Guardiães da História

Preservar é palavra de ordem numa cidade que tem um património sem igual. À MACAU, o Instituto Cultural explica os desafios do processo de conservação histórica numa região onde tradição e modernidade coexistem

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e IAM

Caminhar pela parte histórica de Macau deixa a sensação de se estar num museu a céu aberto. A arquitectura dos espaços, monumentos e lugares põem em evidência que se percorre uma história que resulta da fusão de várias culturas e períodos. Essa marca é também a identidade de Macau, que o Instituto Cultural (IC) procura guardar.

Alexandre Lou, da Divisão da Salvaguarda do Património Cultural, explica que o trabalho de preservação do património é especialmente desafiante em Macau. “É uma cidade património da UNESCO e tem uma longa história. Ao mesmo tempo, temos de ter em conta que esses espaços não são só história, têm vida. As pessoas continuam a ir às igrejas e aos templos, por exemplo. Os espaços continuam a ser tradicionais e antigos, mas a vida e as necessidades das populações mudam constantemente. O nosso trabalho passa por encontrar o equilíbrio entre essas duas partes.”

Em resposta à MACAU, o Instituto Cultural explica que para analisar o estado de cada edifício estabeleceu um mecanismo de monitorização e realiza inspecções frequentes. Intervém sempre que são identificados problemas que podem afectar a conservação do local, e informa o proprietário, caso se trate de um espaço privado.

O arquitecto Alexandre Lou detalha que o processo implica várias fases. Primeiro, a pesquisa e investigação. É fundamental mergulhar em documentos que expliquem o contexto do espaço. Tudo ajuda. Fotos, desenhos, planos urbanísticos e outros registos que permitam à equipa perceber as características e materiais que devem ser conservados para que o edifício continue a ser reflexo do período e cultura em que se insere. A visita ao local é o passo seguinte, etapa fundamental sempre, mas sobretudo quando não há documentos sobre o espaço.

Terminada a primeira fase – de pesquisa e investigação –, concebe-se o plano de restauro que tem sempre como ponto de partida a essência do local.

Finalmente, o concurso público, obrigatório tendo em conta que é um serviço prestado para um organismo do Governo. Começa então a reconstrução, sob a avaliação e acompanhamento do IC, que garante que o constructor cumpre os critérios definidos pela equipa que estudou o edifício e definiu de que forma deve ser preservado.

Linha da frente

O processo de restauração e preservação é multifacetado. É por isso que fazem parte da Divisão de Salvaguarda do Património Cultural urbanistas, arquitectos, engenheiros, arqueólogos, historiadores e químicos, os últimos porque muitas vezes é preciso recolher amostras que depois têm de ser analisadas, como explica o técnico superior do Departamento do Património Cultural. “É importante percebermos factores como de que material é feita a estrutura, que percentagem tem de cada material”, detalha Alexandre Lou.  “Muitas vezes não tem de passar por todos. Normalmente, começa com um arquitecto e um engenheiro, aos quais se juntam outros profissionais se for necessário.”

Há quase uma década na equipa do IC responsável por manter o que vem de outros tempos, Lou relembra alguns projectos com especial carinho. Recorda o edifício que hoje alberga a Cinemateca Paixão, o mais difícil de restaurar e, por isso, o mais desafiante também. O edifício de três andares na Travessa da Paixão serviu, inicialmente, de habitação e mais tarde de escola até ser convertido num cinema com outras áreas dedicadas à sétima arte, tendo no piso superior uma biblioteca e uma videoteca toda ligada ao cinema. Tem ainda um pequeno jardim nas traseiras, onde também estão as escadas que levam aos diferentes pisos. Quem olha de fora nunca diria que já não é uma casa. A fachada condiz com as restantes na pequena ruela que vai dar às Ruínas de São Paulo, património mundial da UNESCO.

“Um cinema exige condições específicas como uma área grande e um bom isolamento do som. Mas o edifício, originalmente dos anos 1940-1950, não foi desenhado com esse propósito. Era uma casa. Tivemos de alterar a estrutura, mas preservando-a. Foi muito desafiante o facto de conceber uma nova vida para o espaço sem estragar a anterior”, realça o arquitecto.

Partes da casa tiveram de ser destruídas ou profundamente alteradas, mas porque havia o objectivo de manter a estrutura principal, o uso de maquinaria na obra foi logo excluído. Foi tudo à mão. “Os materiais tinham de entrar pelas portas e janelas. Também tivemos de ter em conta a área de interesse arqueológico que ali existe e que nos impedia de escolher certas opções. Tínhamos muitas limitações, foi muito desafiante. Tivemos de considerar as diferentes partes e assegurar-nos de que todos estavam satisfeitos.”

Assim que termina de falar sobre a Cinemateca, logo lhe vem outro projecto à memória. Entre os papéis que trazia na pasta, mostra os que detalham a recuperação da Fortaleza do Monte, trabalho terminado em Junho deste ano com um propósito distinto: em vez da reutilização do espaço, o objectivo era a preservação ao máximo do original.

“Tivemos de analisar o problema nas paredes, tirámos amostras, identificámos os diferentes buracos e os vários processos de restauração. Tivemos de fazer parte a parte porque o material usado não foi sempre o mesmo, nem o original. Reconstruímos a superfície, mas procurámos minimizar ao máximo a nossa intervenção. Se deitamos tudo abaixo e reconstruímos de novo, já não será a Fortaleza do Monte, será um outro edifício.”

Imprevistos

O trabalho é quase sempre meticuloso, mas nem sempre duradouro. Adversidades às vezes bastam para deitar por água abaixo o tempo e investimento de cada restauração. “Temos tufões todos os anos e alguns são bastantes severos. Investimos muito no trabalho de restauração. Os edifícios são feitos para resistir às condições climatéricas, mas o clima está cada vez pior e deparamo-nos com o dilema de reconstruir com base no original mas tendo em conta o que acontecerá, porque no ano seguinte poderá aparecer outro tufão que pode destruir o tecto, as janelas ou as portas. É um trabalho constante”, diz.

Apesar dos obstáculos, Alexandre Lou descreve com orgulho o que faz: “É um desafio e eu gosto disso”. Antes de integrar a equipa do IC, trabalhava num escritório de arquitectura onde concebia projectos de raiz, como centros comerciais e outros edifícios modernos e novos. O oposto do que faz agora, em que o passado é a chave para o sucesso. “É muito mais difícil.”

“É muito importante o que fazemos, porque estamos a deixar uma marca na história destes espaços e isso significa que estamos a fazer história. Temos de nos assegurar, que depois de nós, outras gerações podem continuar por causa e a partir do que fizemos. Se não o fizermos, a história desaparece e isso conduz-me novamente à parte do desafio que falava inicialmente. Muitas vezes não temos documentos nos quais nos podemos sustentar, que nos permitam perceber o antes, o original. Isso dificulta tudo. O nosso trabalho também é esse: deixar um registo. É o que vai permitir que o espaço continue como é.”

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Obra feita

Em 2019, o IC realizou duas inspecções gerais à segurança de de cerca de 600 edifícios históricos, incluindo 62 monumentos, 49 edifícios de interesse arquitectónico, 11 conjuntos e 25 sítios. Em resposta à MACAU, o organismo acrescenta que também foram feitas 128 inspecções de segurança contra incêndios em 43 templos, e 104 fiscalizações em conjunto com a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.

O IC realça que, no ano passado, levou a cabo perto de 30 obras de recuperação. Entre as quais destaca a manutenção das paredes exteriores do Farol da Guia e Capela de Nossa Senhora das Neves, da Santa Casa da Misericórdia e do Templo de Pak Tai, de restauro do Teatro Dom Pedro V e do muro de retenção da Calçada do Teatro, assim como das paredes da Igreja de São Domingos e da muralha do lado oriental da Fortaleza do Monte.