Próxima Paragem: Marte

(200802) -- BEIJING, Aug. 2, 2020 (Xinhua) -- Technical personnel work at the Beijing Aerospace Control Center (BACC) in Beijing, capital of China, Aug. 2, 2020. China's Mars probe Tianwen-1 successfully carried out its first orbital correction at 7 a.m. (2300 GMT Saturday) after its 3,000N engine worked for 20 seconds, and continued to head for the Mars. (Xinhua/Cai Yang)
Zhang Xiaoping, Yi Xu, Xiao Jing e André Antunes estão desde 23 de Julho – dia em que a Administração Espacial Nacional da China lançou a sua primeira missão com destino a Marte – com os olhos literalmente pregados ao céu. Os quatro académicos da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau estão entre os investigadores e especialistas do Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária que vão analisar parte dos dados que a sonda Tianwen-1 conseguir enviará para a Terra. A instituição de ensino superior tem em mãos 11 projectos de investigação associados à missão ao “planeta vermelho”. A longa marcha da China rumo a Marte passou e vai continuar a passar por Macau 

Texto Marco Carvalho 

A missão Tianwen-1, que, a 23 de Julho, descolou “com total sucesso” a partir da ilha de Hainão, não tem por objectivo primário e imediato descobrir vida – ou indícios dela – em Marte, mas o astrobiólogo André Antunes está a acompanhar a ambiciosa gesta a par e passo. Em Macau há um ano, o investigador português acredita que, caso consiga pousar com sucesso na superfície do “planeta vermelho”, a Tianwen-1 – literalmente “Questões para o Céu” – pode ajudar a clarificar algumas das muitas incógnitas que ainda persistem em relação a Marte. 

“É muito importante para nós, por um lado, conseguirmos compreender melhor quais é que são as condições verdadeiras de Marte, quais é que são as capacidades do planeta para suportar vida”, explica o especialista em microbiologia. “Acho que é muito importante conseguir perceber se os micróbios têm capacidade de se desenvolver em Marte e de serem utilizados para todo o tipo de coisas. A vida na Terra só é possível graças à actividade dos micróbios que cá existem.” 

O que já se conhece sobre Marte não é propriamente promissor. As missões norte-americanas que conseguiram colocar com sucesso rovers na superfície do planeta permitiram traçar um retrato-robô nada entusiasmante: um mundo muito seco, frio, desolador, com uma atmosfera instável e sujeito a níveis de radiação esmagadores. Mas as missões norte-americanas e europeias descobriram também indícios de água, quer à superfície, quer em profundidade e, em parte, a missão pioneira promovida pela República Popular da China vai tentar confirmar algumas hipóteses tidas como consensuais por boa parte da comunidade científica.  

Equipas multidisciplinares da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla inglesa) vão investigar aspectos como a estrutura interna, o ambiente à superfície, a topografia e geomorfologia, o campo magnético, a radiação ou a atmosfera de Marte. “Esta missão comporta vários objectivos científicos”, resume Xu Yi. “Há um estudo de natureza geomorfológica que visa a análise da superfície de Marte, das suas formações geológicas, dos antigos e dos actuais processos geológicos. Vai ainda estudar a atmosfera e, com o recurso a um radar, estudar o que se encontra abaixo da superfície, as partes relativamente profundas do planeta. Esta análise serve para tentar perceber se há gelo e como está distribuído ou mesmo para averiguar a existência de água em estado líquido abaixo da superfície”, explica a professora-assistente do Instituto de Ciência Espacial da MUST. 

Com uma licenciatura em Física, mestrado em Microelectrónica e um doutoramento em Engenharia Computacional, Xu foi uma das investigadoras do Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária que ajudaram a desenvolver uma das componentes mais relevantes da Tianwen-1: a sonda de telemetria separável do Subsistema de Medição de Engenharia Mars Orbiter.  

Mas o contributo dos especialistas da MUST não se ficam por aí. Licenciada em Climatologia, Xiao Jing passou os últimos meses a tentar identificar os locais mais adequados da superfície de Marte para aquela que é a mais arriscada das manobras que a sonda chinesa terá que cumprir para que missão seja bem-sucedida.  

“O aspecto mais importante é o de assegurar que o robô de exploração possa aterrar em Marte em segurança. Só assim podemos estudar a atmosfera marciana, o vento e a turbulência à superfície, no que toca, sobretudo, a fenómenos com tempestades de poeira”, explica a investigadora. Pousar no “planeta vermelho” é um exercício particularmente difícil e, em mais de meio século de missões a Marte, só os Estados Unidos e a NASA conseguiram colocar – por oito vezes – veículos de exploração na inóspita superfície do planeta. 

A manobra é o momento crucial de um longo processo pautado pela perícia e pela incerteza. “Há várias fases. A primeira diz respeito à chamada órbita de transferência de Hohmann e à manobra pela qual uma nave é transferida da órbita da Terra para a de Marte. Este é o primeiro passo. Se a nave conseguir entrar nesta órbita, não vai necessitar de combustível para viajar. Quando a sonda se aproxima do planeta, terá que reduzir a velocidade a que navega para que possa ser capturada pela gravidade de Marte. Este é o segundo passo crucial. Algumas das missões anteriores falharam precisamente neste segundo passo”, elenca Zhang Xiaoping, director-associado do Instituto de Ciências Espaciais, em declarações à MACAU.  

Se tudo correr de feição, a Tianwen-1 aproximar-se-á de Marte entre 11 e 24 de Fevereiro do próximo ano. Ao fim de sete meses de uma longa e incerta viagem, o destino da epopeia deverá ser selado por uma descida rápida. “Só depois de ser capturada pela gravidade de Marte e de conseguir reduzir a velocidade, é que a nave pode tentar descer para a superfície do planeta. São necessários entre sete a 10 minutos, dependendo da velocidade inicial”, explica Zhang Xiaoping. “Este passo é muito perigoso. A maior parte das missões falhou neste preciso momento, porque não é possível determinar a estrutura exacta da atmosfera. Esta é uma das razões pelas quais queremos recolher mais dados. Queremos aceder a dados mais precisos sobre a atmosfera e as tempestades de poeira em Marte”, complementa o académico.  

A exigência da manobra – conduzida praticamente às cegas – e a irregularidade das condições à superfície levaram Xiao Jing a sugerir aos responsáveis pela Administração Espacial Nacional da República Popular da China que os procedimentos de pouso do módulo de exploração sejam direcionados para a “Utopia Planitia”, a maior bacia de impacto identificada até ao momento num corpo planetário: “A área de pouso é determinada pela agência espacial chinesa. Foram identificadas várias áreas preferenciais e, de entre elas, recomendamos uma área específica, onde a actividade à superfície, nomeadamente no que toca a tempestades de poeira, é menor. As tempestades de poeira podem modificar significativamente o ambiente atmosférico. Podem estar na origem de grandes incertezas durante o processo de entrada na atmosfera e durante o processo de pouso. Se a tempestade tiver uma dimensão muito grande, a radiação será bloqueada quase que por inteiro e o veículo de exploração não vai conseguir receber energia solar”, explica a climatologista.  

Se tudo correr bem, a sonda, movida a energia solar e com o tamanho de um carrinho de golfe com 240 quilogramas – vai operar durante cerca de três meses.

  

Uma janela para o planeta vermelho 

O que poderão ter em comum umas remotas salinas do planalto tibetano e a superfície de Marte? As condições extremas de ambos os lugares são vistas por investigadores e cientistas como a chave que pode ajudar a clarificar a mais relevante das questões que o “planeta vermelho” suscita: será que há ou alguma vez houve vida em Marte?  

A existir – ou a ter existido vida – o mais provável é que seja semelhante, em termos estruturais, à que é possível encontrar em ambientes análogos, como os lagos salgados do Tibete ou as salinas de Pedra de Lume, o fenómeno natural que dá nome à ilha cabo-verdiana do Sal. A procura de indícios de vida nos locais mais improváveis é, em grande medida, o aspecto fundamental da missão de André Antunes. 

Uma fatia importante dos processos de investigação que se fazem actualmente na astrobiologia têm a ver com o estudo de ambientes análogos –  ou seja, ecossistemas e ambientes que têm condições parecidas às que podem ser encontradas em Marte ou em outras partes do sistema solar – e o astrobiólogo português está convicto de que zonas aquáticas com elevado teor de salinidade – como é o caso das salinas – abrem uma janela para a realidade de Marte. 

“Do ponto-de-vista de condições ambientais e de extremos que se estuda, os mais úteis são ambientes com salinidade elevada. Isto tem a ver com a expectativa de que, a existir água em Marte, terá uma concentração de sal muito elevada e por isso, para que nós possamos compreender um bocadinho melhor os limites da vida e as suas adaptações, temos de estudar ambientes que têm uma grande quantidade de sal”, explica o investigador. 

Mesmo sem sair da Terra, André Antunes – que chegou a Macau no início de Setembro de 2019 com a incumbência de liderar o processo de estabelecimento de uma unidade de astrobiologia no seio do Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária – planeava abrir, em simultâneo com a missão lançada pela Administração Espacial Nacional da China, várias frentes de investigação à procura de sinais de vida em Marte.  

As restrições decorrentes do surto epidémico de Covid-19 atrasaram os trabalhos de campo programados para salinas de países como Cabo Verde, Portugal ou Espanha. “Cabo Verde tem vários ambientes salinos distintos. Tem salinas que são muito conhecidas na ilha do Sal, na ilha da Boavista, na ilha do Maio. Tem inclusivamente as salinas de Pedra de Lume, que ficam situadas numa cratera de um antigo vulcão. Qualquer tipo de ambiente salino é interessante. Há depois, obviamente, variantes e condicionantes”, ilustra Antunes. “Do ponto-de-vista do sal, dos ambientes salinos, há uma grande variação: o tipo de sais e as condições são diferentes e é, por isso, que nós incluímos, por exemplo, uma localização no Interior da China que fica situada no planalto do Tibete, que é uma zona que tem uma enorme quantidade de lagos salgados e aí, por exemplo, são ambientes que são mais frios, têm uma maior radiação à exposição ultravioleta e, por isso, têm outro tipo de condições que também são bastante interessantes do ponto de vista da exploração de Marte. O grande foco tem sido ligado ao sal”, reitera o académico.  

A eventual existência de água em Marte – em estado sólido ou líquido, à superfície ou em profundidade – é tida como uma hipótese altamente verosímil por parte da comunidade científica e a demanda pelo precioso elemento é um dos objectivos que norteiam a missão da Tianwen-1 ao “planeta vermelho”, como recorda Xu Yi. “No passado, tivemos a hipótese de colaborar com a missão europeia Mars Express. O radar a bordo da Mars Express descobriu água em estado líquido abaixo da superfície e eles querem ver se o radar chinês também consegue descobrir este fenómeno em Marte noutros locais. É fundamentalmente um projecto de colaboração”, assinala a cientista.  

Contudo, a presença de água não é garantia de que haja ou possa ter existido vida em Marte, nem tampouco que o planeta possa comportar vida. A atmosfera extremamente frágil e a radiação continuariam a ser um problema, alerta Zhang Xiaoping. “Tendo em conta as actuais circunstâncias, Marte não é propício à vida. O principal problema é, de facto, a atmosfera. É demasiado frágil. Marte tem muito dióxido de carbono no Polo Norte e no Polo Sul. Se por alguma razão uma massa quente afectar estas áreas, parte do dióxido de carbono ou mesmo todo vai libertar-se para a atmosfera de Marte e isto faria com que a densidade de pó aumentasse”, defende o investigador.  

Apesar das múltiplas incertezas que rodeiam o projecto, Zhang Xiaoping está convicto de que a primeira missão a solo da República Popular da China a Marte será bem-sucedida. O académico reconhece que há muitos factores externos que podem afectar o desenlace da epopeia, mas em termos científicos o esforço desenvolvido é irrepreensível. “Os engenheiros fizeram um esforço tremendo para que a missão tenha sucesso. Mas não podemos estar 100 por cento seguros, porque a possibilidade de acidentes é sempre muito elevada. Muitas vezes os problemas surgem por causa do clima, que é caótico. Temos algumas certeza e eu espero que a missão corra bem. As missões espaciais chinesas com destino à Lua correram sempre bem”, recorda o investigador. 

André Antunes afina pelo mesmo diapasão. Para o astrobiólogo, se a Tianwen-1 peca por alguma razão, é pelo excesso de ambição. “A missão é incrivelmente ambiciosa. Ao contrário do que geralmente costuma ser a norma, em que uma missão a Marte, consiste num módulo orbital que fica em órbita, ou num módulo que poisa na superfície do planeta ou eventualmente associada a um rover que circula pela superfície de Marte, a China optou por enviar três módulos de uma vez”, esclarece o especialista. “Se for, como se espera, bem-sucedida, é , de facto, é um avanço enorme e é um grande marco que a China estabelece. É a primeira missão deste tipo e a China, de facto, poderá afirmar-se como uma grande potência espacial.” 

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Micróbios em rede  

A unidade de astrobiologia do Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária foi criado há cerca de um ano e o surto epidémico do novo coronavírus não ajudou ao seu desenvolvimento, mas o organismo liderado por André Antunes gizou planos ambiciosos, que podem ajudar a levar longe o nome da MUST e da própria RAEM. 

Em termos estritamente científicos, os projectos de campo previstos para salinas de Portugal, da República Popular da China, de Cabo Verde e de Espanha são apenas uma das missões que o centro tem em mãos. O Laboratório para a Ciência Lunar e Planetária quer ainda enviar micróbios para o espaço, em colaboração com outras instituições. “Para além das expedições com recolha de amostras, estamos envolvidos no envio de micróbios para o espaço, quer com missões de satélite de várias agências espaciais, quer através do envio para a própria estação espacial internacional”, salienta André Antunes. “Fazemos também bastante trabalho ligado à interacção entre a bioesfera e a geoesfera: a interacção de micróbios com minerais. Este aspecto é algo muito importante, quer do ponto-de-vista da detecção de bioassinaturas, quer da detecçãoo de indícios da presença de vida. Este é um aspecto com muito potencial para a eventual produção de materiais de construção para futuras bases.” 

A Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau tem avançado para a criação de uma rede lusófona de troca de experiências e de conhecimentos no campo da microbiologia. “É algo que é considerado, inclusivamente, como uma grande prioridade de Macau.”