Preparação do Chá de Ervas, o segredo para a saúde

É dos hábitos mais tradicionais e antigos de Macau. Os vários locais espalhados pela cidade confirmam-no. Na região, o chá é quase tão essencial como a água. Há um que se destaca em Macau, Hong Kong e na província de Guangdong: o Chá de Ervas. A tradição fez com que a preparação do Chá de Ervas fosse considerada património intangível de Macau

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

Celebrizou-se pelos resultados na prevenção e combate de doenças, mas com ou sem maleitas, locais e turistas fazem da bebida um ritual diário. A Pak Ka Cheong é uma das casas de chá mais conhecidas na região. É na tranquilidade da Rua da Felicidade que se encontra o espaço aberto para o exterior, com a bancada ao lado direito onde estão os copos e os termos com os seis chás à venda.

São vários os transeuntes que param para beber as duas doses indicadas pela casa. Chan Pek Chun, filha dos donos, explica à MACAU que o chá se tornou o negócio de família graças ao avô paterno, quando ainda viviam no Interior do País. Agricultor de profissão, conhecia bem as ervas que usava para fazer chás para familiares e vizinhos. “Na altura, a vida era muito pobre e não havia dinheiro para ir ao médico”, contextualiza a neta.

O filho, pai de Chan, aprendeu e decidiu fazer do saber popular uma profissão. Já casado, deixa Zhang Jiang, perto da Ilha de Hainão, na província de Guangdong, na década de 1980, rumo a Macau, com a ambição de uma vida melhor. “Os meus pais queriam fazer dinheiro e o meu pai decidiu usar o que tinha aprendido com o meu avô e dedicar-se aos chás.”

Começa a vender a bebida em 1984 num carrinho que passeava pela cidade. Um período difícil, descreve a filha. A ausência de licença fez com que muitas vezes fosse obrigado a escapar das autoridades. Abre então a loja Pak Ka Cheong, que há 10 anos se sediou nas traseiras da Avenida de Almeida Ribeiro.

O pai reformou-se e é a mãe que se encarrega de preparar os chás. Com 70 anos, é ela que se levanta às seis da manhã para cumprir o processo exigente de confeccionar a bebida. “É preciso quatro horas para preparar todos os chás”, sublinha a filha.

O segredo, acrescenta, está nas ervas medicinais, que são fervidas durante longas horas, assim como na quantidade e partes que se usam de cada uma. “A quantidade é fundamental mesmo nas receitas mais tradicionais que as famílias fazem em casa”, reforça.

O Chá de 5 Ervas é um dos mais célebres na região. Chan diz que é bom para o fígado, para dissipar o calor e humidade internos, para os olhos e para a gripe. “É importante como se ferve. Segundo a medicina chinesa, tudo depende da parte das ervas que é usada: folhas, caules ou raízes. Em função disso, assim é o tempo de fervedura. As diferentes partes são introduzidas na água em diferentes alturas.”

A receita de família manda que o chá seja fervido duas vezes e que se tomem duas doses seguidas, ou seja, dois copos, segundo explica Chan Pek Chun, que acabou por tirar o curso de medicina tradicional chinesa por influência da família. “Obrigo os clientes a tomarem logo as duas doses, porque tenho receio que se esqueçam de mais tarde tomar a segunda dose necessária para fazer efeito. Um dos chás que temos aqui, a que chamamos multifuncional e que foi inventado pelo meu avô, é indicado até para grávidas, porque conseguimos eliminar os efeitos secundários, como as náuseas e tonturas que são frequentes em pessoas com pouco calor interno.”

Zona especial

A médica explica que o Chá de Ervas se tornou hábito no Delta do Rio das Pérolas sobretudo devido às condições climatéricas. O calor e a humidade, característicos da zona, fazem com que quem vive ou passe por aqui sofra de iguais sintomas, combatidos pelos chás e sopas que ajudam a eliminá-los. “Quando os organismos acumulam calor e humidade estão mais propensos a doenças como dor de garganta, comichão na pele, um cansaço constante e azia. Este chá ajuda, inclusive, ao funcionamento do aparelho digestivo.”

As ervas usadas na Pak Ka Cheong vêm do Interior do País, sobretudo da província de Guangdong, e são compradas apenas a fornecedores certificados e com o selo de qualidade atribuído pelo Governo.

Ainda que a procura se mantenha, mesmo nas gerações mais jovens, Chan antecipa um futuro difícil. As horas que exige o ritual desmotivam muitos a dar continuidade à tradição. A médica, por exemplo, divide-se entre as consultas de medicina chinesa que exerce num consultório mesmo ao lado, e a loja, onde ajuda a mãe sempre que está de folga, além das horas livres nos outros dias. O irmão do meio, também médico de medicina chinesa e com quem partilha o consultório, não tem interesse na loja dos chás, o mais novo ainda não sabe, mas ela não quer deixar morrer o legado. “Foi muito difícil para os meus pais chegarem até aqui, foram muitos anos.”

Também foi com esforço que U Man Lam singrou no ramo, no qual se aventurou também quando chegou a Macau. A loja U Bo Wo tem o nome do familiar, a quem deve o saber. “Queria estudar medicina, mas a vida era muito difícil de modo que não consegui prosseguir nos estudos”, conta. Os conhecimentos da família na área da medicina chinesa, que ainda hoje perduram, começaram com o antepassado U Bo Wo, médico e estudioso da medicina tradicional chinesa na década de 1950. “Cheguei a Macau e abri uma lojinha para ganhar a vida e criar os meus filhos. Era essa a minha intenção.”

Abriu a primeira loja na Estrada de Coelho do Amaral, em 1994. Depois, na Rua do Comandante Mata e Oliveira, atrás do Hotel Lisboa, há sete anos e onde ficou durante quatro. O negócio corria bem, ressalva, mas a subida da renda fez com que voltasse a mudar, desta vez para a Rua da Praia do Manduco, há cerca de cinco anos. Também tem outro espaço na Taipa que foi aberto há dois anos, já sob a alçada da filha, que tomou a iniciativa de expandir o negócio. “Não pensamos muito se a tradição se está a perder ou não. Eu e os meus familiares só queremos seguir os ensinamentos dos nossos antepassados, acreditando que o melhor hospital é a cozinha da casa, e assim ajudar os habitantes de Macau ao mesmo tempo que ganhamos a nossa vida. Não pensamos noutras questões.”

À MACAU explica que a fama dos chás de ervas na zona se deve ao clima – mais húmido que no Norte – e à cultura local. “Os habitantes de Guandgong têm uma cultura de maior elaboração na alimentação. A confecção de um simples prato é em si mais requintada do que noutras zonas do país”, afirma.

Na loja de Un há 17 tipos de chá, todos feitos no próprio dia e com ervas do Interior do País. O processo começa à uma da manhã. “Os chás que fazemos em maior quantidade, como o das cinco flores, de Madressilva e de Radix isatidis, demoram cinco a seis horas para começarem a ferver, depois ficam ao lume durante mais uma hora”, descreve. Em seguida, acrescentam-se outras ervas que só podem ser adicionadas no final e fica tudo a ferver mais cinco a dez minutos. “Deixamos os chás nas panelas até às oito da manhã, altura em que dividimos a bebida em recipientes e distribuímos pelas lojas.”

Antes da fervedura, as ervas ficam em água duas a três horas para que a sujidade saia. “A quantidade de chás que fazemos são para fornecer para as três lojas, por isso a quantidade é maior e o trabalho é mais árduo”, realça.

Chá ambulante

Já Wong Peng deixa as ervas de cada prescrição médica em água durante uma hora, depois ferve-as 35 minutos, colocando-as ao lume em diferentes alturas. Só no fim, refere, introduz ervas como hortelã, schizonepeta e crisântemo, que ficam a ferver dois minutos. “Senão o efeito desaparece com a evaporação dos ingredientes. Deixamos o chá estar na panela ainda quente durante três minutos e estão prontos para serem consumidos”, explica. “Aprendi sobre medicina chinesa quando era jovem. Em 1985 abri o negócio com o intuito de ajudar as pessoas. Faço os chás segundo as prescrições da medicina chinesa, que tem milhares de anos. É importante saber as qualidades, os efeitos e a quantidade necessária das ervas para cada prescrição”, avisa.

Quem passa com frequência na Avenida de Almeida Ribeiro, conhece Wong Peng, presença habitual ali, onde estaciona quase todos os dias o seu carrinho de chás. A Wan Ka On tornou-se uma das marcas mais icónicas da cidade. “O negócio em forma de carrinho ambulante traz mais lucro e é mais conveniente. Basta que o carrinho esteja parado para poder vender chás.” O negócio tem crescido, o número de clientes tem aumentado e Wong Peng acha que a tradição tem resistido.

O consumo continua a fazer parte do dia-a-dia de quem vive nestas áreas do Delta do Rio das Pérolas. No Verão, refere, as pessoas precisam de chás que dissipem o calor interno, de forma a combater ou evitar a gripe. No Inverno, é o oposto: os organismos carecem de mais calor, essencial para prevenir e curar constipações. “Antigamente, os chás tinham menor variedade e eram mais simples. Hoje em dia, têm maior diversidade, as prescrições são mais específicas para os sintomas, maximizando o efeito terapêutico. Desde o início, os clientes tomam os chás que faço de acordo com os sintomas que apresentam”, aponta Wong Peng.

O início

O Instituto Cultural (IC) refere que o Chá de Ervas é feito à base de ervas medicinais puramente chinesas em Guangdong, Hong Kong e Macau. Tem sido estudado e recomendado na medicina chinesa como prevenção de várias doenças. Além de saciar a sede e dissipar o calor e a humidade do corpo, tem efeitos antipiréticos e antitóxicos. Há diversos tipos, associados a diferentes métodos de preparação e efeitos diversos.

No documento em que o Chá de Ervas é consagrado como Património Intangível de Macau, o Instituto explica que a bebida remonta aos inícios da Dinastia Qin até ao período das dinastias Tang e Song, e refere que começou por ser considerado um recurso medicinal tradicional, acabando por ser adoptado na vida quotidiana da população.

Foi no ano 306, durante a Dinastia Jin Oriental, que o farmacêutico taoista Ge Hong se mudou para a região de Lingnan, no Sul, onde se dedicou ao estudo de doenças epidémicas febris que atacavam a região e de receitas medicinais para as tratar.

O contacto com a cultura e tradições de Lingnan, assim como as conclusões a partir da cura de pacientes, levaram-no à receita do Chá de Ervas. O livro que escreveu continua a ser uma fonte da medicina tradicional chinesa, com receitas e terminologia.

O IC acrescenta que, durante a Revolução Cultural, a cultura do Chá de Ervas sofreu um sério revês que levou ao encerramento das lojas de chá medicinal e que, no Interior do País restam muito poucas relíquias, locais, vestígios e registos históricos assim como fotografias relacionadas com a bebida. “Felizmente, o Chá de Ervas sobreviveu em Hong Kong e Macau”, sublinha o organismo. “Hoje em dia, as 54 receitas e a cultura do chá medicinal formada por 16 marcas de chá – Wang Lao Ji, Shang Qing Yin, Jian Sheng Tang, Teng Lao, Bai Yun Shan, Huang Zhen Long, Xu Qi Xiu, Chun He Tang, Jin Hu Lu, Xing Qun, Run Xin Tang, Sha Xi, Li Shi, Qing Xin Tang, Ji Lin Chen e Bao Qing Tang – gozam de grande e ampla popularidade.”

Em Macau, existe uma longa tradição no consumo de Chá de Ervas. A bebida pode ser adquirida em farmácias chinesas, empacotada para ser preparada depois, ou em casas de chá, onde é servido pronto a beber.

Nos finais da década de 1950, havia mais de uma centena de casas de chá de ervas nas ruas de Macau, sinal da forte adesão da população local. O IC explica que, no período entre a década de 1970 e inícios da de 1990, face à influência da cultura alimentar ocidental e à diversificação da dieta local, a indústria do chá de ervas sofreu retrocessos, tendo apenas recuperado em finais dos anos 1990.

O chá é feito à base de ervas medicinais chinesas processadas, frias ou frescas, e com um ou mais sabores. Entre os 24 tipos mais comuns, destacam-se o chá de cinco flores, de ervas de Shaxi, de ervas osso de galinha, de sementes de cânhamo, de Spica prunellae, Folium mori e crisântemo, e o sumo de cana-de-açúcar com Rhizoma imperatae. “As fórmulas de chás de ervas variam ligeiramente consoante a loja, sendo que cada uma cria as próprias receitas, transmitindo-as”, sublinha o instituto.

O IC refere que a história da cultura do Chá de Ervas e a herança contribuíram para uma produção anual na ordem dos dois milhões de toneladas, para a qual contribuem também Hong Kong e Macau. “É actualmente vendido em quase 20 países, incluindo a China, EUA, Canadá, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Austrália e Nova Zelândia. Numa época de rápido desenvolvimento industrial, o Chá de Ervas, um elemento componente da cultura da comida chinesa, possui uma certa importância prática na preservação e promoção da cultura”, reforça o organismo.

Em 2006, no seguimento da candidatura apresentada conjuntamente por Macau, Cantão e Hong Kong, a Preparação do Chá de Ervas foi inscrita no primeiro lote da Lista Nacional de Manifestações Representativas do Património Cultural Intangível da China. Posteriormente, em 2017, a Preparação do Chá de Ervas foi inscrita no Inventário do Património Cultural Intangível de Macau.

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Porta de saída para o mundo

Foi através de Macau que a cultura chinesa do chá se espalhou pelo mundo ocidental. “O chá está estreitamente ligado a Macau. Remonta ao início do século XVII a importância de Macau como porto de exportação do chá chinês para o Ocidente. A reexportação de chá era uma indústria eminente que desempenhou um papel importante na história do comércio e da divulgação do chá chinês”, explica a Casa Cultural de Chá de Macau, no Jardim Lou Lim Ioc, inaugurada em Junho de 2005. “Como porta de acesso a exportação para o mundo, Macau tem uma incalculável abundância de relíquias culturais valiosíssimas relacionadas com o chá, como poemas, dísticos e desenhos tendo o chá como tema”, refere-se na página oficial do monumento. A Casa Cultural de Chá de Macau tem realizado exposições temporárias e de longo prazo, assim como actividades culturais dedicadas ao chá. “Tudo isto serve para evidenciar a cultura do chá em Macau, fornecer informações sobre o chá na China e no Ocidente, bem como para divulgar conhecimentos e estudos, pelo mundo inteiro, sobre a cultura do chá.”