“Na civilização chinesa também há uma história do mundo, que desconhecemos”

Foi o interesse pela versão do país onde vive há décadas e a necessidade de a dar a conhecer aos outros que o motivou a criar a Livros do Meio. Através da editora, Carlos Morais José procura colmatar a lacuna que existe de obras e autores chineses traduzidos em português, e que considera fundamentais para se perceber a China. O antropólogo, jornalista e autor tem priorizado os clássicos. “Não podemos começar uma casa pelo teto, temos de começar pelas fundações”, afirma, para justificar a opção da editora que, no ano passado, traduziu, editou e publicou sete livros dedicados à cultura chinesa

Texto Catarina Brites Soares | Foto Gonçalo Lobo Pinheiro

Como começou o projecto da Livros do Meio, que se tem dedicado muito à publicação de obras e autores chineses?

Começou com a minha vinda para Macau. Sou de antropologia e logo à partida tenho uma apetência especial pela apreensão de outras culturas, neste caso não-europeias. Desde que cheguei que me dedico ao estudo do pensamento chinês, e à própria etnografia chinesa. Anos mais tarde, quando fiquei como director do Hoje Macau, resolvi que tinha de publicar todas as semanas traduções de clássicos chineses para ter esse espólio que, na maior parte dos casos, estava por traduzir. A sinologia portuguesa é bastante deficitária.

Quis colmatar a lacuna?

Antes de 1999, sugeri ao então Governador de Macau que se instalasse aqui um Instituto de Sinologia Portuguesa, que faria todo o sentido e que acabou ainda mais reforçado com o facto de Macau ter sido designado, em 2003, como ponte para os países lusófonos. Nunca aconteceu. Continuei o meu trabalho no jornal. Passados muitos anos, reuni traduções importantes de clássicos chineses de várias áreas além da poesia, que também fui fomentando, à margem do jornal, com amigos poetas e tradutores. Cheguei a um ponto em que tenho muitos livros para publicar, mas que precisam de revisão, de notas e de edição, que sozinho tenho alguma dificuldade em fazer rapidamente.

Mas, entretanto, publicou vários.

Publicámos livros importantes, nomeadamente a tradução de poemas de Han Shan, Tao Yuanming, os Quinhentos Poemas Chineses, como forma de comemorar os 500 anos de presença portuguesa nesta zona do mundo. A ideia era haver um poema traduzido por cada ano que aqui estivemos como forma de homenagear a cultura chinesa. Acabei por fazer isso em 2013, com o António Graça de Abreu. Digo da China o que Freud dizia do inconsciente: pões um pé, mas há um mundo inteiro por descobrir. Acendemos uma luzinha, mas há imenso por explorar.

Tem-se dedicado especialmente aos clássicos. Porquê?

Para compreender o contemporâneo tem de se ler os clássicos. Não se pode ler um poeta contemporâneo chinês se não se tiver conhecimento das origens da cultura chinesa. Não podemos começar uma casa pelo teto, temos de começar pelas fundações. Em português não temos quase nada sobre os escritores chineses e há uma apetência das editoras comerciais pelos escritores contemporâneos, nomeadamente os que ganham prémios Nobel. O meu trabalho é aquele que ninguém quer e que devia ser feito por fundações. Exige uma equipa e é por isso que demoro tanto tempo a publicar um livro.

A que autores se tem dedicado além dos que referiu?

Em termos de poesia, editámos os que não estavam publicados: Li He, Han Shan e Tao Yuanming. Em termos de pensamento [chinês], estou a editar os quatro clássicos fundamentais do Confucionismo: o Estudo Maior, a Prática do Meio, os Analectos – esse sim já traduzido recentemente em português do Brasil – e o Mêncio, que também nunca foi traduzido. Estes quatro formam o núcleo do Neo-Confucionismo, tal qual foi encontrado pelos jesuítas quando chegaram ao Oriente. Quando nós portugueses chegámos ao Oriente, este era o cânone. Era a base do Confucionismo Moderno, da Idade Média da China – da Dinastia Song para a frente, que é quando o Confucionismo volta a ter importância ao nível do poder e da sociedade chineses. Desde a Dinastia Han até à Song, houve uma grande intromissão do Budismo e do Taoismo Mágico no pensamento chinês, que depois veio a ser renegado ou contemporizado pelo renascimento do Confucionismo na Dinastia Song até à Revolução Republicana.

Como é o processo até chegar ao livro publicado?

Tenho pessoas que traduzem a partir do chinês, do inglês e do francês através de traduções que já existem. Faço as revisões e as notas.

O trabalho tem tido influência em si como autor e escritor?

Tem. Quando se mergulha num pensamento, há dois momentos: o de absorção e, depois, o do clique, quando tudo faz sentido. Como diz um sinólogo francês, é interessante pensar a Europa a partir da China e analisar o nosso pensamento clássico com os olhos de um estrangeiro, mas que esteve numa civilização extremamente complexa. Dá-nos outra perspectiva. Temos uma história do mundo muito baseada no eurocentrismo, mas há outra para ser contada. Na civilização chinesa também há uma história do mundo, que na maior parte dos casos desconhecemos. Ter diversas perspectivas dessa história tem-me enriquecido imenso como pessoa e como autor.

Como é que explica a ausência de traduções, sobretudo dos clássicos, tendo em conta a presença portuguesa de 500 anos nesta zona do mundo?

Ao nível do Estado nunca houve grande preocupação em estabelecer esse caminho de compreensão mais profunda do outro. Se estamos aqui, deve-se muito a iniciativas individuais. Temos uma fraquíssima antropologia dos locais que colonizámos, ao contrário dos ingleses e dos franceses. As nossas elites não só eram muito fracas sob o ponto de vista intelectual e cultural, como abafavam aqueles que se queriam dedicar realmente ao estudo. O problema nunca acabou, nem com o Portugal democrático. Nunca tivemos uma academia como deve ser, universidades que se tivessem empenhado no estudo das outras culturas.

Incluindo da chinesa?

A China, que ainda é mais difícil por ser extremamente complexa e por ter uma escrita ideográfica, muito mais difícil de penetrar que uma escrita alfabetizada, foi sempre vista como impenetrável e houve pouco esforço para a compreender. O único que foi feito foi pela Igreja Católica, através dos jesuítas, quem mais tentou compreender a cultura e a civilização chinesas com o objectivo da missionação, que também não é propriamente um fim académico e altruísta.

Tem a expectativa de contribuir para a aproximação dos povos por tornar acessíveis estas obras?

Sou uma pessoa sozinha, não estou a fazer nada de muito importante. É só um pequeno contributo, que talvez sirva de exemplo. Hoje já existem universidades portuguesas que se dedicam aos estudos chineses e aparecerão pessoas mais qualificadas para fazer este trabalho. O que faço aqui em Macau é, por um lado, uma forma egoísta de me ilustrar, de aprender mais sobre estas pessoas no meio das quais vivo e que me permite perceber uma série de fenómenos à minha volta, e isso é importante; por outro lado, sim, de disponibilizar esses livros. Mas é muito difícil. Gostaria de distribuir estes livros para o mundo lusófono e é impossível fazê-lo sozinho.

Como é ao nível da distribuição?

Não tenho conseguido. Os livros ficam aqui e são testemunho de um trabalho. Publiquei sete livros em 2020, a maior parte nunca antes traduzidos. Tenho muitos mais para publicar, pelo menos 10 livros importantes que deviam ser publicados hoje para haver uma compreensão melhor do que se passa na China hoje.

Como por exemplo?

Só compreendendo certos fenómenos que têm origem em dinastias de há 3000 anos é que compreendemos determinadas atitudes que hoje existem na China, porque são aceites e fazem parte do quotidiano do povo chinês. Se não soubermos estas coisas não compreendemos os fenómenos que se passam na China ou compreendemos à luz dos nossos preconceitos. É esta falta de cultura que vejo muito à minha volta. Há países onde se tem feito um grande esforço de tradução dos clássicos, mas também de livros marginais e que, por isso, têm um interesse fantástico porque revelam muito sobre este país e civilização.

Pode dar exemplos desses livros que estão na gaveta por publicar?

Um muito importante é o livro de Han Fei Zi, grande filósofo do Legalismo, a teoria filosófica que enforma o primeiro imperador que unificou a China, Qin Shi Huang. A obra de Han Fei é muito importante para compreender um dos aspectos do exercício do poder na China. Se formos para o lado do Taoismo, tenho Zhuang Zi, Wen Zi, Huainan Zi. Também traduzimos parte de Wang Chong, que é um céptico da Dinastia Han, um homem que nega a vida depois da morte, a existência de fantasmas, que tem um pensamento completamente crítico e talvez raro no contexto chinês, mas que já existe na Dinastia Han, ou seja, 200 anos d.C. Agora está a ser traduzido todas as semanas Xun Zi, o segundo filósofo mais importante do Confucionismo pré-Qin, que se opõe ao Mêncio. Enquanto que Mêncio diz que a natureza humana é intrinsecamente boa, uma espécie de Rousseau do século III a.C., Xunzi diz exactamente o contrário: que a natureza é cruel e que só através da moral conseguimos endireitá-la. São duas correntes opostas dentro do Confucionismo, como havia dezenas. Tudo isto está por estudar em português, mas é difícil remar num barco tão pequeno neste mar tão grande.

Não sabendo chinês, como é que chega às obras e as escolhe?

Leio noutras línguas e depois decido. Os franceses têm feito um trabalho extraordinário nos últimos anos. Há uma editora conhecida por ter traduzido todos os clássicos gregos e latinos, a Les Belles Lettres, que desde 2000 está a traduzir todos os clássicos chineses. Traduziram inclusivamente um livro que é uma vergonha não estar em português que foi escrito pelo Matteo Ricci, o Discurso sobre o Senhor do Céu, um diálogo entre ele e um letrado chinês sobre questões filosóficas. Não consigo perceber os conceitos se não estudar os caracteres e estudo-os. Posso não saber falar fluentemente chinês, mas todos os conceitos filosóficos que me aparecem, vou estudar um a um, porque senão é impossível compreender onde querem chegar, que partes da realidade recortam. É muito difícil encontrar uma palavra que traduza exactamente a outra. A palavra “definir” não cabe aqui. Uma das características do pensamento chinês é a sua maleabilidade. Por isso é que, antes da tradução do Estudo Maior, fiz uma pequena introdução com nove conceitos do pensamento chinês para explicar cada um.

Organizou a Semana da Cultura Chinesa, sob o lema conhecer melhor a China e combater os preconceitos. Que preconceitos são esses?

Há tantos. Podemos começar logo pela ideia de Império Imóvel, em que a China é um sítio onde as coisas ficaram permanentes, onde nada mudou, século após século, é um preconceito absurdo. Obviamente que houve uma extraordinária energia e mudanças ao longo da história da China. O preconceito deve-se sempre ao medo e à ignorância. Mas isso não são só os europeus, os chineses também o têm. Simplificar o que se desconhece é o caminho do facilitismo.

De que forma o trabalho de tradução e edição pode ajudar Macau a afirmar-se na lusofonia?

Isso era uma parte importante. Se houvesse o tal Instituto de Sinologia Lusófona… Atendendo ao contexto e ao objectivo de Macau ser uma ponte para os países lusófonos, faria sentido que houvesse uma instituição dedicada a isso. No âmbito do Fórum de Macau devia ter sido uma das suas incumbências desde o princípio.

Optou-se pela via das relações comerciais?

O problema é que se pensou que a economia ia aproximar os povos. A economia não aproxima, é fria, tem que ver com a ambição, aspectos negros do ser humano. Enquanto que a cultura e o pensamento aproximam e criam laços duráveis, a economia nunca resolve nada, apenas os interesses de um grupo. Começo a notar sinais nos discursos, mas os caminhos da cultura são estranhos. Não vivem de efemeridades, como exposições de artistas, festivais de música e outros acontecimentos passageiros, mas sim de um trabalho demorado e profundo. As pessoas entendem a cultura como entretenimento.

Sente isso?

A cultura é o mais profundo recurso que um povo tem. O que achamos bem ou não, o que nos é confortável ou não, tudo está inscrito em redes culturais e é isso que é preciso estudar, aprofundar, mostrar ao outro e trazer o outro até nós porque a troca é fundamental, vai evitar muitos problemas como guerras, racismos, a xenofobia. É esse investimento cultural que é fundamental ser feito, sobretudo sobre a cultura chinesa que é vastíssima e tem tanto para dar ao mundo. É uma pena que não se faça, e também é uma pena que Macau, com o desígnio que tem, não faça da cultura um dos seus pilares.

Como?

Se se gastasse um por cento do dinheiro do Fórum de Macau em cultura fazia-se muito na área académica e da cultura, e em coisas que não passam, não se esgotam na efemeridade.

Falta mais investimento nessa área?

Durante anos traduzimos textos sobre pintura clássica chinesa, dos ensaístas chineses desde o século VI até ao XIX. Fizemos uma colecção desses textos e publicámos, isto merecia ser divulgado junto das Faculdades de Belas Artes de Portugal, do Brasil, de África. Está a ser feito? Não. Devia haver acordos com editoras fora de Macau para republicar esses livros. Macau também devia ter um papel muito maior na divulgação de autores lusófonos de Macau, como por exemplo do Camilo Pessanha, e não tem. Em 2020 cumpriram-se os 100 anos da edição de Clepsydra. Esperei até ao fim do ano para ver se acontecia alguma coisa, não aconteceu e por isso decidi publicar dois livros para comemorar: um com uma colecção de artigos de vários académicos da Faculdade de Letras que escreveram sobre Camilo Pessanha, e uma colectânea de ensaios meus. Senti sempre o dever de não deixar morrer esta memória.

Tem algum autor chinês predilecto?

Na Dinastia Tang deu-se o grande momento da poesia chinesa. No século XVII, sob a égide do imperador Kangxi, foi feita uma colectânea de poemas Tang que atingiu os 24 volumes, só para ter uma ideia da quantidade de poesia produzida nessa altura. A produção foi imensa, com poetas geniais como Li Bai, Du Fu, Wang Wei, Bai Juyi, Li He, o último que publiquei. Essa altura da poesia chinesa é notável. Ao nível do pensamento, gosto muito do Wang Fuzhi, um filósofo do século XVII, e de Wang Chong, da Dinastia Han, que é um céptico, que me agrada particularmente por causa disso. Gosto muito do Zhuang Zi, mestre taoista. A cultura chinesa não se resume a uma dicotomia entre confucionistas e taoistas, à poesia sobre a lua reflectida no rio: existe de tudo.

Já se surpreendeu?

Ainda agora descobri numa tradução francesa sobre uma polémica entre dois pensadores pós-Dinastia Han (Ge Hong e Bao Jingyan), que escrevem cartas um ao outro em que discutem temas filosóficos. O tema é basicamente se deve ou não haver Governo, ou seja, um é anarquista e o outro não. O debate passa-se na transição do século III para o IV. Este é um pequeno exemplo. É preciso perceber o que está enraizado na mentalidade chinesa desde tempos imemoriais e que depois nas margens surgem coisas completamente diferentes. Há uma riqueza gigantesca de posições, de teorias, de saberes. A China não é uma, é muito diversa.

Obras de 2020

Estudo Maior

Prática do Meio

As Leis da Guerra, de Sun Bin

Balada do Mundo, de Li He

Teoria da Pintura Chinesa I: Os eixos da tradição

Teoria da Pintura Chinesa II: O fascínio do gesto

Divino Panorama: Um inferno chinês