Os filmes que os avós lhe traziam da antiga União Soviética para que não perdesse a ligação ao russo foram o primeiro contacto com o cinema. O pai ajudou a que despertasse para a sétima arte com os as obras de Charlie Chaplin, Sergei M. Eisenstein e de outros realizadores incontornáveis que lhe preencheram a infância. Maxim Bessmertny não é dos que cresceu a dizer que queria ser realizador. Admite, aliás, ter andado um pouco perdido até que percebesse que o cinema era o rumo. Hoje não vive só dos filmes, lamenta, mas vive essencialmente para fazer filmes. Tudo o resto são meios para um fim: o cinema
Texto Catarina Brites Soares | Foto Gonçalo Lobo Pinheiro
Maxim Bessmertny nasceu a 24 de Dezembro de 1988, em Vladivostok, na antiga União Soviética, mas desde os quatro anos que vive em Macau, cidade para onde a família – o pai pintor e escultor, e a mãe pianista – se mudou em 1993. Foi aqui que cresceu, vive e o cenário que escolheu para grande parte da filmografia.
Produtor, argumentista e realizador – fluente em português, inglês e russo – diz que a parte que mais aprecia do processo é quando o filme chega à tela e a audiência reage. “Fazemos cinema para nós, mas também para comunicarmos com o outro, é como uma lente que usamos para primeiro observar e depois transmitir um ponto-de-vista. Ainda estou numa fase inicial e a descobrir de como pode ser o cinema sustentável. Esse é o grande desafio.”
Com mais de uma dezena de projectos finalizados, adianta que já tem mais a caminho. Escusa-se a adiantar detalhes por estarem ainda numa fase embrionária e opta por falar dos últimos: “Dirty Laundry” (2019) e “The Handover” (2020).
“Dirty Laundry” foi um dos títulos escolhidos para ser exibido no festival de cinema online “WeAreOne – A Global Film Festival”, com produção e organização da Tribeca Productions e do YouTube.
A curta fez parte da série “Years of Macao”, exibida na secção de Apresentações Especiais para o 20.° Aniversário da RAEM do Festival Internacional de Cinema de Macau (IFFAM, na sigla inglesa), em 2019. A produção a cargo da jovem realizadora local Tracy Choi, que compilou trabalhos de vários realizadores, venceu o prémio Cinephilia Critics do evento.
“The Handover” estreou em Maio, na Cinemateca Paixão, por ocasião da abertura do Festival Panorama do Cinema de Macau 2020. O filme conta a história humorística de um casal que corre contra o tempo para mudar de apartamento e devolver as chaves ao senhorio a horas.
A produção da curta-metragem de 25 minutos, a mais longa que realizou até hoje, levou cerca de um ano. Quatro meses para apresentar a proposta ao júri de ‘Macau – O Poder do Cinema Local’, o tempo do guião de 27 páginas, quatro dias de filmagens e cerca de três semanas de edição.
O argumento foi escrito por Maxim e Jorge Cordeiro dos Santos, e relata uma série de percalços em ritmo acelerado com o casal a tentar resolver tudo dentro do prazo, acabando por se dispersar frequentemente com questões não relacionadas com a mudança.
A sucessão de incidentes, que vão alternando entre a história de um e do outro ao longo do filme, bebeu do antigo cinema italiano das décadas de 1950 e 1960, e da conhecida como ‘Commedia all’italiana’. Fervoroso admirador do cinema italiano, destaca os realizadores Federico Fellini, de quem ressalta “Os Inúteis”, de 1953, e Michelangelo Antonioni. “Sou um enorme fã de cinema italiano, sobretudo dos anos de 1930 e 1940. Foi uma fase fantástica.”
Estilo
Até hoje só realizou curtas-metragens por ainda não ter encontrado uma história que merecesse mais. Refere que o cinema e a vida se misturam, e como um acaba por levar ao outro, quanto mais se vive mais haverá para contar. “Portanto, não tenho pressa para fazer uma longa-metragem. Se vou exigir mais de uma hora do tempo de uma pessoa, é melhor que tenha algo importante para lhe dizer”, brinca.
A ficção também tem sido o registo mais recorrente ainda que já tenha realizado dois documentários – “What’s Your Art” (2017), um mini-documentário dedicado a personagens excêntricos residentes em Macau; e “The Douro Boys: Winter” (2019) sobre cinco produtores de vinho portugueses.
Apesar do estilo ficcional ser mais proeminente, Maxim rejeita gavetas já que, explica, acabam sempre por ser simplistas. “No fundo, tudo são narrativas, formas de contar uma história. Um documentário também tem um ponto-de-vista, uma mensagem, um tema. Nunca é a repetição fiel da realidade. Se prefiro a ficção? Sim, é talvez o registo em que desfruto mais.”
As ideias vai buscá-las ao dia-a-dia, ao que ouve e vê, confirmando mais uma vez o que já tinha dito: vida e ficção confundem-se. “Às vezes, basta uma história que ouvimos ou um objecto que vemos.” O formato, confessa, também ajuda, já que uma curta é assim conhecida precisamente por ter pouco tempo. “Estamos literalmente a contar um poema.”
A maturidade fez com que ganhasse confiança e fosse dando cada vez mais atenção ao argumento, à estrutura do guião e aos personagens, que resultou em histórias mais trabalhadas. “No início, experimentava muito.”
Como exemplo, refere “Death of a Parrot” (2017) dedicado ao avô, que é também o protagonista. “Foi outro exercício. Tinha um orçamento muito reduzido, como acontece, aliás, na maioria dos meus filmes. Queria explorar o conceito de assassini. É um filme mudo, a preto e branco. Gosto muito da parte surrealista do cinema.”
Para a história – o segundo filme mudo do realizador – Bessmertny inspirou-se no romance “Baudolino”, de Umberto Eco, em que um assassino é contratado por causa do vício do ópio.
No filme do jovem cineasta local, “um guloso viciado em uvas”, representado por Kelsey Wilhelm – amigo e actor recorrente nos seus filmes –, é barrado de entrar no jardim das delícias e só poderá regressar se fizer um favor ao administrador do lugar, personificado pelo avô Nikolai, na altura com 71 anos. A banda sonora, também da autoria de Kelsey Wilhelm, mistura excertos sinfonia n.º 3 de Gustav Mahler.
“Esta é a minha fase inicial. Mais tarde descobri a importância e a beleza de contar uma boa história, e foi quando realizei ‘The Great Debt’.”
Nas filmagens filmou com uma objectiva grande-angular Kipnotik, usada pela primeira vez na década de 1960 pelo realizador russo Mikhail Kalatozov, no filme “Soy Cuba”.
A história, de três minutos e que surgiu por causa de uma anedota que alguém lhe contou sobre a crise financeira na Grécia, gira em volta de uma única nota que paga a dívida de toda a gente e acaba nas mãos originais. “Nos tempos actuais, seria o que se chama de pacote de salvamento, já que cobre todas as dívidas. É uma curta de humor negro.” O filme volta a ser protagonizado por Nikolai Kramarev e Vera Kramarev, os avós maternos, repetindo uma solução que acabou por se tornar uma marca no trabalho do artista.
Recorrer a actores não profissionais é outro dos traços da filmografia de Maxim Bessmertny, que convida quase sempre amigos, familiares e conhecidos, além do elenco que recruta em castings. “Li recentemente que nunca se deve fazer filmes com amigos e família. Discordo completamente. Não há tempo numa curta. Temos de ir buscar toda a gente que conhecemos. Depois treinamos, treinamos, treinamos até se chegar ao ponto desejável. O casting acaba por ser uma ajuda. Participa muita gente que gosta de cinema e dá para perceber quem é mais adequado para cada situação.”
Ainda que goste do desafio, assume que acaba por ser uma solução para as limitações de orçamento – nunca avultado – e de Macau. “É a alternativa quando se vive numa cidade onde a indústria não tem uma dimensão significativa.”
Até agora, tem resultado. Ajudou a prática que ganhou enquanto trabalhou num resort da cidade, para o qual foi contratado para realizar os vídeos da empresa que tinham como actores os funcionários do empreendimento.
O início
Foi também com esta experiência que a vontade de contar histórias através da imagem começou a ganhar peso e que Maxim passou a encarar o cinema de forma mais séria. Em vez de se limitar a cumprir o previsto, procurava escrever pequenos guiões mais criativos. “Por exemplo, uma versão Tarantino de um vídeo anti-tabaco.”
Recorda que foi quando começou a ver muitos filmes, numa média de um por dia, e foi assim que percorreu a história do cinema desde os anos 1920 até à actualidade. “Queria aprender tudo. Fui muito autodidacta. Foi um período muito importante porque me deu confiança. Tinha de trabalhar com os recursos humanos da empresa, eram 7000 trabalhadores, e tinha de os seleccionar, treinar, dizer-lhes o que tinham de fazer, como se comportar e expressar. Agora que olho para trás, não gosto da edição e filmagem que fazia, mas foi uma experiência muito importante.”
Aos fins-de-semana, costumava pedir a câmara emprestada para filmar projectos próprios e assim realiza a primeira curta-metragem. “Live” (2011) marca a estreia mais profissional de Maxim e é com a curta que concorre ao Rush48, um festival de curtas-metragens organizado pelo Instituto Cultural de Macau, no qual voltaria a participar no ano seguinte, com “Jog”.
Também em 2012, decide que era hora de investir em formação. Escolhe um mestrado em Produção de Cinema, na Tisch School of the Arts, escola satélite em Singapura da Universidade de Nova Iorque. “Cresci muito nesses anos com tudo o que fui aprendendo e fazendo: desde videoclipes, publicidade, cinema, documentários. Encontrei a minha identidade nos mais variados géneros.”
Não esconde a nostalgia quando relembra os anos de formação em Singapura, período em que viveu dos momentos mais marcantes da carreira quando ainda dava os primeiros passos. “Foi o meu primeiro grande momento.”
“Tricycle Thief” (2014) – que produziu, escreveu e dirigiu – teve estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Toronto e foi a primeira curta de Macau a marcar presença naquela que é uma das competições mais importantes ao nível mundial. Ganhou o ‘Gold Award’ para a melhor curta-metragem no Programa de Bolsas para Estudantes da Kodak de 2015, e foi exibido em Macau, Hong Kong e no Médio Oriente. “Foi a primeira vez que tive uma experiência profissional na indústria. Foi espectacular.”
A curta de 18 minutos conta a história de um condutor de riquexós que embarca numa busca desesperada por dinheiro. O filme mostra a Macau nocturna, de cores saturadas, ruas escuras, becos e letreiros de luzes de néon, explorada através de uma viagem guiada pelo protagonista.
De seguida, fala de “Sampan” (2017) outro orgulho e o filme que apresentou como trabalho final de curso, que terminou em 2015, e que teve estreia mundial na cidade natal de Vladivostok, no Pacific Meridian International Film Festival, em Setembro de 2018.
Hoje lembra o desfecho com satisfação ainda que confesse que o percurso foi atribulado, desde logo porque o entusiasmo com o projecto esgotou-lhe as poupanças. “O filme passa-se num barco. Não sei onde estava com a cabeça. Era uma história simples que podia ter contado em qualquer lado e fui parar a uma ilha em Hong Kong, quando até o podia ter filmado em Macau. Não que me queira comparar ao Coppola, mas acabo por encontrar semelhanças com o que viveu quando decidiu filmar o ‘Apocalypse Now’ nas Filipinas, e arrastou o material e equipa para lá. É a minha experiência, mas com muito menos milhões. Tudo o que tinha poupado foi para este filme.”
Não bastando, acrescenta, decidiu gravar em 16mm, o que o obrigou a ir até Los Angeles para a pós-produção do filme, cidade onde já tinha feito os teste prévios da película, da câmara de filmar e das lentes. Motivações estéticas e práticas – o prémio Kodak Gold Award de 2015 valeu-lhe um patrocínio em película – decidiu avançar.
“Foi uma grande loucura e uma decisão um bocado surreal. Metade do orçamento foi assegurado por mim e foi uma insensatez.”
O filme – que partiu da obra de ficção de Ernest Hemingway “The Old Man and The Sea” (“O Velho e o Mar”), publicado em 1952 – relata a história de um pescador, um homem de negócios e a amante que ficam presos nas águas de Sai Kung, nos Novos Territórios, em Hong Kong.
A produção da curta, que contou com uma equipa de filmagens de 15 elementos, foi a mais complexa, garante o autor que teve de contornar e resolver os imprevistos que iam surgindo como os navios e barcos que apareciam em pano de fundo, o ruído e os diferentes cenários, e o tempo que oscilava entre chuva e trovões, sol e céu nublado.
A jornada diária de gravação começava às seis da manhã e terminava às seis da tarde para que cumprisse os prazos que tinha delineado. Valeu-lhe a sorte de uma das grandes casas de aluguer de equipamento cinematográfico nos Estados Unidos ter aceitado ajudar a equipa emprestando uma câmara “Arri 416”, a melhor de 16mm, usada em vários filmes e séries emblemáticas como “The Black Swan” e “The Walking Dead”. A empresa norte-americana também disponibilizou, a baixo custo, as lentes anamórficas, que permitem criar imagens amplas, wide-screen, usadas nos anos 1950.
Hoje mantém que é importante investir, mas, ressalva, “com prudência”. Acabou por encontrar o equilíbrio. Ser freelancer foi a solução para garantir um meio de subsistência e, ao mesmo tempo, disponibilidade e financiamento para o cinema.
A produtora Pontus Maximus Productions, que fundou em 2013, realiza conteúdos audiovisuais, como documentários, vídeos corporativos e publicitários, além dos filmes independentes, e é esse trabalho que lhe assegura o ganha-pão que precisa para o cinema.
“É muito difícil viver só do cinema. Acumulamos sempre outros trabalhos. Ganha-se muito pouco com esta indústria. É assim com a arte em geral. Nestas áreas, temos mesmo de ser criativos. É bom conseguir fazer filmes, mas no fim queremos ter a certeza que podemos fazer mais e não sentirmos a pressão de estar preocupados em garantir que comemos no dia seguinte.”
Um trabalho a tempo inteiro dar-lhe-ia mais segurança, assume, mas menos espaço para progredir. “A parte interessante é ir evoluindo, ir experimentando. Tento nunca pensar muito na questão do dinheiro porque é stressante. Só me preocupo quando o problema aparece. A verdade é que muitas vezes acabamos por conhecer as pessoas certas.”
Macau
Foi também por isso que foi ficando em Macau, onde cresceu e vive agora depois de outras paragens. “Acabou por acontecer”, diz, ainda que afaste a ideia de que é aqui que se fixou. “É tão antiquado esse conceito. Enquanto realizadores, acabamos sempre por ser um bocado ‘vagabundos’. Viajar leva-nos a novos filmes e os filmes obrigam-nos a viajar.”
Ainda assim assume que Macau é casa e é perfeito para se organizar e concretizar projectos já que, por ser pequena e com uma indústria pouco desenvolvida, tem menos barreiras e burocracias. “É mais fácil chegar às pessoas. É muito mais interessante e acaba por ser muito mais desafiante do que outros locais onde o sector já está muito mais desenvolvido. Imagino como foi estar em Los Angeles nos anos de 1930. Não estou com isto a dizer que quero ser um pioneiro do cinema, apenas que é desafiante trabalhar aqui porque a indústria está a dar os primeiros passos. Espero que se continue a experimentar porque assim que existem regras, começa a ser aborrecido, é como um trabalho das 9h00 às 17h00. A parte interessante de fazer um filme é que a cada novo projecto sentimos que começamos um novo trabalho. Desta vez vou vender uvas, depois champanhe, no próximo ano sou canalizador. Cada filme é uma novidade.”
O antes
Mas a história de Maxim não começa com o cinema. A tal fase perdida que falava no início levou-o por outros caminhos. Diz que era um reguila pouco dedicado à escola e que preferia ocupar o tempo com os amigos, a andar de skate e a aprontar. Estudou no D. Bosco e depois na Escola Comercial Pedro Nolasco. Aos 14 anos, porque sentiu ser importante aperfeiçoar o inglês e já com o Reino Unido no horizonte, decide com os pais rumar à Tailândia para estudar numa escola internacional britânica. É onde vive até aos 18, quando parte para Inglaterra para estudar Filosofia.
O curso e a cidade não foram as prioridades, mas alternativas, tendo em conta que as notas impediram que fosse aceite na maioria das universidades britânicas às quais concorreu. Entrou na de Leeds, cidade no norte do país onde confessa ter passado tempos deprimentes – sobretudo pelo contraste do calor a que vinha habituado do Sudeste Asiático com o frio característico do país –, mas também momentos marcantes que lhe mudaram a vida.
Foi aí que formou uma banda de música com quem tinha um clube de cinema. Tocavam heavy metal, bossa-nova, rock latino em bares e viam filmes menos comerciais, como “Fight Club” e “Seven”. “Agora que penso, acho que só víamos David Fincher. Hoje não lhe chamaria um clube de cinema, mas um clube de blockbusters”, brinca.
A banda foi baptizada de “Liquidity” [Liquidez], por causa da crise financeira de 2008. “Era só notícias sobre o assunto, sobretudo na Europa, e nós tentávamos procurar um escape numa altura que foi muito triste.”
Já diz o ditado que “filho de peixe sabe nadar” e o desenlace, assume, não é surpreendente tendo em conta a família criativa em que cresceu. O pintor Konstantin Bessmertny, garante, nunca foi uma sombra, mas sim uma referência determinante no percurso. “É fabuloso ter um pai que é pintor. Os amigos brincam e dizem: ‘Ah, olha o pai do Maxim’. É a piada. É o que é. Fazer cinema já é suficientemente desafiante para estar preocupado com a questão de ser filho de alguém com nome feito. É no cinema que foco a minha energia.”