Joaquim Franco
É dos pintores locais vivos com mais trabalho feito e de forma contínua. Já teve várias fases nas décadas de dedicação à arte, mas o abstraccionismo é o que domina a obra do artista português radicado na região há mais de 30 anos. À MACAU conta como a pintura lhe mudou e se tornou a sua vida.
Texto: Catarina Brites Soares
Fotos: Gonçalo Lobo Pinheiro
É no pequeno estúdio que divide com uma amiga artista sul-coreana que Joaquim Franco passa grande parte do dia e dos dias. Do tempo que nunca é suficiente para as muitas telas e tintas espalhadas pelo espaço do Art Garden, o pintor arranja um intervalo para contar como a pintura acabou por se tornar forma de vida. “Agora, estou só a trabalhar na pintura e cada vez mais sinto que não me devo dispersar. A vida não é para sempre e sinto que me devo focar mais no trabalho artístico, apesar de ser mais complicado em termos de sobrevivência. Não vendemos quadros todos os dias, nem todos os meses, nem todos os anos. Estou sempre aberto a outras possibilidades, mas tenho tentado nos últimos anos dedicar-me muito mais à pintura”, afirma. “A arte é o que dá sentido à minha vida.”
A arte está presente desde que se lembra. O avô, médico, partilhava da mesma paixão. Não o conheceu porque morreu quando Joaquim tinha apenas sete anos, mas deixou a semente. “Conheci-o mal, mas ficaram as histórias, as aguarelas e os óleos dele. Era um pintor naturalista, fazia paisagens.”
O pai não pintava, mas era igualmente um amante e coleccionador de arte. Joaquim Franco lembra as paredes da casa da Ericeira, vila portuguesa onde nasceu em 1959 e viveu até aos 17 anos, decoradas pelos quadros do avô e outros. “Cresci sempre rodeado de livros de arte. Na casa do meu pai era difícil encontrar um centímetro de parede sem uma pintura. Tínhamos a casa forrada de quadros.”
É aos 12 anos que traça os primeiros riscos com a ajuda de uma prima designer que lhe dava aulas de desenho nas férias de Verão. Aos 17 anos decide que é o que quer seguir.
Primeiros passos
Em 1976, ingressa na Sociedade Nacional de Belas Artes, a associação artística mais antiga e representativa de Portugal, fundada em 1901 e encerrada pelo Estado Novo em 1952. Joaquim Franco entra no curso de Iniciação à Pintura nos anos de 1970, já findada a ditadura salazarista e com a escola reaberta, à procura das bases e escolaridade mínima, que lhe permitiriam prosseguir os estudos na Escola Superior de Belas Artes. O plano era esse, mas não foi assim que aconteceu.
Nos três anos de formação na Sociedade de Belas Artes, que terminou em 1979, recorda ter tido aulas com “professores marcantes”, como os artistas e críticos de arte Sílvia Chicó, Rui Mário Gonçalves, João Vieira e Sá Nogueira.
A Revolução do 25 de Abril em 1974, a Matemática por concluir e as alterações no sistema de ensino com a mudança de regime político face ao culminar da ditadura salazarista acabaram por lhe trocar as voltas. “Também contribuiu a ideia romântica de que o artista não precisa de andar na escola para ser artista e de que a academia vem estragar tudo, e acabei por não fazer o curso.”
Apesar da escolha, não descartou a formação. Em 1980, começa outro curso de dois anos, desta feita de gravura, na Galeria Quadrum, em Lisboa, com David de Almeida. A aposta acabaria por dar frutos mais tarde, já em Macau. Antes disso, e ainda em Portugal, chega a altura “de ganhar a vida”.
Faz do jeito para o desenho ferramenta de trabalho e inicia-se como freelancer em vários ateliês de arquitectura como desenhador. “Um artista nunca consegue viver só da arte”, lamenta. E por isso, foi quase sempre obrigado a conciliar trabalhos. No teatro, foi pintor, escultor e o responsável pelo desenho do cenário para vários espectáculos entre 1979 e 2015. E a partir de 1983, também se torna designer de interiores de restaurantes, lojas, apartamentos e feiras internacionais, ofício que, além de outros, também acabaria por desempenhar no território. “Nunca pensei em termos económicos, nem no valor do meu trabalho e nunca lutei por isso. Conheço artistas que a primeira coisa que pensam é no preço e depois é que fazem a pintura. Fui andando até que me dei conta que tinham passado 40 anos e que os meus preços se mantinham. Quando olho para trás só tenho pena de ter perdido tanto tempo e de não ter pintado mais. Mas, na realidade, há alturas em que é complicado.”
Partida sem volta
Ainda em Portugal, casa-se com uma historiadora, amor que acabaria por lhe mudar o rumo e traçar o destino onde ainda hoje permanece – Macau. Através da companheira, começa a integrar equipas para trabalhos na área da arqueologia, para fazer os levantamentos das estações e desenhar as peças, especializando-se no desenho científico.
Trabalhou com várias equipas nacionais e internacionais. As universidades dos Açores, Texas e de Edmonton, além do Instituto Arqueológico Alemão, foram algumas das entidades com as quais colaborou em solo nacional, além dos projectos fora, como três meses no Canadá.
“Era um trabalho que gostava, mas era muito minucioso. Havia pouca margem para a criatividade e tempo para me dedicar à pintura. Depois de oito horas de régua e esquadro, lupas e afins para desenhar tudo ao milímetro, a mão fica bloqueada e destreinada para outras linhas mais livres, além do cansaço visual.”
A arqueologia deixou mazelas, mas também lhe mudou a vida. Em 1988, recebe o convite para integrar a equipa responsável pelas escavações arqueológicas das Ruínas de São Paulo. Chega a Macau dois anos depois. “Aqui desenhava peças, fiz o levantamento da estação e dirigi os trabalhos de campo. O arqueólogo, chefe da missão, estava em Portugal e só vinha de vez em quando, e era eu quem dirigia a equipa, dada a experiência que tinha.”
Vinha por 10 meses. Ficou e cá está há mais de 30 anos. Entusiasmado com a cidade, a China, a Ásia, decide que é em Macau que quer viver e investir de forma mais séria no que até então tinha ficado para segundo plano. Abre um ateliê e começa a dedicar-se a sério à arte.
Comprou uma prensa em Espanha que traz para a região e aposta na gravura, ao mesmo tempo que dava aulas na Academia de Artes Visuais, entretanto extinta, e sem nunca deixar a pintura de parte. “Ainda tentei a escultura, mas requer mais materiais e acabei por desistir”, diz. “A democratização da arte associada à gravura é muito interessante. Numa pintura só a pessoa que a compra tem acesso a ela. Se essa pessoa tiver cinco amigos que leva a casa, são seis pessoas que usufruem da obra. Se fizer uma gravura com uma edição de 30 provas, que é relativamente pequena, e se cada pessoa tiver cinco amigos, muito mais pessoas podem usufruir do trabalho artístico.”
Não é raro os custos determinarem as escolhas dos artistas e acabarem por lhe moldar a obra. Joaquim Franco não é excepção. Foi também pelos gastos que a gravura acabou por se sobrepor à pintura nos primeiros tempos. “É um processo muito mais dispendioso, porque implica mais material em relação à pintura, que só requer uma tela e tintas. Mas, depois, tem a vantagem dessas despesas serem diluídas pelo número de provas que se podem fazer e serem vendidas”, explica.
A par, são vários os workshops e mini-cursos que vai fazendo como o da Slade School of Fine Arts, no Reino Unido, entre 1991 e 1994, liderados pelo professor Bartolomeu Cid dos Santos; e de gravura tradicional japonesa, com a professora Tetsuia Noda.
A favorita
O cansaço com a gravura acabaria por vencê-lo e desviá-lo para a expressão artística que sempre mais gostou. “A gravura tem uma parte interessante que é a da criação, mas depois há a outra: das edições, um trabalho de repetição, mecânico e que demora. A pintura não. É muito mais criativa”, vinca. “O meu trabalho neste momento é completamente abstracto. Trabalho em abstracção há quase 20 anos. Na gravura era mais figurativo, na pintura comecei a mudar.”
Começa por desenvolver uma técnica em que mistura pintura, gravura, desenho, colagens e intervém sobre as provas sempre com a abstracção como norte. A expressão foi uma decisão, mas também uma necessidade face aos tempos. “Somos bombardeados com imagens”, afirma, para introduzir porque prefere uma expressão para lá do óbvio que obrigue a parar e pensar. Ou melhor, a sentir.
“Podia pintar as Ruínas de São Paulo, fazer umas vistas de Macau, uns templos… Provavelmente, ganhava muito mais dinheiro assim. Mas considero que hoje o trabalho figurativo tem pouco interesse”, aponta. “Toda gente tem um telemóvel, tira fotografias. Há um excesso de imagens. A arte abstracta baseia-se nos sentimentos e considero essa dimensão muito mais importante. Uma pintura figurativa pode estar muito bonita, mas é aquilo, não há mais a dizer. Na arte abstracta, já não é assim.”
Suspende o discurso, pára para articular em palavras o que diariamente tenta dizer na tela e aponta: “As pessoas perderam esse lado humano. Não sabem transmitir, não trabalham as emoções. É tudo muito mais superficial, mais efémero e isso vê-se nas relações, voláteis. Fazem-se amizades na Internet…”, observa. “A arte abstracta é como um livro. É para ser lida.”
É esse processo constante, mutável e sem fim que cativa Joaquim Franco na arte não figurativa. “Há uma primeira impressão que nos toca pela cor, pela forma, pela composição e depois há a leitura que se vai fazendo ao longo do tempo e sempre reveladora. Cada dia é diferente.”
Indigna-o a rejeição ainda generalizada da arte abstracta, nascida no século XX. Não percebe como, depois de mais de um século desde a primeira obra totalmente abstracta pintada pelo alemão Kandinsky, ainda se repete o chavão de que não é perceptível. “É preciso perceber como é que ainda hoje continuamos sem a conseguir ler. Este é outro dos aspectos que me leva a continuar a trabalhar e insistir na arte abstracta.”
A explicação está na educação – ou falta dela – e na forma como a arte em geral é negligenciada nas escolas, defende. “Há uma enorme falta de formação artística. A arte abstracta não se vê só com os olhos. Requer um treino. O diálogo entre a pessoa e a obra é completamente independente do artista e é também por isso que não gosto muito de explicar os meus quadros.”
O desconforto é confirmado logo a seguir quando hesita para falar sobre o processo criativo. Antes de verbalizar o que lhe parece da ordem do transcendente, cita Henri Matisse. “A cor só é eloquente quando está organizada”, diz. Não era um pintor abstracto, mas percebe-se porque foi o nome que lhe veio à mente quando mais tarde fala de referências e o pintor francês do pós-impressionismo está no topo da lista.
De volta ao processo criativo, Joaquim Franco retrata o seu como um caminho “complicado”. Lembra que começou com muita cor, muita composição e que se foi tornando cada vez mais minimalista. A exclusão “do que não era importante” volta a ser uma consequência da era marcada pela abundância de informação visual. “Sinto que quanto mais reduzido for o discurso, melhor é entendido.”
Antes de explicar como começa, cita outra dos nomes que admira. “Como Braque dizia: ‘A tela é um risco que é preciso correr’. Nunca se sabe o que vai acontecer.”
É-lhe difícil enumerar passo a passo como transforma o espaço em branco noutra cor com um significado, mas sabe que há momentos incontornáveis até conseguir chegar à obra. Parar é um deles. “Não sei bem porquê, mas paro. Deixo a tela inacabada e às vezes fica assim meses, um ano.”
Levanta-se, procura entre a fileira de quadros que tem entre o sofá e a parede, e aponta: “Esta está aqui há 20 anos. Não a sinto finalizada, mas não sei como acabá-la. Perdi o momento. Não consigo ir até lá, voltar aquele estádio para continuar.”
As marcas da formação na Sociedade Nacional de Belas Artes, diz, ficaram. “Tinha professores muito exigentes e insistiam bastante na importância do sentido crítico. Sem isso, faço uma pintura e não consigo analisar e ver o que está bem e mal, o que deve ser mudado e mantido. É por isso que preciso de parar, de me sentar e olhar para o que estou a fazer com distância.”
São várias as vezes que deixa as “pinturas encostadas”, verbo que usa para representar a suspensão do trabalho. Há as que consegue retomar, e as que não. Mas mesmo as que finaliza, ressalva que nunca ficam terminadas. “Um quadro nunca está acabado. Passados uns anos, sentes que já não o farias assim. Olhamos e sentimos que falta alguma coisa. Se formos honestos com o nosso trabalho, raramente voltamos atrás. Há muitos anos, descobri uma pintura que estava perdida no ateliê. Limpei-a e resolvi retocá-la. Não fui capaz. Tive de a deitar fora. Já não estava naquele ponto, já nem parecia minha.”
A Oriente algo de novo
Um olho mais treinado nota que a obra de Joaquim Franco é também um reflexo do local onde escolheu viver nas últimas décadas. Assume que não o surpreenderia que lhe identificassem traços orientais tendo em conta o tempo que leva nesta parte do mundo. A vivência, as viagens e o estudo contínuo da história e da pintura chinesa e de outros territórios asiáticos deixaram vestígios. Deu-se conta que eram muito mais evidentes numa das residências artísticas que fez na Colômbia, em 2015. “Havia vários encontros com outros artistas, mostrávamos e discutíamos os trabalhos de cada um e dei-me conta disso quando mencionaram que a minha composição era completamente diferente. Foi quando percebi que a pintura chinesa me influenciou bastante.”
Apesar das influências, períodos, altos e baixos na carreira, a assinatura mantém-se. Influenciado por muitos dos pintores que admira – Picasso, Pollock, Maxwell e Pierre Soulages só para dar alguns exemplos –, a cor é monopolista na obra de Joaquim Franco, na qual o abstraccionismo já teve diferentes nomes.
A última fase, na qual está a trabalhar desde 2019, e que é uma evolução do que começou em 2018 sobre o mar, chama-se Oceanos. A forte ligação à água desde a infância faz do tema natural e transversal à sua arte. A ameaça ambiental fez dele urgente. “O interesse neste tema aparece quase quando nasci pela ligação ao mar e às causas do mar.”
Parte da série Oceanos esteve exposta em Hong Kong, em 2018, na Galeria Nido, numa mostra individual com 20 trabalhos. Além das pinturas, Oceanos pressupõe ainda uma instalação feita a partir de plástico. “The Wave” (A Onda, em português) quer chamar a atenção para a sustentabilidade. “A poluição causada pelo desperdício do plástico é um problema grave. A sociedade tem de o resolver. As grandes cidades são a principal origem do lixo, e onde o consumo tem de diminuir.”
A ideia subjacente à instalação é que seja construída com o plástico que cada cidadão consome em média diariamente. “É com esse lixo que pretendo erguer a instalação. Imaginemos que seria em Hong Kong. Se cada residente trouxer uma garrafa de água, são sete milhões de garrafas. Dava uma onda gigante”, ilustra.
O objectivo, acrescenta o artista, é que seja um trabalho de comunidade que inclua artistas locais, escolas, ambientalistas na missão de alertar para a urgência de reduzir o consumo e produção de lixo. “Acredito nos resultados do envolvimento e contribuição da população. Associar a imagem da cidade à redução do uso do plástico e, simultaneamente com a arte, é uma obrigação”, defende, alertando para a importância da obra ganhar forma e ficar exposta.
Franco estreou-se ao público em 1976, no museu da Ericeira e a partir de então nunca mais parou. São mais de 100 as exposições, individuais e colectivas, que conta. Além de Macau e Portugal, o trabalho do artista foi exibido ou está em exposição no Interior do País, Inglaterra, Estados Unidos, Brasil, Colômbia, Espanha, Japão, Holanda, França, México, entre outros destinos.
Na região, além das muitas exposições, a sua obra também está à vista no espaço público. Os quatro painéis no MGM e a fronte do espaço Art Garden, no centro da cidade, são alguns dos trabalhos que assinou.
Desde 2019, colabora também com a Galeria de Arte Zhouzhou, em Zhuhai, como consultor de arte e professor. A docência foi aliás uma componente sempre presente. Localmente, a par de outras entidades, colaborou com a Universidade de Macau, de 1998 a 2014; com o Instituto Politécnico de Macau, de 1991 a 1994; com o Museu de Arte de Macau e com associação AFA – Art for All.
Em 1986, ainda em Portugal, começa a dar aulas de arte terapia, área na qual acumula experiência em Macau, Brasil, Tailândia, Colômbia e Filipinas, este último onde teve das experiências profissionais e pessoais mais duras.
No arquipélago levou a cabo dois projectos com outros artistas: o primeiro em Tacloban, quando atingida por um super tufão em 2013, que, só na zona, fez mais de 6200 mortes e 2000 desaparecidos, num trabalho com cerca de 130 crianças, totalmente financiado pelo artista. O segundo, na cidade de Zamboanga, depois de um ataque perpetrado por guerrilhas que deixaram um rasto de morte e de destruição. “Tínhamos 350 crianças. Batíamos palmas e eles assustavam-se traumatizadas”, conta. “Acredito no poder da arte.”
E como se sentasse no sofá no momento em que pára para observar a obra e fazer o balanço com sentido crítico, diz: “Vivemos num mundo em que a raça humana atravessa um tempo de crise, em que o conhecimento sobre o próprio e a humanidade é superficial. Emoções como a incerteza, o medo e a vulnerabilidade não são realmente entendidas”.
Há um medo colectivo, continua, que é fomentado pelas redes sociais que se aproveitam através da manipulação da informação, aproveitamento de informação pessoal, e que degeneram em problemas como a violação de género, crise de refugiados e emigração, terrorismo, crises climáticas e outros dramas. “O meu trabalho é uma observação do que se passa lá fora. É um espelho no qual o trabalho criativo, a intuição e emoções se fundem numa reflexão desse mundo. Não há julgamentos, nem respostas. Procuro que seja uma porta aberta onde projecto as minhas emoções, que espero que levem a que os outros sintam nos seus termos. É liberdade para os que estão de mente aberta.”