Foi há pouco mais de um século que o Cemitério de S. Lázaro fechou as portas e transferiu os cristãos aí sepultados para o Cemitério de S. Miguel Arcanjo. Hoje, a Estrada do Repouso, ali perto, é uma das poucas lembranças que mantém viva a existência desse antigo campo-santo. O nome da rua “recorda os mortos que ali repousavam à espera de ressurreição”, escreveu o padre Manuel Teixeira na obra Toponímia de Macau.
São 10 e meia da manhã, o céu é hoje mais azul, chama gente à rua, traz um homem de pijama à Estrada do Repouso – ou Avenida Kiang Wu, que é assim que foi baptizada em cantonês, em honra do Hospital Kiang Wu, ali fundado em 1872.
Ao descer a Estrada do Repouso, ainda o Posto Operacional Central dos Bombeiros, amarelo ocre, estrutura de inspiração neoclássica de 1923 e que está inscrita na lista de edifícios de valor arquitectónico da cidade. Cruzamos então a Rua Coelho do Amaral, a Espectação de Almeida, a Entre-Campos e, mesmo antes de chegar ao Cinema Alegria, viramos à esquerda.
Estamos no Bairro de San Kiu, estrada alcatroada, por onde, no passado, corria o regato Lin Kai. O progresso secou esse pequeno ribeiro, retirou camponeses e agricultores dessas margens, fez nascer novos edifícios. Mas a toponímia do San Kiu preservou todas essas histórias. Na Rua da Barca, por exemplo, atracavam pequenas embarcações, e na Rua da Pedra, operários trabalhavam granito. “A necessidade de conquistar o terreno por meio de expropriações e de aterros para construção de novas e espaçosas vias, e o consequente aformoseamento da cidade, fizeram desaparecer o que havia de mais pitoresco em certos lugares tipicamente chineses cuja existência é, no entanto, ainda recordada nos nomes por que são designadas certas ruas”, escreveu o professor e sinólogo macaense Luís Gonzaga Gomes em 1953 no livro Curiosidades de Macau Antiga.
Travessa da Corda
É aí que encontramos Iau Si Van. Anda pela casa dos 70, veste um casaco que diz New York, vende velharias no Mercado Popular do Lin Kai. Em cima de jornais estendidos sobre o chão, um pouco de tudo: relógios, pulseiras, pedras, agulhas de croché, moedas, notas do passado, dólares de Hong Kong, patacas com a imagem de Camilo Pessanha.
“Antigamente, era aqui que os pescadores cosiam as cordas para os barcos”, diz Iau sobre a origem do nome da Travessa da Corda. Iau recua no tempo, histórias que ouviu os mais velhos contarem. “Os pescadores puxavam as cordas deste local até ao Porto [Interior]. Isto acontecia há muitos anos”, acrescenta.
No início do século XX, a pesca prosperava em Macau e alimentava várias profissões, incluindo o fabrico de cordas. Eram muitos os residentes deste bairro que trabalhavam directa ou indirectamente na indústria pesqueira. Outros dedicavam-se ao exercício da adivinhação, dirigiam preces às divindades veneradas no templo adjacente ao riacho, o Templo de Lin Kai. Esta manhã, à frente desse mesmo espaço sagrado, um grupo de homens reúne-se para celebrar o aniversário de Wah Kong, patriarca deus da ópera cantonense. Desfazem o círculo de conversa, falam à MACAU.
“O nome da Travessa da Corda foi traduzido para português directamente do chinês”, avança Ng Gun Cheung, um dos elementos do grupo, admitindo, porém, que não fala português. “Mas sabemos que há alguns nomes de ruas e locais que foram denominadas de acordo com personalidades portuguesas, como é o caso da Ponte Nobre de Carvalho, que diz respeito a um governador que esteve em Macau.”
Primeiros nomes
Travessa dos Tingidores. Tendinhas com roupa à venda. Um comerciante indiferente à nossa passagem permanece atento a uma série da televisão estatal chinesa CCTV. Porquê tingidores, perguntamos. “Não sei”, responde.
No Beco do Cavalo, o antiquário de Cheong Iok Sim. Um velho relógio de pêndulo está uma hora atrasado. Esculturas, louçaria, um vinil da taiwanesa Teresa Teng, tantas outras coisas.
Depois de se casar, Cheong Iok Sim veio viver para o Bairro de San Kiu. A loja, que funciona há cerca de 70 anos, pertencia ao sogro; as histórias, que ouviu ao longo de mais de três décadas, foram contadas pela sogra. Sobre o Beco do Cavalo diz, sem certezas, que “era porque havia por ali um estábulo”.
Em 1869, quando uma comissão nomeada pelo governo determinou de forma definitiva os nomes das vias públicas da cidade, eram raros os casos em que personalidades portuguesas ou momentos históricos serviam de inspiração. Os becos, travessas, pátios, escadas e calçadas desses tempos tinham nomes como pinga, lenha, plumas, vendilhões, garfo ou cotovelos.
Mas se nessa primeira lista o número de figuras portuguesas era reduzido, o mesmo não aconteceu a partir daí, como constata Kuan Chon Hong num trabalho sobre a toponímia da cidade para a Revista da Administração Pública de Macau. “Prevalecem os nomes de celebridades portuguesas, principalmente as políticas. No caso de denominações com nomes de celebridades chinesas, além de serem inferiores em número, foram figuras não políticas”, revela o autor do artigo, explicando ainda que também “méritos e virtudes” ficaram inscritos nas ruas de Macau, como é o caso da Estrada da Vitória.
Hoje existem 21 ruas com o nome de figuras chinesas, 222 em homenagem a personalidades portuguesas ou estrangeiras e 47 com nomes de santos, de acordo com o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais.
“É parte da história, o nome deve ser preservado”
Travessa do Garfo. Em tempos foi casa de Cheong Iok Sim. “Esta não é uma rua recta como as outras, mas divide-se numa bifurcação”, nota a vendedora.
Metemo-nos por aí. O som da dança do leão, à frente do Templo de Lin Kai, segue connosco. No número 5, quatro homens estão debruçados sobre uma mesa. “Estamos a ver relógios”, diz um deles, Ao Chi Wai.
Ao fundo, entre estantes, um quadro da Praça Ferreira do Amaral. Ainda lá está a estátua do ex-governador, que foi removida dessa rotunda em 1991. Ferreira do Amaral é ainda hoje uma das figuras mais controversas da história de Macau, refere Joe Tang, autor de “Assassino”, obra que ficciona o homicídio, em 1849, do antigo governador.
É na companhia do escritor que visitamos a Rua de Ferreira do Amaral, uma das quatro vias públicas baptizadas com o nome do antigo governador (existe ainda uma praça, uma estrada e um istmo). “No século XVII, esta era uma zona rural, viviam aqui camponeses e diz-se que foi Ferreira do Amaral que construiu esta rua”, explica Tang, referindo, porém, que em chinês, a via foi baptizada em homenagem ao Monte da Guia, localizado ali perto.
“Os residentes chineses só se referem ao nome das ruas em chinês e, por isso, não estão preocupados em saber como se diz em português”, realça.
Joe Tang refere, além disso, que há ainda um grande desconhecimento sobre a história de Macau por parte da comunidade local. Conta que durante uma palestra na Universidade de Macau, apenas um dos presentes soube responder quem era Ferreira do Amaral.
Feminino esquecido
Ali entre a Rua dos Mercadores e a Rua do Matapau, antigo coração do bazar. “É aqui que António Maria Bordalo, um escritor que ninguém conhece faz passar a primeira novela policial da história da literatura portuguesa – não é o `Mistério da Estrada de Sintra´do Eça de Queirós”, salienta o historiador João Guedes.
À entrada da Rua do Matapau, ergue-se um pequeno templo, cores vivas; na parede, duas placas anunciam a “Associação Saudável de Macau” e a “Associação para a Abstenção do Fumo e Protecção da Saúde”. Pelo caminho, à nossa direita, a Travessa Hó Lo Quai; à esquerda, no número 98, uma loja vende pássaros, são rolas e tordos, fechados em gaiolas. Chegamos a uma pequena horta, árvores carregadas de papaias, um frigorífico e poucos sinais daquilo que poderá ter dado origem ao nome desta rua – o matapau é uma planta da família das gutíferas (tangerinas). “Isto foi tudo completamente destruído e hoje ainda nem sequer dá para sentir o flavour daquele tempo”, lamenta João Guedes.
Se o historiador tivesse a oportunidade de baptizar uma rua de Macau escolheria o nome de uma mulher. “As figuras femininas estão muito esquecidas”, nota o jornalista, sugerindo, por exemplo, Harriet Low, americana que residiu em Macau. “Uma parte da história de Macau é conhecida graças a ela, que manteve um diário muito interessante que é quase um jornal. Ela descreveu a vida das comunidades inglesa e americana em 1830 aqui em Macau”, conclui.
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O primeiro cadastro toponímico de Macau
O primeiro cadastro toponímico de Macau data do século XIX quando, em 1869, o então governador António Sérgio de Sousa nomeou uma comissão para classificar as vias públicas.
De acordo com um relatório dessa comissão, que pode ser consultado nas edições do Boletim da Província de Macau e Timor de 26 de Julho e de 2 de Agosto desse ano, a península era composta por 12 povoações, que contavam com um total de 529 vias públicas, entre praças, largos, ruas, calçadas, travessas, escadas, becos, pátios, adros e praias.
Nesta missão de baptizar as ruas de Macau, foram restituídos vários nomes que tinham sido alterados ao longo dos tempos, como é o caso da Estrada de D. Maria II. “A comissão cumpriu ainda outro dever. Sendo certo que os habitantes de Macau folgam sempre em aproveitar qualquer ocasião em que possam manifestar a V. Ex.ª a gratidão que lhe devem, tomou a liberdade de aproveitar também este ensejo para pôr o respeitável nome de V. Ex.ª a uma das vias públicas da cidade, denominando assim a rua em construção à beira do rio com a denominação de Rua de Almirante Sérgio”, escreveu ainda a comissão no relatório apresentado ao governador.
Nova organização da cidade
Mas e o que levou o governo local a classificar as ruas da cidade em 1869? Estefânia Inácio, arquitecta do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), aponta para a chegada do governador João Maria Ferreira do Amaral a Macau, em 1846. “O governador iniciou o levantamento dos censos da população e, por isso, era necessário denominar as ruas. Começou-se a fazer um levantamento por alto e um cálculo geral do número de praças, ruas, avenidas, becos, etc.”
Num artigo escrito por João Botas para o Jornal Tribuna de Macau, o jornalista e investigador nota que a 23 de Fevereiro de 1847, o governador português ordenou ao Senado que mandasse “pôr em todas as ruas, em letras brancas sobre campo negro, o nome que ellas agora tem, substituindo os nomes estrangeiros, se porventura os houver, por outros nacionais, dando-os também às ruas que ora os não tiverem”.
Placas toponímicas
Quando em 1869 o Governo de Macau começa a classificar oficialmente as vias públicas da cidade, fá-lo apenas em língua portuguesa. As primeiras placas toponímicas datam do início da década de 1870. Escritas apenas em português, eram placas de granito, material que “existe em Macau por razões geomorfológicas”, explica a arquitecta do IACM, Estefânia Inácio.
Apenas a partir dos anos 40 do século seguinte – ou seja, sete décadas mais tarde – é que a língua chinesa entra na toponímia local.
Na década de 1980, já perto da transferência de soberania de Macau para a China, as inscrições adquirem a forma que conhecemos hoje, ou seja, os nomes aparecem gravados em azulejo branco e azul. “E a partir da transição, o nome da rua em chinês passa para cima [nestas placas]”, completa a arquitecta.
Hoje existem cerca de 5000 placas toponímicas espalhadas por toda a cidade.
O baptismo das ruas
João Guedes foi contactado em 1995 pelo então Leal Senado para sugerir uma lista de nomes para as novas ruas que iam nascer nos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE). Dos nomes aprovados, o jornalista relembra o do sueco Anders Ljunggstedt e do macaense Carlos D’Assumpção. Desse novo grupo de ruas, foram ainda relembradas várias personalidades chinesas, como é o caso de Xian Xing Hai.
Com a transferência de soberania, o Leal Senado acabaria por ser abolido, dando lugar ao IACM, organismo que tem actualmente a competência de “cuidar das denominações das povoações e lugares públicos” e “criar e assegurar a manutenção do mobiliário urbano e dos sistemas bilíngues de placas toponímicas”, segundo o regulamento administrativo n.º 32/2001, que diz respeito à organização e funcionamento do IACM. No caso das ruas estarem inseridas dentro da zona histórica de Macau, cabe ao Instituto Cultural emitir um parecer sobre qualquer alteração, explica ainda a arquitecta Estefânia Inácio.
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Curiosidades
Artur Rodrigues de Almeida Ribeiro nunca esteve em Macau. De acordo com o livro A Toponímia de Macau, do padre Manuel Teixeira, o nome foi atribuído a esta via porque o então “ministro das colónias sancionou a verba para a expropriação das casas para a abertura da avenida”.
Em chinês, o nome é 亞美打利庇盧大馬路 (lê-se: a mei ta lei bei lou tai ma lou), tradução fonética de “Almeida Ribeiro”, embora seja mais conhecida por 新馬路 (lê-se: san ma lou), que significa “estrada nova”. A Avenida Almeida Ribeiro, principal artéria da cidade, foi concluída em 1918.
A Rua de Pedro Nolasco da Silva, nome chinês伯多祿局長街 (lê-se: pak to lok kok cheong kai), refere-se ao antigo presidente do Leal Senado, Pedro Nolasco da Silva. Antes de ser conhecida por esse nome, chamava-se “Rua do Hospital” porque era aí que estava o Hospital de S. Rafael (hoje o edifício do Consulado de Portugal em Macau). Esta rua é mais conhecida pelos portugueses como “Rua das Mariazinhas”, porque em tempos albergou uma casa comercial com esse nome. Já os chineses habituaram-se a chamar esta via de “Rua da Loja do Cavalo Branco” (白馬行, lê-se: pak ma hong). O padre Manuel Teixeira justifica o nome com a existência naquela rua de um edifício da Firma Fearon&Co. Fearon era cônsul de Hanôver, cuja bandeira era um cavalo branco em campo vermelho, refere Teixeira. Já uma outra versão diz que lojas no local vendiam exclusivamente o whiskey escocês “White Horse”.
Rua da Fonte da Inveja – “Como existem n’aquelas proximidades mais duas fontes, e a água d’esta é reconhecidamente superior à das outras, deu-se à nova fonte a denominação de Fonte da Inveja para, por este modo, significar parabolicamente a superioridade da sua água em relação às outras, figurando ser invejada pelas suas visinhas”, escreveu em 1883 o director das Obras Públicas, Constantino José de Brito, sobre aquela fonte. A Rua da Fonte da Inveja começa na Avenida Sidónio Pais e termina na encosta Noroeste da Colina da Guia. Em chinês dá pelo nome de 二龍喉街 (lê-se: i long hao kai) e significa “garganta dos dois dragões”.
O nome da Rua dos Faitiões é uma tradução do chinês para o português. Escreve o padre Manuel Teixeira no livro “Toponímia de Macau” que “faitião” vem do chinês快艇 (“fai” é rápido; “teang” significa barco ligeiro). “O nome foi dado à rua para comemorar a revolta dos marítimos chineses, a 8 de Outubro de 1846, contra o governador Ferreira do Amaral, por este ter imposto uma taxa sobre os seus barcos”, acrescenta o autor.
A Avenida da Amizade é a artéria mais comprida (cerca de 2900 metros). A Travessa da Chupa é a mais curta (cerca de 4,3 metros). A Estrada da Baía da Nossa Senhora da Esperança é a mais larga (cerca de 41 metros). O Beco da Rede é a mais estreita (cerca de 0,73 metros).