Bienal de Arquitectura de Veneza | A cartada de Macau

A carta de jogo figura como o elemento base do projecto que vai representar Macau na Bienal de Arquitectura de Veneza que inaugura em Maio. Simboliza o rápido crescimento económico, mas vai muito além disso. Manipulada de diferentes formas desvenda espaços públicos com uma singular relação de proximidade e interacção com quem os utiliza.

 

Texto Diana do Mar | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Não foi por sorte ou acaso que a carta de jogo foi escolhida como peça-chave do projecto que vai representar Macau na Bienal de Arquitectura de Veneza. Seleccionada pelo que desde logo simboliza – o rápido crescimento económico–, surge como “nota introdutória” da própria cidade e de cada um dos quatro espaços públicos retratados – curiosamente tantos quantos os naipes de um baralho de cartas convencional –, mas o seu papel é transversal.

“Queremos usar a carta de jogo como elemento em vez dos tradicionais materiais de construção, como telhas ou tijolos, para criar novos espaços através de diferentes configurações”, diz uma breve descrição do projecto da autoria de Manuel Lam, Eddie Ieong, Vong Ka Ian e Benny Chu, que busca conferir à carta de jogo um novo símbolo: pessoas. “Os nossos espaços são construídos por cartas, tal como a sociedade é construída por pessoas.”

Este ano, a Bienal de Arquitectura de Veneza encontra-se subordinada ao tema “Espaço Livre”, “englobando a imaginação, períodos e memórias de liberdade, pegando em ligações do passado, presente e futuro para unir o antigo com o moderno, tendo por base aspectos culturais que advém de tradições continuadas”, segundo o Instituto Cultural (IC). Um conceito que, na perspectiva do júri, o projecto vencedor soube alcançar: “Faz uso de características da cidade e incorpora elementos com valor cultural”, “apresentando o tradicional de uma nova forma”, o que lhe confere “bastante interesse e unicidade”.

Interpretar o conceito de “Espaço Livre” à luz do contexto de Macau para tentar dar à audiência um olhar diferente foi um dos maiores desafios, conta Manuel Lam à MACAU. “O que pode Macau oferecer além dos famosos casinos ou das igrejas, por exemplo? O que faz um espaço de Macau mesmo especial?” A resposta acaba por sair de um exercício de “abstracção”. “Esses ‘espaços livres’ facultam não apenas liberdade em termos físicos, mas também em termos de imaginação” e, neste sentido, “é-lhes imputado um significado mais profundo através do uso – fortuito ou intencional – que os residentes de Macau lhes deram ao longo do tempo”.

Espaços livres

Quatro espaços com essas “características especiais” foram identificados e cada um vai ocupar uma sala no Pavilhão de Macau na Bienal de Arquitectura de Veneza. O mercado foi um deles, porque “o envolvimento das pessoas o torna num lugar peculiar”, explica Manuel Lam. “Sobretudo por causa das elevadas rendas, eles [vendedores] não têm muito espaço para colocar as coisas e penduram-nas no tecto, fazem isso com as roupas, por exemplo. Isso é-lhes permitido, o que acaba por ser interessante e por se tornar numa marca muito característica da rua, criando uma atmosfera diferente”, exemplifica. Para representar essa peculiar realidade, a sala dedicada ao mercado vai ter “um tecto de tecidos”, com camadas de pedaços de pano que filtrando a luz e o som pretendem proporcionar uma “experiência de calma”, ao gerar um ambiente meditativo dentro de uma Macau contrastadamente agitada que chega por via de imagens projectadas.

Numa outra divisão, o espaço do jardim, em concreto, o Lou Lim Ieoc, com uma estrutura composta por faixas de cartas de jogo curvadas a remeter para a ponte com nove curvas sobre o lago do mais tipicamente chinês dos jardins de Macau e um dos raros espaços verdes urbanos. “O que o torna especial acaba por ser a sua história, dado que deixou de ser um jardim privado para se tornar num espaço público graças à acção do Governo”, sublinha Manuel Lam.

Segue-se “uma experiência totalmente diferente” proporcionada pelo terceiro espaço: um complexo de habitação pública. “Cada habitante coloca o que quer na fachada do prédio, cada casa tem as suas próprias coisas. Essa miscelânea confere uma certa característica a esse espaço.” Neste caso, explica Manuel Lam, a equipa recorre a um espelho, dado que o reflexo vai gerar uma fachada repetida, criar uma sensação de espaço infinito, mostrando como “um espaço monolítico pode ser muito individualizado”. Já caixas mais salientes do que outras tentam imitar as gaiolas de ferro que caracterizam grande parte dos edifícios residenciais de Macau.

Escadas, em concreto, as das Ruínas de São Paulo, constituem o quarto espaço livre. “Actualmente são muito diferentes do que eram há 10 ou 20 anos. São como um espaço que foi devolvido às pessoas. Hoje em dia, como o turismo cresceu, tornaram-se instalações, espaços e até palco para actuações e eventos”, sustenta Manuel Lam.

A servir de guia do pavilhão de Macau está, claro, uma carta de jogo. Essa carta inicial reúne os quatro espaços, mas sobreposta por outra, de folha de acetato, deixa saliente apenas um deles, introduzindo a sala em causa. “Tentamos tornar a exposição interactiva”, realça Eddie Ieong, para quem “a experiência se torna mais memorável, até porque é algo se pode levar”, como se de um cartão postal se tratasse.

Principais desafios

O trabalho segue intenso, porque até à abertura da Bienal de Arquitectura de Veneza, ainda há muito por fazer. Os desafios, esses, surgiram logo no momento da submissão da candidatura. “O primeiro foi encontrar a mensagem para o nosso projecto. Saber o que significa ‘Espaço Livre’ em Macau, identificar as suas qualidades, chegar a um acordo sobre o tema; depois pensar nos materiais e fazer uma estrutura estável”, diz Vong Ka Ian, a única voz feminina do grupo. Já para Eddie Ieong, a mais difícil é a fase de preparação. “A maioria das coisas tem de estar pronta aqui antes de ser enviada por barco. Temos passado muito tempo a fazer modelo a modelo, a garantir que está tudo de acordo com as regras…”

Não é pois de estranhar um ligeiro nervoso miudinho quando se fala de prazos. Apesar de serem uma “equipa muito trabalhadora” e da dedicação “fora de horas”, como descreve Benny Chu, travavam uma corrida contra o tempo. Afinal, foram escolhidos em finais de Dezembro para representar Macau, em meados de Fevereiro celebrou-se o Ano Novo Lunar, altura em que as empresas fecham durante vários dias, e o carregamento com destino a Itália tinha largada prevista para Março. Já a equipa segue para Veneza em Maio, dispondo sensivelmente de uma semana para montar o projecto. “Há modelos enormes que temos de construir, duas mãos não chegam”, explica Vong Ka Ian.

Do projecto fica já uma lição aprendida: “a importância do envolvimento público” no espaço, ora na feitura, ora no plano das ideias para que se torne mais útil, por exemplo, e de “o tornar mais orientado para as pessoas”, resume Manuel Lam, para quem representar Macau na Bienal constitui “definitivamente uma pressão”, ainda que, em simultâneo, uma “oportunidade extremamente excitante”.

Eddie Ieong sintetiza o sentimento geral do jovem grupo de arquitectos, com uma idade média de 30 anos, que se junta pela segunda vez em torno de um projecto em comum: “Tentamos o nosso melhor para levar o melhor de Macau a um palco internacional”.

A 16. ª Bienal de Arquitectura de Veneza, um dos mais influentes eventos de arquitectura do mundo, vai decorrer entre 26 de Maio e 25 de Novembro.

 

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Manuel Lam formou-se nos Estados Unidos. Primeiro, tirou a licenciatura em Arquitectura em Berkeley, na Califórnia, depois o mestrado em Harvard. Seguiu-se um estágio na Foster & Partners em Londres, antes de partir para Boston, onde esteve ao serviço da Sasaki Associates. Depois de mais de sete anos de experiência no estrangeiro, regressou a casa e constituiu a Volks Design & Research Consulting, antes de unir forças, já em 2018, com Eddie Ieong para lançar a EdVolks Architecture Design.

 

Eddie Ieong também foi estudar para fora, concluindo o seu mestrado em Arquitectura na Austrália. Após voltar a Macau, trabalhou na Aedas e na JWCC Architecture para se inteirar sobre o que por cá se fazia. Em 2017, co-fundou a Eddie Ieong Architects e, este ano, juntou-se então a Manuel Lam na nova EdVolks Architecture Design.

 

Vong Ka Ian, a única mulher do grupo e a mais jovem, foi para Taiwan estudar. Terminada a licenciatura, em 2013, voltou a casa, iniciando-se na Omar Yeung Architect, onde esteve desde então até ao ano passado, antes de se mudar para a Eddie Ieong Architects.

 

Benny Chu Hou San foi o único do grupo que tirou a licenciatura em Macau, em concreto, na Universidade de São José. Durante o seu percurso académico foi nomeadamente um dos representantes da USJ na Tokyo Designer Week 2013. Depois de terminar o curso, esteve ligado a projectos de design de interiores e na área da hotelaria. Actualmente, trabalha também na Eddie Ieong Architects.