque de diversões Chimelong, para construir uma atracção que tem como base elementos relacionados com a magia. Queria muito fazer isto e estamos a caminho de realizar este sonho através da cooperação com esse parque temático”, revelou à MACAU.

Sem nunca esquecer o caminho que o trouxe até ao presente, quando questionado sobre quais os ingredientes essenciais para triunfar no mundo da magia, Raymond Iong respondeu prontamente que um mágico deve ter “paciência”, “personalidade positiva” e “curiosidade”. “Uma pessoa deve ser curiosa em relação a todos os elementos, até quando está a segurar numa caneta.”