Texto e Foto Paulo Barbosa
O sistema de saúde de Macau está a enfrentar desafios inéditos, com a população a envelhecer, uma taxa de natalidade crescente e o volume de turistas a aumentar de ano para ano. Foram estes os motivos que levaram a Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla inglesa) a decidir, com o aval do Governo, abrir a primeira escola médica em Macau, que vai começar a operar já no ano lectivo que se avizinha.
As expectativas são grandes para o curso que terá a duração de seis anos, incluindo cinco anos de aulas regulares e um de prática clínica. Em entrevista à MACAU, Manson Fok, reitor da Faculdade de Ciências Médicas da MUST, confirma que se espera que o curso, ao dar prioridade a alunos locais, vá liderar o treino da primeira geração de médicos formados em Macau. Demonstrando o interesse intenso que o curso está a suscitar, Manson Fok confirma que já foram entrevistados centenas de candidatos para apenas cerca de 50 lugares disponíveis.
Durante a entrevista, Fok, que também lecciona medicina em Hong Kong, para além de ser cirurgião e gastroenterologista, realça que o curso será crucial para assegurar a sustentabilidade do sistema médico local.
Quantos estudantes se candidataram ao primeiro ano académico do programa do bacharelato de medicina e cirurgia (MBBS)?
Ainda continuamos no processo selectivo. Já entrevistámos [até finais de Junho] cerca de 150 estudantes locais, alguns deles já licenciados por outras universidades. Vários estão a estudar medicina em locais como o Interior do País e já vão no segundo ou terceiro ano. E querem começar de novo aqui. Fico satisfeito que eles achem que temos um bom currículo, que os atraiu.
E quanto a estudantes vindos do exterior?
Entrevistámos alguns, incluindo um de Portugal. O currículo é todo em inglês e seguimos um programa de estudos internacional. Também temos cerca de 200 candidatos do Interior do País.
Há um número muito elevado de candidatos. Quantos podem aceitar?
Estamos a começar uma nova faculdade. O nosso objectivo é treinar os estudantes de forma individualizada, com atenção e qualidade. Por isso, não queremos uma turma grande, embora tenha que ter um tamanho razoável para que seja funcional. Pensamos que entre 30 e 50 é uma boa quantidade para os primeiros dois ou três anos. Talvez possamos chegar aos 50.
Nesse caso, serão deixados de fora muitos candidatos.
Infelizmente sim, mas penso que temos um bom currículo e bons professores. Para que o curso seja bem-sucedido precisamos também de bons estudantes, temos que seleccionar os melhores.
Foi dito na apresentação que o curso será prioritariamente para locais. Qual será a percentagem?
Cerca de 50 por cento, mas talvez seja mais e chegue aos 60 a 70 por cento.
Quais são os critérios de avaliação dos candidatos?
Há muitas formas de avaliar e fazêmo-lo de uma forma não tendenciosa. É claro que olhamos para as notas, particularmente em ciências, porque a medicina é exigente. Depois entrevistamos os candidatos. Temos quatro entrevistadores independentes e fazemos questões não apenas sobre porque querem estudar medicina, mas testamos o seu pensamento abstracto, apresentamos cenários para ver como reagiriam. Há diferentes provas para que possamos ter um melhor conhecimento da pessoa. Há quem seja muito bom a estudar, mas depois tenha problemas na interacção com as pessoas. Para ser um bom médico, a comunicação é muito importante.
Optar por um curso leccionado em inglês pode colocar problemas a estudantes da região que não tenha um nível de inglês tão alto.
Fiquei surpreendido porque no caso dos muitos estudantes que entrevistámos e aqueles que seleccionámos, o nível de inglês não é mau. A conversação é fluente. Mas vamos ter sessões especiais todas as semanas para ensinar terminologia médica em inglês. Isso é muito importante.
A maioria dos professores virá de Hong Kong?
Não. Temos em curso uma campanha de recrutamento global de professores, com candidatos de diferentes partes do mundo. Há um número significativo de professores de etnia chinesa. Mas nem todos.
Também virão professores de Portugal…
Em Portugal esperamos fazer mais, porque temos acordos com duas das maiores escolas médicas no país: a Universidade do Porto e a Universidade de Lisboa. Teremos uma relação próxima com eles em termos de ensino e também de intercâmbio de estudantes e estágios.
Para criar uma escola de medicina são necessárias instalações sofisticadas. Nos primeiros anos vão funcionar em instalações temporárias que estão agora a ser construídas…
Julgo que o hardware não é tão importante como o software, ou seja, bons estudantes e bons professores. Os primeiros dois anos do curso são sobre ciência básica, portanto focamo-nos mais no programa de estudos do que nas instalações. Teremos um programa muito bom. Estamos prontos para assinar um acordo com uma das instituições de topo nos Estados Unidos por forma a adquirir o programa de ciência básica deles, com o qual ensinam os estudantes. Vamos ensinar aqui com base nesse programa. Se os nossos estudantes passarem esse programa, terão o mesmo certificado do que essa escola nos EUA.
Isso remete-nos para a questão da certificação. É referido nos prospectos que quem conclua o curso poderá solicitar a certificação para exercer medicina em Macau.
É por isso que a prioridade vai para estudantes locais. A vantagem de estudar aqui é que em Macau há escassez de médicos jovens. Actualmente todos eles tiram os cursos no Interior do País. São formados lá, mas às vezes não entendem o sistema de saúde local. O que esperamos é que a grande maioria dos que formaremos se tornem médicos aqui e iremos investir muito para que isso aconteça.
Mas certamente será importante para muitos deles poderem ser médicos noutras regiões ou países e terem as respectivas acreditações…
O objectivo do nosso currículo também é esse. Está estruturado de uma forma que, a partir do primeiro ano, os estudantes terão um período em que poderão estudar no estrangeiro, ou ir para algumas das universidades de topo na China. Não quero que estudem só aqui. Deixaremos que vão para Portugal e para outros locais com escolas médicas, de forma a poderem aprender e observar diferentes tipos de pacientes. Temos muitos expatriados que estão a vir trabalhar para Macau e trazem diversos géneros de doenças. Numa escola [médica] na China nunca é possível ver este tipo de doentes.
Há quem considere que Macau não tem o tipo de patologias necessário para viabilizar uma escola médica. Como responde a isso?
Se olharmos para a população económica, Macau é muito maior do que isso. Há 35 milhões de visitantes por ano. E agora Macau é parte da Grande Baía e a formação médica está interligada. Os nossos estudantes irão para a Grande Baía para receber formação. Já falámos com Shenzhen, com o Hospital da Universidade de Hong Kong. Eles vão receber os nossos estudantes. Também vamos conversar com a Universidade de Cantão.
Está tudo pronto para começar as aulas em Setembro?
Estaremos prontos em Setembro, embora as infra-estruturas para começar o curso sejam humildes.
Qual é o investimento previsto em instalações?
A forma de ensinar agora é muito diferente do que era. Antes a parte de ciência básica consistia em palestras. Agora, todos os estudantes têm telefones, tablets. Tendem a não ouvir os professores. O ensino tem que ser inovador. A informação está disponível. É mais importante encontrar maneiras de integrar o conhecimento dos estudantes e fazê-lo relevante para os anos de prática clínica. Pretendemos fazer isso e precisaremos de muitos produtos inovadores e integrados. Os custos são altos.
Na apresentação do curso foi referido que haverá várias disciplinas inovadoras, na esperança de formar os “médicos de amanhã”. Pode dar alguns exemplos?
O principal é que não nos focamos nos estudantes passarem exames, coisa que foram treinados para fazer toda a vida. Queremos que sejam bons médicos. Pela minha experiência, os que apenas passam os exames nem sempre se tornam em bons médicos. A formação pessoal é mais importante, portanto passaremos muito tempo focados em assuntos como ética médica ou comunicação. E também em aplicar os conhecimentos em cenários onde existam doentes reais. Mesmo que se disponha de um grande hospital [universitário], os estudantes vão lá ver os doentes e talvez estes não comuniquem tão bem e a informação que se retira seja errónea. Por isso, utilizaremos equipamentos modernos que estão disponíveis. Por exemplo, em anatomia actualmente não usamos cadáveres para fazer dissecação. São antes usados modelos e visualizadas imagens em três dimensões. Nos anos clínicos começaremos com simulações, por forma a que os estudantes sejam capazes de fazer coisas simples, como auscultar um coração. Antes haveria um paciente e 50 estudantes a auscultarem-lhe o coração. Pode-se imaginar que esse doente se sentia terrivelmente. Depois da fase da simulação teremos “doentes profissionais”, a quem ensinamos a forma de responder aos estudantes. Há várias técnicas que são usadas hoje e que são muito diferentes do que era feito antigamente.
O facto de terem o hospital da MUST ajuda?
Neste momento, o hospital é pequeno, mas suficiente para 50 estudantes. Espero que quando estiverem em operação os anos de prática clínica já tenhamos a funcionar uma nova ala deste hospital. Planeamos construir uma nova extensão com 350 camas e esperamos ter isso a funcionar daqui a três ou quatro anos, dependendo da rapidez da aprovação das licenças de construção necessárias.
Há também o plano para abrir um centro de pesquisa médica interdisciplinar para fazer avançar a investigação. Quais são as novidades neste campo?
Já fazemos investigação científica e achamos que é muito importante que a escola médica desenvolva simultaneamente investigação. É também uma boa maneira para trazer [ao curso] professores qualificados, que ensinem e estejam também activos na investigação. Isso também traz maiores oportunidades para os estudantes, porque alguns deles podem não gostar apenas de tratar doentes, podem querer descobrir novos conhecimentos através da pesquisa. Penso que devemos desenvolver as duas vertentes simultaneamente.
As contratações de pessoal docente estão a ser feitas também com base nesse princípio?
Sim, o que eu penso sobre investigação é que não deve ser feita só por fazer, só para publicar mais artigos académicos ou para obter patentes que apenas beneficiam o próprio. O nosso enfoque em investigação é fazer com que seja uma oportunidade de transformar esse trabalho em produtos que possa beneficiar os pacientes: um novo medicamento, tratamento ou aparelho médico. Há uma tendência mundial no momento que leva os professores a não obterem reconhecimento pelo número de artigos que fizeram, mas antes pelo seu impacto real na sociedade.
O que está pensado em termos de estudos de especialidades médicas?
O curso é chamado MBBS e é um bacharelato em medicina e cirurgia. Abordaremos todas as especialidades, incluindo obstetrícia, ginecologia, pediatria, psiquiatria, entre outras. Queremos que os estudantes tenham um conhecimento básico destas especialidades, que seja suficiente para terem uma licença para exercerem medicina.
E se os estudantes quiserem enveredar por uma especialidade médica?
Terão que fazer um programa para especialistas, que neste momento está a ser formulado pela Academia de Medicina de Macau. A prática internacional também é esta. Uma vez que o médico se forma, pode continuar a estudar uma especialidade.
Espera poder oferecer essa formação pós-graduada aqui?
A formação pós-graduada será oferecida no hospital [da MUST] e nessa altura os estudantes já serão médicos em fase de estágio.
Qual é a sua opinião sobre a prestação de cuidados médicos em Macau?
Olhando para as estatísticas, a MUST está a construir um hospital com 500 camas, o Governo está a construir um outro hospital [o Hospital das Ilhas] com 500 camas. Portanto, daqui a poucos anos Macau terá mais 1000 camas de hospital. Não há recursos humanos suficientes e é por isso que estamos a abrir o curso de medicina. Olhando para os serviços públicos, o sistema de saúde de Macau é bom, no sentido em que são providenciados muitos serviços gratuitos, melhor do que em muitos sítios do mundo. Mas acho que os serviços especializados ainda não estão a par com os padrões internacionais que os cidadãos de Macau exigem. Esperamos disponibilizar bom treino médico, bons médicos e, depois, formá-los para que sejam especialistas. Mas isto demorará tempo.
O Governo tenciona tornar Macau numa cidade propícia ao turismo médico, como acontece, por exemplo, em Banguecoque. Acha que esse plano está agora mais próximo de se tornar realidade?
Investir em educação, conferências e turismo médico são passos lógicos para diversificar Macau. Podia criar-se uma indústria enorme, que vá complementar as indústrias do entretimento e turismo. Em Las Vegas, metade das conferências são do sector médico. Podia-se trazer muitos conferencistas e respectivas famílias até aqui. A saúde é muito importante. Se olharmos para locais como a Tailândia e Índia, são locais que desenvolveram o turismo médico com grande subsidiação do governo. E tem sido muito lucrativo, não apenas para as empresas envolvidas, como para o governo, dado que se trazem pessoas com recursos para acederem a serviços médicos.
Este curso será um dos cursos mais acessíveis na área da Grande Baía. Quanto é que custará a propina anual para um estudante local e para um não residente?
Estamos a pedir 55 mil patacas por ano para um estudante local. Para não locais a propina é de 160 mil. Mas o que gastamos por cada aluno será várias vezes mais, especialmente nos anos de prática clínica. Não vamos cortar nos custos, incluindo todos os equipamentos inovadores que estamos a adquirir agora, o currículo [dos EUA] e os professores. Vamos ensinar ciência básica com professores doutorados, de preferência médicos. Em Hong Kong, a maioria destes cursos é ensinada por doutorados que não são médicos, portanto não conhecem a relevância do que ensinam. Neste momento, ensinar anatomia é diferente, ensinamos anatomia cirúrgica laparoscópica e radiológica. Quando observam um CT scam, sabem exactamente o que é anatomia. Isto é diferente do que ensinar com um cadáver. O campo do treino médico está a mudar. É importante que tenhamos bons professores a partir do primeiro ano, embora não seja fácil arranjar médicos que queiram ensinar ciência básica. Pode ser que não consigamos todos, mas pelo menos metade será médicos.
Portanto, o curso será definitivamente não lucrativo?
Sim. E é difícil angariar fundos. Não sei se vamos receber financiamento público, mas espero que as pessoas sintam que isto é importante para Macau. Não é apenas para a MUST, é para Macau e para bem do futuro do nosso sistema médico. Se houver esta percepção, talvez haja patrocínios empresariais para apoiar estudantes e alguns dos professores, para que possamos trazer professores da melhor qualidade.
Fórum lusófono prepara o 50.o evento
O professor Manson Fok é presidente do Fórum Internacional de Medicina Sino-Luso, que tem proporcionado a partilha de informações sobre os avanços da medicina entre médicos de Macau, da China e dos países falantes de língua portuguesa. A iniciativa arrancou em Maio de 2011 e terá este ano o seu 50.º evento. Os encontros discutem temas tão diversos como a biotecnologia, a oncologia ou o tratamento de traumas, sendo realizados em Macau e em diversas cidades espalhadas pelo mundo, tais como Pequim, Manila, Porto ou Pnhom Pehn. “É importante porque Macau é pequeno e não temos a oportunidade de observar casos de doenças mais raras. Por isso, trazemos especialistas que trocam conhecimentos com médicos de topo na China. Os médicos locais beneficiam dos debates e das sessões práticas,” refere Manson Fok.