São das crenças locais mais populares, tendo-se tornado numa importante tradição da comunidade chinesa. As crenças e costumes de A-Má têm passado de geração em geração ao longo de séculos e são hoje um testemunho da divulgação e transmissão da cultura popular chinesa em Macau. Desde 2014, fazem parte da Lista de Património Imaterial da China
Texto: Catarina Brites Soares
Fotos: Gonçalo Lobo Pinheiro
Durante séculos, grande parte da população local dedicava-se à pesca e ao comércio externo, e era por isso compelida a desafiar o mar e as suas tempestades. Muitos dos aventureiros acreditavam que A-Má os salvara dos perigos, concedendo paz e sorte. Foi assim que se tornou a deusa protectora dos pescadores e de Macau. Templos e crenças foram desenvolvidos em honra da divindade, e foi assim que o culto a A-Má passou a fazer parte da vida quotidiana da cidade.
Localizado na margem ocidental do Delta do Rio das Pérolas, Macau foi há várias centenas de anos um porto de pesca, conhecido na Dinastia Ming como “A-Ma-Gau”, ou seja, “Baía de A-Má”.
A descrição do missionário Matteo Ricci e a inscrição em pedra no interior do Templo de A-Má comprovam que este templo foi construído durante a mesma dinastia. É o templo mais antigo e mais importante de Macau, tendo passado a integrar a Lista do Património Mundial pela UNESCO em 2005.
Reza a História que Macau assim se chama por causa da Deusa A-Má. No século XVI, quando os portugueses desembarcaram no território, foi na costa, junto ao monumento, que atracaram e baptizaram a região como Macau por causa da semelhança sonora com o nome da Baía. O nome e a história da cidade estão intimamente ligados a A-Má e às suas crenças e costumes, que passaram a integrar a lista de património imaterial da China em 2014.
“Conta-se que os portugueses desembarcaram na zona do templo e perguntaram às pessoas como é que se chamava o sítio onde estavam. As pessoas pensavam que se referiam ao local exacto e disseram ‘A-Ma-Gau’, que aos portugueses soava Macau e foi assim que lhe deram o mesmo nome”, explica o presidente da Associação de Ópera Chinesa de Moradores Terrestres e Marítimos da Barra, Chan Kin Chun.
A-Má, que noutras zonas se designa de Mazu, foi Lin Moniang, uma jovem nascida na Ilha de Meizhou, em Putian, na província de Fujian. “Diz a lenda que havia uma senhora em Fujian que conseguia observar e prever o estado do tempo. Era ela quem aconselhava os pescadores, e lhes dizia se deviam ou não ir para o mar. Ajudou sempre muito enquanto foi viva. Quando morreu, os pescadores passaram a chamá-la de Deusa do Mar [Mazu] e construíram-lhe um templo, para a adorar e pedir que continuasse a protegê-los”, recorda Chan.
O culto à deusa acabou por ser transportado para a província de Guangdong pela mão dos pescadores de Fujian, onde também foi endeusada pela comunidade e lhe foram concedidos títulos por vários imperadores de diferentes dinastias. A influência é predominante na costa sudeste da China e na ilha de Taiwan.
Em Macau, os costumes e crenças de Mazu ganharam vida própria e individualizaram-se, assim como o nome. Mazu, a divindade mais importante para os residentes, passou a ser referida aqui como “A-Ma” (avó). É por isso que o Templo de A-Má também é conhecido como Pavilhão de Mazu e Templo de Tin Hau (Templo da Deusa).
Chan Kin Chun realça que são várias as histórias sobre A-Má e conta uma das mais conhecidas. “Uma das lendas conta que havia uma jovem, que falava muito pouco, que viajava numa das embarcações de pescadores que vinham de Fujian para Macau. Houve uma tempestade e a rapariga começou a orar na proa do barco, o mar acalmou e a embarcação conseguiu chegar sã e salva à cidade. Os pescadores ficaram para sempre gratos à jovem e acreditaram que a Deusa Mazu tinha encarnado na rapariga”, explica o presidente da associação. “Acredita-se que foi assim que A-Má chegou a Macau. Há muitas versões da lenda. Esta é apenas uma”, ressalva.
“Os residentes têm uma forma mais calorosa de tratar a deusa face a outras zonas onde também é importante. Para a cidade, A-Má é a deusa protectora dos residentes, tanto dos que estão em terra como dos que vão para o mar”, salienta.
As crenças e costumes de A-Má, continua, têm cerca de 500 anos. Têm passado de geração em geração, sobrevivendo à passagem e mudança dos tempos. “O facto de existir um monumento – o Templo de A-Má – também contribui para a preservação da tradição e impede que caia no esquecimento. As crenças e os costumes de A-Má fazem parte da cultura dos residentes de Macau. Estão muito enraizados”, reforça. “Há sempre muitos devotos que vêm ao templo queimar incenso e fazer ofertas.”
Tradições
Os rituais repetem-se ao longo do ano, mas há duas alturas mais concorridas. No Ano Novo Chinês e no 23.º dia do terceiro mês do calendário lunar. “É o aniversário da Deusa, e a altura em que mais devotos vêm prestar homenagem e implorar para que os ajude”, refere o presidente da Associação de Ópera Chinesa de Moradores Terrestres e Marítimos da Barra, Chan Kin Chun.
Para a celebração, há uma série de tradições que se cumprem ao longo de cinco dias – do 21.º ao 25.º do mesmo mês.
Uma das mais importantes é a construção de um teatro em bambu em frente ao templo onde têm lugar várias óperas chinesas como forma de mostrar respeito, prestar homenagem e entreter A-Má durante os dias da festividade. “Temos uma expressão que diz: ‘As pessoas fazem, a Deusa observa’. Há a crença de que A-Má vê o que fazemos de bem e de mal”, explica o líder associativo.
O Festival de A-Má (também conhecido como Festival de Tin Hau), cujo dia principal é o 23.º do terceiro mês do calendário lunar, é das manifestações culturais mais importantes em homenagem à deusa. Em frente do templo, os residentes decoram a zona com lanternas coloridas, veneram a deusa, fazem jogos e leilões. Durante a festa, pescadores e residentes prestam culto, fazem ofertas e angariam fundos. “Começamos a angariar fundos dois meses antes do festival, que depois têm como fim as óperas. Durante esse período, temos uns livros vermelhos que circulam, e nos quais as pessoas escrevem o nome e o montante que querem doar. Os que doam valores mais elevados têm bilhetes para assistir às óperas”, detalha Chan, ao mesmo tempo que mostra os cadernos utilizados em anos anteriores.
No 21.º dia, queima-se incenso, presta-se culto à deusa e faz-se a contagem das doações, afirma. Quando conclui, traz para a mesa duas peças em madeira em forma de metades de lua. “Depois de contabilizamos os montantes, temos outro ritual”, refere. “Não é bem um jogo, mas é parecido”, começa por dizer.
Chan diz que na zona do templo membros da associação reúnem-se para cumprir o “Qibei”, ritual em que são lançadas peças de madeira ao ar com o objectivo que a face de uma fique para cima e a outra para baixo. Os dois participantes que ganharem a final levam duas estátuas maiores de A-Má – que estão no templo e na Associação – para casa durante um ano. Só podem inscrever-se no jogo membros da associação, que tem cerca de 90 integrantes. “Não é uma questão de sorte ou de azar ao jogo porque acreditamos que é a deusa que escolhe os que vencem”, realça o presidente da associação.
Finalizado o ritual, é tempo para o banquete também em frente ao templo, com 70 a 80 mesas, cada uma com 12 lugares. “É como se estivéssemos a fazer companhia à deusa”, acrescenta Chan. Antes, há ainda tempo para as danças do dragão e do leão.
A seguir ao jantar tem lugar a ópera chinesa num teatro construído em bambu propositadamente para o efeito, ritual que acabou por dar origem à Associação de Ópera Chinesa de Moradores Terrestres e Marítimos da Barra.
Entre os sons de gongos e tambores, a Deusa é convidada a assistir à ópera – facto conhecido como “A-Má assistindo às óperas” – encarada como uma forma de entretenimento para as pessoas e para a deusa. “O teatro está virado para o templo para que a deusa possa ver as óperas, que começam às 7h30”, detalha Chan.
Após o espectáculo, a imagem da deusa é escoltada de volta ao templo, onde crentes mostram respeito e honra, e pedem por segurança no mar e na terra, por prosperidade dos negócios e protecção dos filhos.
O Ano Novo Chinês é outra data importante para os devotos de A-Má, quando se voltam a cumprir rituais como queimar incenso e fazer ofertas. Na véspera do dia de Ano Novo, a afluência ao templo abunda uma hora antes da passagem de ano, quando residentes e turistas dirigem-se à zona. “Começam a aglomerar-se às 23h00 porque querem ser os primeiros a queimarem o incenso e a pedirem riqueza, sorte e prosperidade”, explica.
Histórias
Chan faz questão de sublinhar que as crenças e costumes de A-Má são parte fundamental da história de Macau, mas também do futuro. “Macau tornou-se uma cidade turística internacional, conhecida pela fusão entre as culturas oriental e ocidental. Todos os anos, milhares de turistas vêm a Macau. O Templo de A-Má é um dos primeiros locais que visitam. É o mais antigo da cidade. Estas crenças e costumes são conhecidos mundialmente”, afirma o líder associativo.
No 16.º ano do reinado do Imperador Qianlong da Dinastia Qing (1751), a primeira monografia sistemática sobre Macau em toda a história chinesa – Breve Monografia de Macau, da autoria de Yin Guangren e Zhang Rulin – descreve a lenda de A-Má.
O livro História Antiga de Macau, do historiador sueco Anders Ljungstedt, bem como numerosas obras literárias e documentos ocidentais fornecem também descrições detalhadas sobre a deusa.
As descrições estendem-se à pintura, de que é exemplo um quadro de 1863, do pintor alemão Eduard Hildebrandt, de uma ópera chinesa representada sob telheiros de bambu, em frente ao Templo de A-Má, por ocasião do festival dedicado à deusa.
A cultura da deusa A-Má está enraizada em Macau há centenas de anos. Os paus de incenso sempre a arder no interior do Templo de A-Má provam que a tradição e o respeito se mantêm, assim como as enchentes no templo na véspera do Ano Novo Lunar e durante o Festival de A-Má, quando se intensifica o cheiro do incenso e a afluência de gente.
O Instituto Cultural, na página sobre a manifestação cultural, refere que os costumes e crenças de A-Má de Macau constituem uma importante parte do culto de Mazu em território chinês, caracterizando-se pela longa história, raízes na comunidade, continuidade e imutabilidade ao longo das épocas, assim como pelas suas influências tanto no país como no estrangeiro. “É um festival popular crucial em Macau e de grande impacto.”