O embaixador brasileiro em Pequim diz que Brasil e China estão num dos melhores momentos da cooperação económica. Em entrevista à MACAU, Paulo Estivallet de Mesquitasalienta o peso do comércio bilateral e define como prioridade o reforço das relações nas áreas do turismo, cultura, ciência, e intercâmbio de estudantes e profissionais. O diplomata salienta ainda o valor de Macau na aproximação sino-brasileira, e defende que o Fórum de Macau deve fazer mais para aproximar China e lusofonia
Texto Catarina Brites Soares | Fotos DR
Paulo Estivallet de Mesquita nasceu em Porto Alegre, em 1959. É licenciado em Engenharia Agrónoma, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e em Diplomacia, pelo Instituto Rio Branco. Também estudou na École Nationale d’Administration, em Paris. Chegou em finais de 2018 a Pequim para assumir o cargo de embaixador do Brasil na República Popular da China. Durante a carreira diplomática, já passou pelas embaixadas de Roma (1989-1993) e de Santiago do Chile (1993-1995). Foi representante permanente, adjunto, da delegação do Brasil na Organização Mundial do Comércio. Antes de ser enviado à China, desempenhava funções como membro do Conselho Director da Itaipu Binacional.
Que balanço faz das relações sino-brasileiras desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu a presidência e desde que é embaixador em Pequim?
O Brasil e a China construíram uma relação com uma dimensão e intensidade que lhes dão bastante estabilidade. O nosso comércio alcançou no ano passado – o primeiro ano do novo Governo – um volume de mais de 100 mil milhões de dólares norte-americanos. Este ano, a estimativa é que cresça quase 10 por cento, apesar da situação muito complicada por conta da pandemia. O presidente Bolsonaro fez uma visita de Estado à China e o Presidente chinês Xi Jinping esteve no Brasil para participar na cúpula dos BRICS. Retomámos a Comissão Sino-Brasileira de Alto-Nível de Concertação e Cooperação, que não se reunia desde 2015. O balanço é muito positivo e temos orientações claras por parte dos líderes de ambos os países para expandir o relacionamento.
Quais foram as principais dificuldades que encontrou na China face a outros locais por onde passou?
A pandemia tem sido uma grande dificuldade. No último ano, impediu contactos e visitas, assim como viagens de funcionários nossos pela China. A actividade rotineira ficou muito prejudicada. Além disso, a China é um país com um sistema e cultura diferentes, o que gera permanentemente dificuldades de comunicação. Não são intransponíveis, mas requerem um esforço adicional de compreensão mútua e de cuidado com os detalhes. Mas, de uma forma geral, o relacionamento entre o Brasil e a China tem-se desenvolvido com base na complementaridade. O Brasil tem sido um grande fornecedor de produtos alimentares, de energia e recursos minerais. A China, além de exportar muitos produtos manufacturados, também se tornou o nosso principal investidor externo em diversas áreas em expansão, como energia e infra-estruturas.
Quais são as prioridades na relação sino-brasileira?
O relacionamento económico é o carro-chefe e tem-se desenvolvido de forma muito boa nos últimos 20 anos. O Brasil já é o sétimo ou o oitavo maior parceiro comercial da China; a China é o maior destino das exportações brasileiras; e, nos últimos seis ou sete anos, passou a ser o maior investidor externo no Brasil. Esta parte tem de ser mantida e aprimorada. Gostávamos de diversificar mais a nossa pauta de exportação, sobretudo com mais produtos de valor agregado, mesmo nesses sectores em que já há relações, como o sector agroalimentar.
E no que respeita a outras vertentes, como a política?
Os países mantêm um diálogo franco e muito produtivo. Evidentemente que as diferenças de sistema político, a distância e o facto de estarmos em duas regiões diferentes do mundo fazem com que a relação não seja tão intensa como seria com países da própria região. O que esperamos na área política é manter o diálogo de respeito em busca de benefícios mútuos e de bom entendimento.
Há outras áreas prioritárias?
Temos também uma cooperação científica de longa data com a China, um programa de satélites que começou em finais dos anos 1980. O desafio é levar isso para outro patamar. A China teve um desenvolvimento extraordinário nos últimos 30 anos. Adquiriu uma dimensão no mundo tecnológico muito maior do que tinha e o Brasil passou por momentos difíceis sob o ponto de vista económico. Queremos recolocar nos trilhos esta cooperação científica, que já tem uma base estabelecida. Uma área em que também tem havido avanços mas que ainda há muito por fazer é ao nível de turistas, visitantes e estudantes, ainda muito aquém do desejável, embora já se tenha expandido muito face ao que era há 10 anos.
A diferença é notória na última década?
No Brasil, já há 11 Institutos Confúcio. Na China também vemos um número significativo de pessoas que estudam português. Temos de trazer mais estudantes brasileiros para a China e levar mais estudantes chineses para o Brasil. O turismo é talvez a área, de uma maneira geral, em que estamos mais ansiosos de reforçar. É algo que a médio prazo queremos que cresça no relacionamento com a China.
Mencionou que o Brasil tem o desejo de aumentar as exportações de produtos com valor agregado. A que se refere?
Por exemplo, no sector alimentar o maior produto de exportação brasileira é a soja em grão, que tem outros de valor agregado como o óleo de soja, mas nem é o mais importante. Refiro-me, por exemplo, a frutas frescas ou refrigeradas. Outro dos produtos brasileiros com uma longa tradição, e que se diversificou e se tornou muito mais valioso, é o café. Temos expandido muito as exportações de carne, e temos procurado expandir a qualidade e o preço de exportações tradicionais, como a do algodão. Além disso, também me refiro a áreas como a moda. O Brasil tem grande tradição de marcas de design, e gostaríamos de ter mais presença na China.
Uma das metas anunciadas aquando da visita de Bolsonaro à China foi a de aumentar o turismo chinês para o Brasil, a captação de investimento e a facilitação na concessão de vistos. O que se conseguiu até ao momento?
Tudo isso ficou em banho-maria. O presidente veio a Pequim em Outubro de 2019 e pouco depois surgiu a pandemia. Uma das dificuldades que temos para o turismo chinês é a questão das ligações aéreas. Também temos de organizar circuitos a pensar no turista chinês, que tem características especiais. Tudo ficou um pouco prejudicado e teremos de rever o plano. Os 160 milhões de turistas chineses de 2019 não viajaram em 2020. Temos de esperar para levantar as restrições sanitárias e de viagem, e aí tudo será retomado.
E ao nível dos vistos?
Estamos a aumentar muito o número de centros de emissão de vistos. Tínhamos três ou quatro, e agora temos centros em 11 cidades chinesas, o que facilita muito. Claro que num primeiro momento os principais beneficiários são as pessoas que vão em negócios ou através das empresas chinesas que investem no Brasil. No que respeita ao turismo, teremos de analisar isto de uma maneira mais integrada. Não se trata só de garantir o visto, mas também fazer com que o turista chinês tenha uma experiência agradável no Brasil, de forma a que essa ligação se torne sustentável e crescente nos próximos anos.
O Governo brasileiro referiu na altura estar a preparar instituir o visto electrónico para visitantes da China, além da isenção de vistos para os que já tenham para a União Europeia, Estados Unidos ou Argentina. Houve progressos?
Não se desistiu de nada, mas perdeu-se a prioridade. As viagens estão com muito mais restrições. Não tenho expectativa de uma decisão a curto prazo.
O Brasil é o principal parceiro lusófono da China. Que importância tem a relação para o país?
Há 11 anos que a China é o nosso maior destino de exportações. Neste ano, em que as exportações brasileiras estão em queda para praticamente todos os países, aumentaram para a China, e são três vezes superiores às dos Estados Unidos, o nosso segundo maior mercado de exportação. É absolutamente prioritário. Em termos de comércio, é o nosso parceiro. A recuperação da China está permitindo uma tranquilidade e que o Brasil tenha um desempenho comercial melhor do que os restantes países do G20. O Brasil encontra-se num momento, por motivos demográficos e geográficos, de grande necessidade de investimento em infra-estruturas. A China é o país com maior capacidade e interesse de investimento em infra-estruturas. Um outro ponto importante também tem que ver com o grande interesse de investimento de empresas chinesas noutros sectores – de transporte, informático, eléctrico. Empresas destas áreas têm-se instalado no Brasil nos últimos anos e são muito bem-vindas. É uma relação absolutamente prioritária sob o ponto de vista económico.
De que forma pode ser o Brasil importante para a China, tanto ao nível do contexto interno como no plano da política/comunidade internacional?
Do ponto de vista económico, o Brasil é mais importante para a China como supridor do que como mercado para as exportações chinesas, tanto que o Brasil tem tido um superavit comercial substancial com a China ao longo dos últimos anos. Em 2020, o Brasil foi o terceiro fornecedor de petróleo da China; garantiu cerca de um quarto do minério importado pela China, e é um fornecedor fiável de produtos agrícolas e alimentares, muito importantes para o mercado chinês.
Que presença tem o Brasil no sector alimentar chinês?
No caso da carne de frango, no ano passado houve uma redução das importações chinesas dos EUA. Por isso, o Brasil forneceu 80 por cento da carne de frango importada pela China. A nossa estimativa é que quase um quarto do total dos alimentos importados pela China venha do Brasil, incluindo no sector das carnes. A carne de frango ocupa a maior parcela, mas também há uma forte presença da carne bovina e suína, cuja exportação aumentou no período mais recente dado o problema da peste suína na China. O Brasil é um grande contribuidor para a segurança alimentar chinesa. Além disso, é ainda um fornecedor de energia e é também uma economia interessante para a expansão internacional das empresas chinesas. As grandes construtoras chinesas, como a State Grid e a China Three Gorges, têm quase metade dos seus investimentos externos no Brasil, o que mostra como a China vê o potencial de desenvolvimento das suas empresas no mercado brasileiro.
Como olha para a iniciativa chinesa “Uma Faixa, Uma Rota”?
Olhamos e acompanhamos com muito interesse. Por ser uma iniciativa centrada na China, é natural que a maioria dos investimentos e as prioridades seja nas áreas de interesse da China. Mas o Governo chinês já manifestou a intenção de haver iniciativas e investimentos desenvolvidos em África e na América Latina. Se houver algum projecto que possa ser integrado na iniciativa, que facilite a obtenção de investimentos e de apoios do Governo chinês, e se coincidir com as nossas prioridades, obviamente que temos interesse. Nas visitas oficiais mencionou-se o interesse de ambas as partes em procurar sinergias dentro desta iniciativa. Vemos como algo muito positivo e como uma plataforma adicional à cooperação com a China.
Há um investimento crescente na língua portuguesa por parte da China. Tem tido reflexo no Brasil?
Aumentou muito o interesse pelo português na China e pelo mandarim no Brasil. É muito positivo, mas ainda é o início de uma longa caminhada que tem de ser desenvolvida nas próximas décadas. O facto de haver tantas empresas chinesas com investimento no Brasil oferece possibilidades de emprego aos jovens chineses que estudam português. Do ponto de vista cultural, obviamente que vemos isso como um enriquecimento. A nossa oportunidade foi muito beneficiada pela presença portuguesa em Macau. No caso do Brasil, uma parte significativa do contacto com a China deveu-se a viajantes que estiveram em Macau e que, através da região, passaram pela China. Este contacto com as duas culturas será tanto mais beneficiado quanto mais a China se interessar pela cultura dos países de língua portuguesa.
Ao nível das empresas, como tem evoluído a situação? Que vantagens e dificuldades encontram no mercado chinês?
O tamanho do mercado chinês é uma enorme oportunidade, mas também é um desafio. É muito competitivo e muitas vezes a procura é tão significativa que, mesmo no caso do Brasil, é difícil corresponder. No caso dos outros países lusófonos é ainda mais difícil o posicionamento no mercado chinês.
Ouvem-se queixas de vários empresários, por exemplo pelas barreiras para entrarem no mercado. Há melhorias?
Essa questão das dificuldades de acesso ao mercado chinês vale por vezes para produtos como aeronaves, que dependem de uma série de autorizações em que o procedimento não é tão simples. É efectivamente uma matéria de preocupação. Mas prefiro ver o lado positivo e se existe mais investimento chinês no Brasil pode ser em parte pela questão regulatória, mas também porque a China tem tido mais capital para exportar. Quando menciono que nos últimos anos aumentou muito o investimento chinês não é apenas no Brasil, é no mundo inteiro. Há certamente dificuldades, às vezes são problemas de comunicação, outras vezes é a questão de diferença de sistema político e regulatório chinês, que apresenta uma série de desafios. Mas, de forma geral, as empresas brasileiras que investiram, algumas poucas dezenas, valorizam muito as perspectivas de crescimento e a realidade do mercado. É extremamente competitivo porque toda gente tem interesse em estar aqui. Claro que o diálogo entre os Governos ajuda a eliminar alguns dos obstáculos.
Qual é a dimensão da comunidade brasileira na China?
O número é relativamente pequeno. Não tenho dados certos porque os brasileiros não são obrigados a registarem-se nos consulados. Estimamos menos de 50 mil, o que é relativamente pouco para um país com a dimensão da China. Há alguns jogadores de futebol, pessoas que trabalham em multinacionais. Há uma comunidade de brasileiros na província de Guangdong, que se estabeleceu há vários anos na área de fabrico de calçado. É uma comunidade que não gera problemas e isso também faz com que não tenhamos um conhecimento preciso de quantos são. Havia um número razoável de estudantes até ao ano passado.
Quais são as perspectivas de crescimento das relações com a China para os próximos anos?
A nossa relação comercial já é muito sólida. O objectivo é que continue aumentando. Esperamos igualmente que as exportações da China para o Brasil aumentem e que as empresas chinesas continuem a ver o mercado brasileiro como um destino de investimento. Não apenas para o comércio tradicional entre os dois países, ou seja, de commodities, mas também como participantes cada vez mais presentes na indústria e serviços do mercado brasileiro e da própria América Latina.
Mas tem metas definidas?
Um dos grandes desafios, mas que é difícil colocar metas, é ao nível do que os chineses chamam de contactos pessoa-pessoa. Queremos aprofundar as relações no âmbito da tecnologia, cultura e do turismo assim como de intercâmbio de estudantes e profissionais. Ao longo dos últimos 20 a 30 anos, os avanços foram extraordinários. Aconteceram de forma quase natural, prova disso é a expansão do comércio, que resulta da necessidade de complementaridade. O crescimento da China acaba por gerar uma maior procura de consumo e, à medida que a população ganha poder de compra, também começa a consumir produtos cada vez mais caros, o que é benéfico tanto para a China como para o Brasil. Existe uma relação de muita confiança, boa vontade e simpatia entre os povos. Há muita margem para o crescimento do relacionamento com a China.
Que importância tem Macau no quadro das relações sino-brasileiras e sino-lusófonas?
Macau tem dado ao longo dos tempos uma grande contribuição simbólica. Para os brasileiros, Macau é conhecido como não acontece com outros lugares muito maiores na China. Quase todo o brasileiro conhece Macau como um pedaço de língua portuguesa na China. É uma atracção. Os estudantes gostam de fazer intercâmbio na cidade. Macau continua a ter uma grande oportunidade e possibilidade de desempenhar o papel de ponte entre a China e o Brasil.
E no que respeita ao Fórum de Macau?
Vemos o Fórum como um factor positivo porque demonstra a valorização do lado chinês do mundo lusófono como um parceiro a ter em conta e o interesse em valorizar essa tradição lusófona que vem da história de Macau. Por outro lado, o Fórum tem ficado aquém do que poderia ser em termos de iniciativas concretas, como orientar efectivamente investimentos principalmente para os países lusófonos africanos, onde existe a necessidade de um apoio talvez maior e intervenção do Governo chinês na construção de projectos. Ou seja, o Fórum não se deve limitar a ser uma entidade declaratória, mas tem efectivamente de procurar oportunidades para investimentos nos países lusófonos. Será sempre uma plataforma interessante para o diálogo no aspecto cultural, mas na parte económica tem ficado aquém.