A fotografia e o vídeo são o que sobressai no trabalho de Benjamin Hodges, mas não se esgota aí, já que o artista inclui outras expressões da cultura visual, como a pintura. Macau não foi ao acaso. As diferenças culturais têm sido o motor do percurso pessoal e profissional do artista norte-americano, radicado na cidade há mais de uma década
Texto Catarina Brites Soares
Benjamin Hodges tem dificuldade em precisar quando começou o interesse pelas artes. “Foi desde o início”, diz, como se a arte lhe fosse quase intrínseca. Recorda que já em pequeno tinha aulas de fotografia e de outras expressões artísticas, mas não foi o que determinou o seu percurso, senão a curiosidade que sempre sentiu na cultura visual. Desde cedo que se tornou um ávido consumidor de cinema e televisão. “Nunca me interessou tanto o motivo do conteúdo, mas a técnica que o permitia”, afirma à MACAU.
Seria redutor limitá-lo ao que parece ser principal no seu trabalho: a fotografia e o vídeo. Ainda que tenha alguma predominância, é apenas uma das vias que tem explorado. O interesse abarca também a pintura e técnicas como o 3D. “A pintura nunca foi o meu foco, mas quando comecei a ter contacto com técnicas digitais, que me abriram a possibilidade de poder desenhar num táblete, comecei a fazê-lo e acabei por me interessar pela forma mais tradicional de pintar, com lápis, pincéis e tintas. Agora é algo a que me dedico.”
O período em que cresceu, salienta, potenciou a versatilidade que o caracteriza. Fez parte da geração que teve acesso a ferramentas como o Photoshop e que contactou com o novo mundo dos média digitais.
O espaço para novas experiências aumentava e Hodges aproveitou-o. A animação 3D, por exemplo, tornou-se num dos campos de trabalho. A tecnologia revolucionou o mundo e a arte, ou a forma de a fazer, mas não assustou o artista que fez dela ofício. “As novas tecnologias abrem-te espaço para outras formas de pensamento, problemas e representações.”
“É verdade que pode parecer uma ameaça, porque implica um processo constante de actualização, já que tudo está sempre a mudar e isso leva a uma certa frustração. Se pensarmos em termos de mercado, talvez possa ser uma ameaça, mas eu não procuro vender o meu trabalho”, acrescenta. “A minha motivação é o processo. Não como tornar o meu trabalho rentável, mas sim como levar a audiência a pensar sobre o que está a ver, a forma como uma foto pode dizer a verdade, mas também pode mentir, e todas estas questões relevantes inerentes à imagem.”
O artista não desvaloriza a dificuldade da sustentabilidade criada pela gratuitidade que a tecnologia permite. Também concorda que a oferta é enorme porque todos podemos filmar, fotografar, criar e mostrar. Ainda assim, reforça os desafios e desvaloriza os obstáculos. “É uma questão de diferenciação. A forma como te queres dirigir ao mundo. É verdade que toda gente tem uma relação com o exterior e isso é fascinante. Mas, especialmente quando ensinamos, percebemos que nem toda a gente tem as mesmas capacidades ou caminhos. A forma que escolhes para te dirigires aos outros é o que te diferencia. O que nos deve mover é a vontade de chegar ao que nos envolve e cativá-lo. É isso que diferencia um artista: o que procura com o seu trabalho.”
“Um dos aspectos que mais me tem fascinado é um maior interesse desta geração mais jovem em expressar-se. Há um fascínio pela técnica. O grande repto da tecnologia tem que ver com a audiência, a distribuição passou a ser gratuita. O teu trabalho anda pelo mundo, online. Já não se trata apenas de encontrar o caminho até ao público, o desafio é conseguir captar a sua atenção.”
O objectivo do trabalho artístico que desenvolve muda em função do projecto, mas há uma linha comum: a atenção ao conteúdo e aos média esquecidos. Explica-se com um dos projectos que expôs este ano na Creative Macau. “Gridding Seac Pai Van”, elaborado a partir de fotografias que encontrou no espaço quando o complexo de habitação pública estava a ser construído, procurou chamar a atenção para o acto de recriar a verdade a partir de um artefacto e de levar a audiência a questionar-se sobre a história por detrás.
“Quis partilhar essa experiência de descoberta individual através da fotografia, mas também levar a audiência a pensar o que conseguia saber a partir deste álbum sem saberem nada de quem estava nas fotos. A curiosidade que desperta o desconhecido.”
“Light of Other Nights” – numa alusão a “Light of Other Days”, de Bob Shaw – é outro exemplo a que recorre para detalhar o que procura com o trabalho artístico. A instalação, exibida no Salão de Outono de 2017 da AFA, foi criada a partir de luzes LED do Grand Waldo, o primeiro casino no Cotai. “Voltei a usar um elemento esquecido, rejeitado para levar as pessoas a olhar novamente para ele e encontrar-lhe histórias.”
Entre culturas
O interesse pelas muitas artes foi sempre acompanhado pelo interesse pelas muitas culturas, e foi o que o tirou primeiramente da Virginia, onde nasceu em 1977, e o levou a outras partes dos Estados Unidos, mais tarde para a Europa e finalmente até a Ásia. “Sabia desta ligação de Macau às culturas europeias e asiáticas, e senti que era uma oportunidade. Tinha muita curiosidade nessa mistura cultural e artística.”
Dos 43 anos que conta, 11 foram passados aqui, repartidos entre o trabalho artístico e a vida académica, que começou no país natal. Até aos 18 anos, estudou na Virginia. Alargou horizontes dentro do país e depois fora. Saiu de casa para o New College of Florida, onde fez um bacharelato de 1995 a 1999. A seguir, e ainda em fronteiras domésticas, mudou-se para Austin, onde completou o mestrado e o doutoramento em Antropologia na University of Texas, entre 2000 a 2006.
É então que ruma à Bulgária, no início dos anos 2000, e testemunha um período particular. “Fiz parte da primeira geração de norte-americanos que podia ir mais livremente para territórios como este depois da Guerra Fria e a consequente separação entre o Este e o Oeste”, contextualiza. “A Bulgária tinha um género de Sillicon Valley da Europa de Leste, e um património cultural imensamente rico.”
A vivência da transição do período pós-comunista do país da Europa de Leste resultaria na investigação “Special Affect: Special Effects, Sensation, and Futures in Post-Socialist Bulgaria”. “Foi muito interessante assistir como as pessoas inventavam uma nova Bulgária”, realça.
Macau foi a paragem posterior, onde voltou a encontrar o que sempre procurou: a diversidade cultural. “A percepção que tenho é que Macau é um espaço do qual se foge ou se procura. E isso vê-se pelas gerações de emigração. Não falo apenas dos portugueses, holandeses e americanos que se seguiram, mas das diferentes ondas de emigração da Ásia. Há aqui uma comunidade única. É uma realidade muito diferente da que um americano está habituado, pelo menos para mim foi.”
“Macau acaba por ser mesmo uma via para que americanos e europeus entendam o que é a Ásia. Esta mistura cultural tem sido muito desafiante e interessante, e tem-me levado a questionar os estereótipos e deturpações que tinha sobre uma Ásia em crescimento.”
A diversidade cultural, visível também na arquitectura da cidade – “onde se encontram as diferentes camadas da história” – é outro dos aspectos que o cativa, e que canaliza para o trabalho que tem desenvolvido aqui. “A história recente de Macau assenta no desenvolvimento do turismo, que tem diferentes camadas. A forma como foi desenhado o Grand Waldo é completamente diferente da de outros projectos do Cotai. Tem sido um privilégio assistir como a comunidade lida com as mudanças inerentes à explosão do sector.”
Hoje sente-se em casa, ainda que saiba que será sempre um estrangeiro. “Macau é uma cidade em que inevitavelmente as pessoas vão e vêm. Mesmo que sejas daqui é provável que não fiques aqui o tempo todo, há muita entrada e saída de pessoas. Agora sinto-me muito mais relacionado e conectado com as pessoas, mas não confundo as coisas. Sou alguém que está em Macau, não estou em processo de me tornar uma pessoa de Macau, e deixa-me feliz pertencer a esta comunidade. Voltámos à ideia de um espaço de transição, muito clara no turismo em que a cidade assenta. Há um sentimento único e constante de uma certa solidão, de outsiders. Em Macau veem-se milhares de pessoas que nunca vimos e que nunca mais vamos ver. E, desse ângulo, Macau é um espaço único para se partir para uma ideia. O que significa pertencer à comunidade?”
O tema serviu de mote para a última exposição que organizou no Creative Macau. “Mountain Surrounded By Sea” foi a mostra em conjunto com a artista Crystal Chan e que coloca em perspectiva essa ideia de Macau como ponto de fuga, além de outros tópicos como a situação de isolamento que se vive mundialmente por causa da pandemia de Covid-19.
O professor
À vida de artista junta a académica. Na Universidade de Macau, onde lecciona como professor assistente no Departamento de Comunicação desde 2008, acumula a posição de presidente do Conselho de Equipamentos e Tecnologia e membro do Conselho Executivo do Departamento. “Há um enorme retorno no acto de ensinar. Na Bulgária, o enfoque era mais na teoria e nos conhecimentos culturais. Aqui debruço-me mais sobre a técnica.”
Hodges sublinha a “enorme responsabilidade” que tem sido fazer crescer o departamento. Elogia as condições – como o de haver um estúdio, financiado pelo Governo, que faz com o que os recursos do departamento se equiparem aos de uma universidade de cinema ou de cultura visual em qualquer parte do mundo – e ressalva que, e perante isto, “não há desculpas”. “Mas isso não é o mais importante. O mais importante é a criatividade e o entusiasmo dos estudantes. Por mais que tenha boas ideias e críticas, a verdade é que funciono como um meio, um elemento que os estimula. Exploro os diferentes meios, mas diria que na Universidade de Macau a atenção está virada para o cinema e produção cinematográfica.”
Vídeo, comunicação, média digitais e fotografia são algumas das disciplinas que lecciona, confirmando mais uma vez que a simbiose entre a técnica e a teoria, a tecnologia e a arte são inalienáveis no que faz.
Das várias áreas de investigação académica a que se dedica – antropologia, cultura visual, novos média e tecnologia, cinema, arte conceptual e fotografia – resultaram já quatro publicações.
A última saiu em 2018, sob o título “Kick the Dead Rabbit: Tuxedos, Movies, and Cosmopolitan Urban Imaginaries in Macao”. Exposições e workshops conta mais de 20. A mais recente no ano passado no Salão de Outono, em Macau, no qual apresentou duas pinturas a óleo. Também foi com obras de pintura que participou no Festival Literário Rota das Letras, no mesmo ano, na mostra “The Shape of Fellings”.
Entre outros eventos na cidade, onde realizou a maioria das exposições em que participou, o trabalho de Hodges já esteve em Cantão, numa exposição fotográfica em 2018; na Bulgária e nos Estados Unidos.
Por agora é em Macau que quer continuar a investir no trabalho e na arte. “Aqui cresci académica e profissionalmente, e também ao nível artístico. Há um enorme potencial em Macau quero explorá-lo, quero fazer crescer a cidade. A forma como Macau pode funcionar para residências artísticas e projectos de produção. Toda gente que vem a Macau pela primeira vez fica fascinado.”
“A vantagem desta cidade é precisamente essa posição única que tem no mundo: é um espaço individual muito apelativo para um artista. É também, por isso, há esse movimento constante de ida e vinda de pessoas. Estou muito optimista sobre a geração mais jovem.”