Com mais de um século de história, a escultura de imagens sagradas em madeira tornou-se uma forma de expressão artística religiosa em Macau e uma tradição requintada. Tsang Tak Hang, escolhido como representante da arte desde que é património, alerta para o risco de desaparecer e insiste na importância de se encontrarem novas formas para que persista no tempo
Texto Catarina Brites Soares | Fotos Instituto Cultural de Macau e Gonçalo Lobo Pinheiro
Em 2008, a Escultura de Imagens Sagradas em Madeira foi inscrita na Lista Nacional de Manifestações Representativas do Património Cultural Intangível da China. Em 2014, Tsang Tak Hang foi reconhecido como transmissor da arte. Três anos depois, a tradição foi inscrita no inventário do Património Cultural Intangível de Macau.
Na cidade, surgiu em inícios do século XX, quando a maioria dos pescadores vivia em barcos e não sabia ler nem escrever, explica o documento do Instituto Cultural (IC) sobre o tema. Recorriam por isso a pequenas figuras de madeira para prestar culto aos antepassados e deuses, em vez das placas com os nomes dos familiares. As esculturas eram também construídas para serem colocadas em posições importantes nos barcos, como na proa e na cabine de comando, para pedir protecção aos espíritos, dado o elevado risco associado à pesca.
“Os pescadores mandavam fazer uma estátua que representava o avô falecido, com cerca de 10 centímetros, e outra para representar o bisavô, com perto de 12 centímetros. A da geração mais antiga tem de ser maior. A estátua que representava o avô tinha barba preta, e a do bisavô barba branca”, exemplifica Tsang Tak Hang à MACAU.
O desgaste causado pelo embate das ondas do mar e pelas intempéries fazia do ofício de escultor uma necessidade, já que as placas e esculturas sagradas tinham de ser substituídas com frequência.
A grande procura por parte dos habitantes e dos templos aliada à dos pescadores levaram ao rápido desenvolvimento de negócios dedicados à escultura de imagens sagradas em madeira. No período entre 1920 e 1930, já eram mais de 10 as lojas na Rua da Madeira, junto ao Porto Interior, exemplo de como a tradição florescia. Após o final da década de 1930, a guerra, a industrialização da economia e o abrandamento da indústria da pesca acabariam por levar ao declínio da actividade.
Outros tempos
À MACAU, Tsang consente que apesar de ainda hoje se praticar, há o risco de desaparecer. “O mundo está a mudar, mas, no que respeita ao património, o mais importante é saber que esta tradição existe, e dar a conhecer as etapas que devem ser respeitadas para se construírem as estátuas. A tradição não tem por que se extinguir, há sempre maneiras de a preservar mesmo que seja através de registos como documentários.”
É com nostalgia que fala dos tempos aúreos de uma arte que já teve mais mercado. Tsang repetiu a profissão do avô e do pai, com quem aprendeu e de quem herdou o negócio, na família há gerações. Aos 8 anos, já ajudava os mais velhos. “Quando comecei a exercer foi mais fácil porque já tinha visto como se fazia lá em casa”, recorda.
A Escultura de Imagens Sagradas em Madeira, como refere o documento do IC, é considerada uma forma de expressão artística religiosa de Macau, com origem na escultura tradicional chinesa de imagens sagradas, e que também bebe de influências de outros países ao nível da concepção e da montagem.
Tsang é disso prova. Foram várias as viagens a Taiwan, Japão, Hong Kong e outros destinos –onde o mercado era muito mais desenvolvido -– com o objectivo de aprender e progredir. “Em 1970, ainda usávamos machados, mas os japoneses já usavam serras eléctricas”, exemplifica. “Passados 40 anos, passei de um aprendiz novo a um profissional velho. É uma experiência.”
O quase meio século de dedicação fez dele uma marca viva da tradição no território e o emissor de uma herança cultural que vai das técnicas aos materiais usados. “Há muitos pormenores a ter em conta”, sublinha. “Quando nos dedicamos, descobrimos que há muito para aprender, há muitos detalhes que têm de ser respeitados. A tradição é essa sabedoria acumulada de séculos.”
Nem sempre foi fácil aguentar o negócio, que conheceu altos e baixos. Relata que, na altura do avô e do pai, a procura era instável, o que o levou a ir para Hong Kong quando jovem, onde aprendeu grande parte do que sabe. “Estar em Hong Kong abriu-me muito os horizontes. Lá havia templos muito maiores que exigiam estátuas proporcionais, ao passo que o negócio familiar em Macau se limitava a estatuetas para pescadores”, compara.
Hoje, e apesar da queda do mercado, o escultor ainda não se ressente. “Como a nossa loja é antiga e conhecida, não nos afecta o facto de haver menor procura. Os templos têm sempre necessidade de estátuas.”
Quanto ao futuro, não se mostra tão seguro, já que nos últimos anos foram poucos os jovens que abraçaram o ofício. “Não serve para quem quer ganhar dinheiro de forma fácil. As obras demoram muito a ser construídas”, justifica. A solução, acredita, pode estar em atrair quem já domina talentos essenciais do processo, como a carpintaria, o artesanato e a pintura.
O documento do IC refere que, actualmente, restam apenas duas lojas em Macau: a de Escultura de Imagens de Buda e Objectos de Madeira, e a de Ídolos Sagrados e Objectos de Madeira. Os estabelecimentos, garante o organismo, têm tido o cuidado de coleccionar e preservar documentos relevantes para impedir que a arte morra e que permitam revitalizá-la, depois do declínio pós-anos 1970.
A cooperação com entidades públicas e académicas, a organização de exposições temáticas, de workshops e seminários, assim como a participação em feiras noutros locais, têm sido apostas do Governo e privados no sentido de promover a tradição e garantir que persiste, reforça o instituto.
Traços gerais
O processo é meticuloso. Inicialmente, as esculturas de madeira eram sobretudo de imagens sagradas utilizadas pelos pescadores em respeito de rituais e crenças budistas, taoistas e devoções populares. Com o declínio da indústria da pesca, nos anos de 1980, e as transformações sociais que se sucederam, o ofício passou a concentrar-se na construção de esculturas budistas.
O documento do IC explica que o método em Macau assenta num estilo conceptual e tem por base antigas técnicas de aplicação de laca da escultura tradicional de Ningbo, da província de Zhejiang, técnicas japonesas de encaixe de madeira e técnicas de escultura de Taiwan. Trata-se de um processo artesanal muito rigoroso e que exige materiais de excelente qualidade.
“Se for uma estatueta para casa, é muito mais simples. Ao passo que nos templos, as estátuas não podem ser iguais e é nestas que entra a herança cultural, porque têm de ser seguidas determinadas técnicas e processo”, refere Tsang.
Há vários passos até ao resultado. O processo começa com a selecção de materiais, depois a concepção, o entalhe, o encaixe e o polimento. A seguir vem a aplicação de cal, de tecido, de verniz de base, da laca e da folha de ouro, e finalmente a pintura. “Todos estes passos requerem um elevado grau de rigor, uma técnica especializada, bem como uma longa experiência por parte do artista”, reitera o documento do Instituto Cultural.
Na perspectiva religiosa, acrescenta Tsang Tak Hang, o ouro, o bronze, a madeira e o barro são materiais naturais aos quais é associada uma espiritualidade. O escultor acrescenta que a madeira é particularmente especial por ser considerado um material com vida.
O trabalho começa precisamente com a selecção da madeira, que tem de se saber trabalhar por causa das texturas. Aspectos como a contracção e dilatação do material não podem ser ignorados sob pena de comprometer a longevidade da peça, ressalva o artista.
“Há que utilizar a parte melhor da peça. Diferentes estátuas requerem diferentes tipos de madeira. Como não é um simples produto de artesanato, não usamos a casca nem os ramos porque são húmidos e podem levar ao aparecimento de larvas ou apodrecer. Entalhamos as peças, evitando que apareçam fendas. Depois temos a escultura em si, que não é tão importante como muitas pessoas acham, corresponde a um quarto do processo todo. A seguir, ainda temos o polimento e outras etapas.”
Polir, detalha, é outra parte delicada já que, se for mal feita, a escultura pode sair deformada. Segue-se a aplicação da cal – que torna a superfície mais macia, e eventualmente volta a polir-se – “porque há etapas que podem ter de ser repetidas mais do que uma vez”. Depois a aplicação da tinta e da folha de ouro finalizam a peça.
O IC refere que, em Macau, as lojas que produzem a arte dominam o processo de fabrico de pequenas estatuetas assim como de grandes estátuas budistas com dezenas de toneladas. “O elevado nível artístico é reconhecido tanto na China como no exterior, levando à encomenda de esculturas de imagens sagradas em madeira, instrumentos para altares budistas e pagodes budistas por parte de muitos templos e santuários budistas privados de Macau, Hong Kong, Sudeste Asiático, Estados Unidos e Canadá, atendendo igualmente vários pedidos de restauro de esculturas”, acrescenta o IC.
O organismo ressalva ainda que a arte é abrangente e transversal, acabando as lojas locais por produzir também materiais com outros fins como letreiros comerciais, decorações para espaços privados e outras componentes em madeira.