“O que nos deu o direito de sermos donos de tudo?”

Um mundo sem presença humana. Existe apenas o que resta de uma vida de abundância. Movida pela emergência de reflectir sobre um mundo em crise, a jovem de Macau afasta-se assim da sua primeira série “The Squares”

Texto Catarina Domingues  | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

No telemóvel, Lai Sut Weng tem guardadas imagens de pelo menos três quadros da nova série que está a preparar e que, no momento em que fazemos esta entrevista, não foram revelados ao público. Num deles observamos uma espécie de arena de circo, animais a cercar uma tenda vermelha. “Que animais são? Representam uma ameaça para nós?”, começa por questionar a artista. E prossegue: “A tenda triangular representa aqui o ser humano, com quem os animais já tiveram uma relação de mais profunda coexistência. Mas neste momento, travam uma luta por espaço e recursos”. O vácuo persiste na segunda imagem: três gaiolas vazias, gigantes, que se impõem no que parece restar de uma floresta. Na terceira e última pintura a óleo, encontramos uma sala, inabitada também, e um velho sofá, um pássaro morto entre almofadas, parte de um retrato de família. “Estou a tentar construir um mundo onde o ser humano não exista, onde estejamos à beira do desconhecido. Uma sensação de crise levou-me a pensar neste tipo de questões, no aquecimento global, na luta pelos recursos”, diz em entrevista à MACAU. A transição de Lai Sut Weng para uma nova linha artística, caracterizada pelo “pensar a existência humana”, aconteceu depois de se mudar para Cantão, onde frequenta há dois anos o mestrado em Artes Visuais na Academia de Belas Artes. Nesta viagem introspectiva, e mais pessoal, há uma questão essencial. “O que é que nos deu a nós, humanos, o direito de sermos donos de tudo?”, acrescenta Lai. “A arte não deve deixar de expressar visualmente uma cena, mas deve ter um papel maior, no sentido de permitir às pessoas a abordagem de determinadas problemáticas”, considera.

 

 

 

“Nunca pensei ser artista” Lai Sut Weng lembra-se de desenhar em pequena – “coisas comuns, simples” – mas os planos que tinha para o futuro eram outros: uma carreira como professora, um trabalho num banco ou numa agência de marketing. “Um emprego comum”, resume a artista, que considerava na altura essa a única forma de assegurar um rendimento mensal. “Antes de entrar na universidade nunca pensei ser artista”, reforça. Mas ainda no secundário, Lai começou a frequentar aulas de pintura, uma das actividades extracurriculares da Escola para Filhos e Irmãos dos Operários, estabelecimento de ensino na zona do Fai Chi Kei. Foi aí que se cruzou com Wong Soi Lon, professor e artista de Macau. “Falámos sobre arte, ele apontou-me caminhos, inspirou-me a seguir a criação”, relembra agora a jovem, explicando que acabaria por ingressar na licenciatura de Artes Visuais, vertente Pintura a Óleo, no Instituto Politécnico de Macau. “Senti que tinha talento, que não o devia desperdiçar e que tinha mais interesse em artes do que na área dos bancos ou do marketing e, por isso, decidi dar uma hipótese”, conta. Nesses tempos universitários, Lai Sut Weng deu início à série de pinturas a óleo “The Squares”, pela qual hoje é mais conhecida. Nascida em Macau, a artista estava interessada em desenhar a cidade porque, como diz, “a paisagem é a representação mais directa de um lugar.”

Lai subiu então ao topo da Fortaleza do Monte, observou de longe uma cidade velha, casas de telhados de zinco, que se materializaram em quadrados. “Gosto dos efeitos visuais dos fragmentos”, aponta a artista, justificando o nome da série. Em “The Squares”, distinguimos paisagens e edifícios de Macau, mas à medida que nos aproximamos dos quadros, apercebemo-nos que as imagens vão ficando ligeiramente desfocadas. Isto porque na obra, Lai trata também a indiferença. E este não é apenas um retrato da cidade, mas da mudança. São lembranças passadas, ignoradas pelo tempo. “Fui buscar referências ao impressionismo e ao cubismo” Em Outubro de 2016, a artista estreou-se a solo em Macau com a série “The Squares” na exposição “Interposition – Works by Lai Sut Weng”, apresentada pela Art For All Society no espaço Macau Art Garden. Mas a primeira exposição individual da artista aconteceu fora, mais precisamente em Portugal. Com a pintura a óleo “Ruínas de S. Paulo” venceu o “Prémio Fundação Oriente/Artes Plásticas 2014”, que a levou a Lisboa, onde fez uma residência artística de um mês e inaugurou uma mostra individual na Galeria Arte Periférica, onde apresentou 10 obras. “Torre de Belém” foi um dos três quadros que pintou durante esta residência. Sobre a criação, nota: “Neste trabalho dos quadrados, fui buscar referências ao impressionismo e ao cubismo. No cubismo, é comum retratar os diferentes lados do edifício, a parte frontal, de trás e os lados da estrutura. Já em relação às cores, as minhas referências são do impressionismo – do lado que recebe mais luz, usei cores mais quentes, atrás mais frias”, refere a artista, explicando ainda que, neste trabalho, optou por uma “abordagem mais informal, em oposição à digitalização, que é algo mais racional e estrutural”: “Não escolhi quebrar estruturalmente o lugar, como no efeito mosaico no Photoshop, mas optei por dividir o prédio de uma maneira mais informal”, diz. “O meu estilo antigo estava mais amadurecido e abandoná-lo não é fácil” Com a série “The Squares”, Lai admite que “estava mais focada na expressividade e no efeito visual das pinturas”. Para transitar para outro género de trabalho teve de abandonar a zona de conforto: “Não deves ter medo de mudar, deves aceitar quem és. Mesmo que o estilo antigo e o actual sejam muito diferentes, é a forma que eu tenho de me expressar. O estilo anterior estava mais amadurecido, tinha um mercado maior e abandoná-lo não é fácil. O novo não tem aceitação de tantas pessoas, porque o valor estético não é reconhecido por tantas pessoas, mas quero manter-me verdadeira comigo própria, não tenho medo de mudar”, nota. Nesta nova fase, em que a artista de Macau confronta a existência humana (e a sua própria existência), o pintor Edvard Munch é uma referência. Lai volta agora ao telemóvel para mostrar “Anxiety”, obra pintada em 1894 pelo artista norueguês. Faces de desespero revelam um estado depressivo. “Consegues encontrar aí símbolos específicos, uma sensação de perturbação emocional. A estranha imagem dos quadros de Edvard Munch é provavelmente uma forma de entender o mundo, é a forma como ele o encara. Isso atrai-me”. A meses de terminar o mestrado em Cantão, Lai assume que quer regressar a casa. E dar uma hipótese à arte. “Vou tentar, se os meus planos falharem, posso ser professora.”