São a última geração de sapateiros em Macau e dos poucos que sobrevivem na cidade. Ng Iok Sao, Wong Kun Long, Lei Su Meng, Wong e Lei aprenderam com a geração anterior, mas reconhecem que será difícil que a seguinte lhes siga os passos. A profissão dura e mal remunerada afasta os mais novos com outras perspectivas numa cidade que cresceu. As 30 patacas que levam por arranjo dá para os gastos de uma vida modesta, mas afasta os jovens com mais ambição
Texto: Catarina Brites Soares
Fotos: Gonçalo Lobo Pinheiro
Ng Iok Sao: a mulher
É num canto da Travessa dos Alfaiates, perpendicular à Rua dos Mercadores que Ng Iok Sao trabalha. Todos os dias, arruma e desarruma o material que precisa e que protege com uma lona e um cadeado sempre que se ausenta.
Sentada num banco e com a máquina Singer das antigas à sua frente, todos os dias está ali para consertar sapatos, malas, cintos e outros acessórios. De óculos na cabeça – que vai metendo quando é preciso afinar a vista – conta à MACAU como acabou a ser sapateira. A única mulher neste ofício no território.
A morte do marido ditou o destino. O desgosto que o investimento de vida do companheiro morresse com ele fez com que decidisse dedicar-se ao ofício. Já lá vão 12 anos e não concebe reformar-se. A par da importância do que faz, diz que é também uma forma de estar ocupada em vez de passar os dias sozinha em casa. “Tenciono continuar a trabalhar. Quando nos reformamos não há nada para fazer”, afirma, com um sorriso.
Pelo beco passam vários clientes e vizinhos, que se vão sentando nos bancos e cadeiras em volta do espaço curto. É assim que passa os dias, dividida entre o trabalho e o convívio durante o período que está por ali, normalmente das 11h30 às 17h00.
Sobre o início, sabe o que o marido lhe contou porque não acompanhou a história do princípio. O sogro já era sapateiro em Macau e quando morreu, o filho decidiu continuar e dar uso ao que tinha aprendido com o pai. Na altura, trabalhava numa fábrica em Hong Kong e decidiu voltar para Macau, onde nasceu. Foi nos inícios dos anos de 1970 que o marido abre a sapataria onde antes era uma loja de bebidas. “Sempre disse que, em fechando aquela loja, a queria comprar para ser sapateiro”, detalha. O pai morreu, o negócio de refrigerantes fechou e assim fez.
Uma década depois, em 1982, casa com Ng Iok Sao em Zhuhai. O casal estabelece-se em Macau e Ng começa a ajudar sempre que era preciso. A casa onde viviam era perto e vinha a correr quando o marido a chamava através do walkie-talkie que usavam para comunicar. Na altura, conta, era pouco o tempo que despendia na lide dos sapatos já que o marido trabalhava, e ela tomava conta da casa e dos filhos.
O parco orçamento familiar fez com que tivesse de trabalhar mais tarde. Já com os filhos criados, inicia-se como cozinheira, depois operária numa fábrica e mais tarde passa a empregada doméstica, ocupação que teve durante 10 anos até 2010, quando substitui o marido depois de morrer.
“Ninguém me ensinou. Via o meu marido e fui aprendendo. No início, não tinha muito trabalho. As pessoas apareciam, mas viam que o meu marido não estava e iam-se embora. Com o tempo, começaram a confiar e passei a ter mais clientela”, recorda.
“Cada caso é um caso e essa é a parte mais difícil de ser sapateira. O pior é quando tenho de arranjar as solas. Às vezes, magoava-me com a agulha na mão para conseguir chegar às partes mais estreitas do sapato.”
Nos tempos do marido também vendiam calçado, afirma ao mesmo tempo que mostra fotos do antigo espaço. A pequena loja com uma vitrina onde os sapatos estavam expostos foi demolida em 1996 e Ng Iok Sao decidiu que não fazia sentido continuar a vender.
A loja encolheu e o ofício foi caindo com a diminuição do número de sapateiros na cidade, mas Ng não se queixa. “Na altura do meu marido havia muitos sapateiros. Só nesta zona estavam três. Como agora há poucos, há muita procura. Os do tempo do meu marido já têm todos perto de 80 anos e já se reformaram, e não há novos aprendizes”, explica, justificando o aumento da procura.
“É um trabalho muito difícil, sujo e ninguém quer aprender”, acrescenta. Constata que é uma profissão em morte lenta e lamenta. “Vai deixar de haver quem saiba arranjar sapatos. Hoje, compra-se e deita-se fora. É um desperdício. Embora o desenvolvimento da cidade tenha feito com que mais gente tenha poder de compra, continua a haver quem viva mal e não possa andar sempre a comprar novo. Além disso, há sempre aquelas coisas especiais que queremos guardar porque têm um significado.”
É também por isso que Ng gosta do que faz. “De certa maneira, estou a ajudar as pessoas. Também já tenho alguma idade e é uma forma de passar o tempo. Vou falando com quem passa e gosto disso”, afirma a sapateira, com 69 anos.
Wong Kun Long: o arrependido
Wong Kun Long é vizinho de Ng Iok Sao. É nas traseiras do Mercado de São Domingos que todos os dias, das 11h00 às 19h00, o sapateiro trabalha entre estantes e sacos cheias de sapatos. Quase que não se vê dentro da banca que abriu em 2004.
À MACAU conta que aprendeu com o pai e é sapateiro desde jovem. Tinha 16 anos quando começou. “Fazia sapatos, mas a idade já não permite e, por isso, agora só os arranjo”, diz, encarando a mudança com humor. “Quando tinha de os fazer era mais difícil. Agora, não preciso de pensar tanto.”
Antes de se transferir para o centro da cidade, Wong Kun Long trabalhava na oficina que tinha em casa. Assim foi durante décadas até que os filhos cresceram e foi preciso mais espaço. Mudou-se então para a zona do Largo do Senado porque ficava perto de casa.
Calmo, intercala as poucas palavras com sorrisos quando a pergunta lhe parece estranha. Foi o caso quando contou como acabou a ser sapateiro. “Não escolhi. Era uma das poucas coisas que podia fazer e assim foi. A alternativa era ser alfaiate.”
Enquanto liga a máquina de aquecer água, que tem nas costas empoleirada numa das estantes e no meio da pilha de sacos, volta a martelar o salto que está a arranjar e diz que os cinco a seis pares de sapatos que arranja diariamente – a um custo mínimo de 30 patacas – vão dando para viver. “Não se ganha muito, mas sobrevive-se.” À semelhança de Ng Iok Sao, também nota mais clientela. “Há cada vez menos sapateiros. Já somos muito poucos.”
Aos 67 anos, aceita a realidade como um processo normal do desenvolvimento. “As circunstâncias mudaram, a vida mudou. Não penso se é triste ou não. O ofício vai morrendo aos poucos. Cada vez que um sapateiro morre, é mais um bocadinho que se apaga da profissão”, acrescenta. “É um trabalho sujo, sem férias e as pessoas hoje são preguiçosas. Ninguém quer aprender este tipo de ofícios”, refere. “Os meus filhos? Nem que lhes pagassem”, ri.
Não os condena. Admite que se tivesse tido escolha, o rumo teria sido outro. “Tinha estudado mais, escolhido outra profissão, menos dura e exigente.”
Lei Su Meng: o orgulhoso
A poucos passos de Wong Kun Long está Lei Su Meng, também num mercado tradicional da cidade: o da Horta da Mitra. É numa das bancas em redor que o sapateiro repara malas, cintos e calçado. Há uns que destaca: os que faz para pessoas com deficiências. Diz que é o único na cidade que ainda faz calçado adaptado. Este é um dos motivos que o orgulha da profissão que acabou por escolher.
Também aprendeu com o pai, que veio do Interior do País para Macau ainda novo. Foi o primeiro sapateiro da família e quem ensinou o filho, quando também era pequeno. Lei agarrou o negócio de família aos 26 anos, depois de deixar o sector da construção naval que começava a declinar. “Não tive de aprender de propósito porque desde pequeno que ajudava o meu pai”, explica.
Começou a dedicar-se por inteiro ao ofício em 1985, na loja que o pai tinha no Mercado Vermelho. “Sempre fui ajudando quando tinha tempo. Quando deixei de ter trabalho como construtor naval, decidi ser sapateiro. O meu pai também já estava mais velho e fazia sentido.”
Ficou com a loja até 2005/2006, ano em que o pai se reformou e fechou. “Ele reformou-se e eu também me reformei, de certa forma”, afirma com humor.
Os 10 anos que se seguiram foram de trabalho intermitente, sobretudo a fazer biscates, por exemplo, como electricista, com amigos que o iam chamando. Isto até 2018, quando consegue o espaço onde está. “Decidi retomar porque queria ter um espaço onde o meu filho pudesse aprender e continuar o negócio de família. Nunca abri um espaço antes porque arrendar uma loja é muito caro. Aqui não tenho de estar preocupado “, explica, referindo-se à isenção de renda. Desde 2004 que os arrendatários de espaços nos mercados municipais e vendedores de rua com lugar fixo estão isentos do pagamento de rendas e das tarifas de licenciamento.
O filho está na Universidade de Macau a estudar Finanças. Apesar do investimento na formação académica, Lei Su Meng faz questão que a próxima geração aprenda. “Quero que passe de geração em geração, e que o meu filho aprenda comigo”, vinca.
Desconsidera a questão da paixão pelo ofício, até porque nunca se colocou com ele. O mais importante, sublinha, era continuar o negócio que o pai lhe tinha deixado. “Não é uma questão de se gostar ou não. Tem de aprender. Acho que o meu filho acabará por seguir o que está a estudar, mas pelo menos sabe. Depois já não quero saber. O importante é aprender. Ser sapateiro é um ofício tradicional, é património de Macau e neste caso um legado de família”, reitera. “Sinto a responsabilidade de lhe transmitir este saber. Depois já não é comigo, ele que faça o que entender.”
A loja está em nome do filho já a pensar no futuro, ainda que este não lhe pareça risonho. A clientela cada vez menor e a dificuldade em ter o material – mais caro e difícil -– reduzem-lhe as expectativas. “É cada vez mais difícil que certos produtos passem na Alfândega. É difícil encomendar cola, por exemplo, porque é considerado um material altamente inflamável”, exemplifica.
A alternativa é comprar pessoalmente, como fazia em idas regulares a Hong Kong até à pandemia começar. Na região vizinha diz que ainda se encontram lojas antigas que vendem os artigos, mas que também já vai sendo complicado encontrar pele, couro, cola e outros artigos necessários à actividade.
O impedimento de ir a Hong Kong devido à pandemia, obrigou-o a revezar-se com o que lhe resta. “Tenho que chegue para mais seis, sete meses. Se até lá as fronteiras se mantiverem fechadas, vou ter de encerrar por uns tempos”, antecipa. Recorrer ao mercado do Interior da China, ressalva, não é uma hipótese porque há materiais que só encontra em Hong Kong e porque a qualidade na região vizinha é superior.
Recorda os tempos do pai, que agora tem 90 anos, quando estes problemas não se colocavam. “Cheguei a fazer sapatos tradicionais para a dança folclórica portuguesa. E lembro-me de uma senhora portuguesa que se chamava Anabela, que veio aqui e arranjou dezenas de sapatos antes de ir de vez embora para Portugal em 1999”, lembra.
“Agora há cada vez menos sapateiros. Sou dos poucos que ainda resta”, refere. “Mas é importante. Além de ser muito mais ecológico porque não se está sempre a comprar novo, também é uma forma de ajudar as pessoas, como é o caso dos sapatos adaptados.”
Enquanto a saúde o deixar, garante que ali continuará, atrás do pequeno balcão onde de pé vai dando conta dos sacos que se acumulam. “Dá para viver. Não faço muito dinheiro, mas também não morro à fome”, brinca. Em média arranja cinco a seis pares de sapatos, mas há dias que chega aos 20, apesar de só trabalhar de tarde, das 15h00 às 19h00.
O relógio parado numa das paredes confirma a despreocupação. O horário a meio-tempo foi uma escolha já que gosta de reservar as manhãs para o desporto, tomar chá e conviver com amigos. “Se estivesse aberto todo o dia, ganhava mais dinheiro”, admite Lei Su Meng, de 60 anos.
Wong: o tardio
É uma história rara. Wong aprendeu cedo, mas começou tarde. Foi apenas aos 62 anos que agarrou o ofício que herdou do pai. Desde novo que ajudava, nas férias e tempos livres, mas só há cinco anos fez do hobbie profissão. O pai reformou-se e Wong ficou com a licença. “Se pudesse, tinha escolhido outra vida. Mas foi assim”, afirma o sapateiro, agora com 67 anos. “Aqui continuarei enquanto a saúde me deixar. É uma forma de passar o tempo. Já tenho alguma idade e é assim que me vou ocupando.”
A oficina é a rua. Limita-se a umas cadeiras onde os clientes se sentam enquanto esperam pelas reparações quando são rápidas e fáceis, um banco rasteiro onde se senta ele, e um pequeno móvel onde guarda sacos e ferramentas que vai usando. Quando fecha, organiza tudo e tapa o material com uma lona e um cadeado. O local na Rua da Madre Terezinha, perpendicular à Avenida de Horta e Costa, foi também o posto de trabalho do pai, que veio do Interior do País para Macau em 1972.
Enquanto o pai trabalhou, Wong era pedreiro e só “dava uma mão” quando podia. “Duas pessoas aqui era de mais. Não se justificava. Por isso, só vinha ajudar. Agora que já tenho uma certa idade e fiquei com a licença do meu pai, prefiro ser sapateiro. É uma profissão menos dura que ser pedreiro. Menos esforço físico”, afirma, ao mesmo tempo que arranja os saltos a uma cliente.
Apesar do interregno de décadas, garante que não esqueceu a técnica. É também por isso que não encontra grandes dificuldades agora que trocou o cimento pela cola e os tijolos pelos sapatos. O maior obstáculo é a instabilidade. Se há dias que não pára, há outros que ninguém para. “Depende das alturas. No período do Ano Novo chinês o negócio melhora sempre. Quanto ao dinheiro também depende. Há dias que dá para os gastos, outros que não”, desabafa.
Em média, arranja seis a sete pares por dia. Começa por volta das 9h30, interrompe ao meio-dia e meia para almoçar e retoma das 13h30 até às 18h30. Todos os dias. “A zona é boa”, diz. “Passam muitas pessoas e é sempre mais fácil conseguir clientes.”
Antes tinha explicado que abrir uma loja nunca foi uma hipótese tendo em conta as rendas altas. “Não conseguiria pagar. Assim não podia viver”, salienta.
Wong confessa ter dificuldade em verbalizar o que lhe vai na alma sobre temas mais existenciais como o futuro da profissão. Lacónico, afirma apenas que nunca ninguém procurou aprender consigo. “Os meus filhos também nunca tiveram interesse. Não tenho pena. Eles é que sabem do que gostam e devem seguir isso.”
“Não sei dizer se lamento ou não que os sapateiros deixem de existir em Macau. Mas é verdade que a cada um que morre, é mais um bocadinho que se vai da profissão. Já somos muito poucos.”
Lei: sapateiro à força
Quase ao lado de Wong está Lei, de 60 anos. À semelhança da maioria dos companheiros de profissão que falaram com a MACAU, também ele aprendeu com o pai. Começou tarde, como o vizinho da Horta e Costa. Apesar de ajudar o pai desde os 20 e poucos anos, só no ano passado passou a fazer dos sapatos profissão, quando perdeu o emprego como cozinheiro em Agosto por causa da pandemia.
O desemprego não lhe deixou alternativa senão aproveitar o que tinha aprendido em criança. Agora divide o horário das 10h00 às 19h00: o pai trabalha de manhã, ele durante a tarde. “No início, foi complicado. Tinha alguma vergonha na interacção com as pessoas e não sabia quanto lhes cobrar. Também havia coisas que não sabia fazer. Mas, com o tempo, e observando o meu pai, fui melhorando”, afirma.
“Não vale a pena estarmos aqui os dois. Não há negócio para isso”, justifica. O espaço repete a fisionomia do sapateiro Wong, na mesma zona. Uma cadeira rasteira onde se senta, com outras mais altas distribuídas em redor, cruzetas com os sacos pendurados pelos canos agarrados à parede e ferramentas espalhadas pelo chão, além do pé de sapateiro e outra máquina que tem na frente: é assim a oficina no Pátio da Horta e Costa.
O local não foi escolhido a dedo. Calhou. Tal como os restantes, nunca foi uma possibilidade abrir uma loja por causa dos elevados preços das rendas. Ali bastava a licença de sapateiro. “Acabou por nos sair bem. É uma zona onde passa muita gente. Na altura em que o meu pai abriu, nunca se pensou que fosse ter tanto movimento”, realça.
O pai começou a ser sapateiro em 1979, quando chegou a Macau vindo de Taishan, em Guangdong, com a família à procura de uma vida melhor. “A economia não estava muito boa em Guangdong e Macau começava a desenvolver-se”, recorda.
Faltaram oportunidades de emprego como electricista, profissão que tinha até então, e foi assim que decidiu aprender o ofício. “No tempo dele, há mais de 30 anos, havia mais clientes. Agora há cada vez menos, também é mais caro.”
Além do preço, Lei invoca a mudança dos tempos para justificar desaparecimento da profissão. “Os jovens já não se preocupam em arranjar o que se estraga ou está velho. Vai para o lixo e compra-se novo. Depois também está muito na moda comprar na Internet”, aponta.
“Na altura do meu pai havia muito mais procura. A economia não estava tão boa e as pessoas tinham mais o hábito de arranjar.” Hoje diz que dá para viver, mas ressalva: “Só se se levar uma vida simples”.
Na família dificilmente haverá quem dê continuidade. Lei diz que os filhos nunca mostraram interesse. “Estudam e vão seguir outros caminhos. Não me dá pena. Hoje em dia qualquer profissão é melhor do que ser sapateiro”, constata, resignado.
É também resignação que mostra quando fala do percurso que escolheu. Não responde se teria escolhido outro, mas frisa que quando decidiu ser cozinheiro era um caminho promissor. “Em 1979, havia poucas áreas para escolher. Também havias poucos hotéis e ser cozinheiro era muito bom.”
Agora, com a idade que tem e nos tempos que correm, afirma que ninguém o contrata, mas reformar-se está fora de questão. “Só me reformo quando a saúde já não me permitir trabalhar. O que é que eu vou fazer? Ficar em casa ainda é mais monótono.”
O pai pensa da mesma forma. Enquanto puder, vai continuar a ocupar as manhãs a arranjar os sapatos de quem por ali pára, apesar de ter mais de 80 anos.