Famílias macaenses | O retrato de uma comunidade no tempo

Jorge Forjaz desenhou uma árvore que pensava ter dado todos os frutos há 20 anos. Mas as famílias macaenses foram como um novelo que se desenrolava à medida que puxava mais um fio. Uma segunda edição da obra, revista e actualizada, nasceu, oferecendo um “retrato refrescado” de quase cinco centenas de famílias desde o século XIX até aos nossos dias

 

 

 

Texto de Diana do Mar

 

Foram anos dedicados à investigação para tentar juntar os ramos dispersos por todo o mundo de uma imensa árvore genealógica, com raízes em Macau, como descreveu Jorge Forjaz, quando apresentou publicamente, em Novembro, a segunda edição, revista e actualizada, de Famílias Macaenses, exactamente 20 anos depois de ter lançado a primeira. Macau era “assunto encerrado” após a primeira edição, em 1996, na vida de um homem que escrutinou famílias em Portugal, em Moçambique ou na Índia, e prova disso é que oferecera toda a documentação que reunira a um arquivo de uma universidade de Los Angeles para ser colocada ao serviço de outras ciências.

Contudo, durante uma visita a Macau, aquando dos 15 anos da publicação de Famílias Macaenses, foi-lhe lançado o desafio de se aventurar por uma edição mais alargada. A primeira reacção foi a de que não se justificava, devido à ausência de novas informações, além de que era preciso pensar do ponto de vista comercial. Jorge Forjaz ainda foi “reflectir” sobre o assunto, mas a resposta não tardaria: “Soube entretanto que tinha dado entrada no Arquivo Histórico de Macau documentação muito interessante que poderia ser útil e depois joguei com um novo dado que não existia quando publiquei a primeira edição: a Internet”.

 

 

“Há 20 anos fiz aquele livro como teriam feito os meus avós! Escrevi milhares de cartas e tive que viajar pelo mundo inteiro para ir ao encontro das pessoas. Percorri todos os países onde havia comunidades… as respostas, quando chegavam, vinham com três a cinco meses de distância, pelo que hoje, quando olho para trás, até me parece impossível aquilo que fiz”, afirma, entre risos, ao telefone, a partir dos Açores, donde é natural.

A publicação em 1996 foi importante porque “fez-se na hora certa”. “Estávamos à beira do fim da administração portuguesa em Macau e, como todos sabemos, o macaense é um produto da história e de uma certa circunstância, pelo que se ambas se alteram a própria sobrevivência do conceito de macaense fica posta em causa”, explica. “Apesar de haver, na altura, um responsável político que dizia, naqueles discursos patrióticos, que os macaenses iam durar para sempre”, a publicação “no momento mais crítico foi talvez a afirmação de uma determinada comunidade num determinado tempo histórico”, argumenta Jorge Forjaz.

 

 

Dado que “sempre procurou fazer a ligação das famílias de Macau com o tronco português”, ou seja, “saber de quem descendiam em Portugal”, o historiador teve de correr os arquivos pelo país inteiro, algo que não sucedeu na segunda edição, pois “esse tipo de documentação está hoje em dia praticamente toda online”, o que lhe permitiu fazer essa parte da investigação sem abandonar a sua secretária, algo fundamental para quem “já não tinha a juventude de há 25 anos” e acumulava “um cansaço natural”.

Quando iniciou a segunda empreitada, a primeira coisa que fez foi comunicar com todas as Casas de Macau espalhadas pelo mundo para tentar obter os contactos dos respectivos sócios. Durante essa etapa, houve quem lhe oferecesse “listas”, mas também quem mostrasse “reservas meio estranhas” em facultar um simples endereço de e-mail de alguém – “isto curiosamente numa altura em que tudo está na Internet e no Facebook”. O passo seguinte foi ir à primeira edição de Famílias Macaenses, “tirar aquele pedacinho que dizia respeito à pessoa em causa e enviar”, esperando na volta do correio – desta vez electrónico – informações que pudessem ser acrescentadas relativamente ao que fora dado à estampa há 20 anos.

 

 

O que há de novo?

A segunda edição de Famílias Macaenses é, portanto, um “refrescado retrato” da comunidade, fruto de um segundo fôlego, que reúne “cerca de 500 famílias, sabendo-se que o mesmo apelido se desdobra em múltiplas outras sem qualquer parentesco entre si”, como faz questão de explicar o genealogista. Integralmente revista e corrigida, a obra não só actualiza o que se passou nas últimas duas décadas nas vidas daqueles que estavam já catalogados, desvendando muitíssimos outros ramos, como traz novas famílias à comunidade, distribuindo-se ao longo de cinco volumes, a somar a um sexto de índices, que junta todos os nomes citados ao longo da obra, contra os três que compunham a primeira.

Não obstante as “centenas ou milhares de actualizações” e dos “80 novos capítulos” que se abriram, o mais “interessante” e “impressionante” da segunda edição é, para o autor, a iconografia. “Graficamente ficou mil vezes melhor”, sublinha o historiador. Isto porque são mais de 3500 fotografias, por oposição às “poucas centenas” que constavam da primeira, o que permite a quem folheia a extensa obra conhecer “a face do macaense”.

 

 

“Devo dizer que foram dois anos de trabalho intenso, durante os quais não fiz outra coisa de manhã à noite. Sem férias, feriados ou fins-de-semana, sem nada”, salienta, sem esconder, porém, o orgulho do seu produto final, uma obra de edição limitada, do Albergue SCM, da qual foram mandados imprimir 200 exemplares após subscrições, com um preço de capa de 3500 patacas.

Para Jorge Forjaz, o conjunto possibilita, em suma, “fazer uma comparação entre o que eram os macaenses há 20 anos e o que são hoje”. Embora esse seja talvez trabalho para outros domínios do saber, como a sociologia ou a antropologia, a distância temporal entre as duas publicações permite “notar a diferença”, observa.

Mas, antes de mais, convém compreender o que é o macaense. Como constata, “há muita prosa escrita” sobre o significado do conceito, tanto por historiadores como por ilustres figuras da comunidade que reflectiram sobre o assunto, e “provavelmente todos têm razão”. A seu ver, de um ângulo mais pragmático, pode-se dizer que o macaense é, “primeiro de tudo, alguém que foi para Macau e ali se radicou”. Não por meia dúzia de anos, mas antes por meia centena, como o padre Manuel Teixeira ou tantos outros vistos como “macaenses de alma e coração”. Contudo, na ciência a que se dedica, “o sangue é fundamental”, pelo que quem não se cruzou e deixou descendência escapou à linha genealógica que foi traçada ao longo das páginas das Famílias Macaenses.

 

 

Na obra de Jorge Forjaz, as famílias encontram-se retratadas maioritariamente a partir do século XVIII, porque um genealogista vai até onde a documentação o deixa ir e “pára no momento em que não existe mais que o permita recuar”: “Foi praticamente impossível reconstituir” laços antes desse período apesar de a presença portuguesa remontar ao século XVI. “Sabe-se da existência de pessoas em Macau e há imensa documentação entre o século XVI e o século XVIII, mas são peças soltas. O puzzle que é a genealogia, a trama familiar, não conhecemos, porque não há dados suficientes. Há um caso ou outro em que é possível estabelecer relação entre pais e filhos mas não passa disso, não se conseguindo fazer uma sequência de gerações”, salienta.

Jorge Forjaz lembra, a este propósito, o vasto acervo que se perdeu quando o tufão de 1874 originou um incêndio na Igreja de Santo António que se alastrou ao cartório. Resultado: “Perderam-se todos os registos de nascimento, casamento e óbito anteriores a essa data naquela que era uma das mais antigas freguesias”.

Não obstante as dificuldades, “a maior parte das famílias macaenses tratadas na obra tem o ‘número um’ identificado, ou seja, a pessoa mais antiga, como alguém que foi de Portugal ou de Moçambique ou da Índia para Macau, que chega, casa e tem um filho, o qual vem então marcar o “princípio”, ao figurar como “o ‘número um’ da família macaense”, explica o historiador.

 

 

Trilhos comuns

Como descreve Jorge Forjaz, esse filho normalmente ficava na terra, onde crescia, arranjava emprego e casava, preferencialmente com alguém do meio a que pertencia, o católico – que caracteriza a esmagadora maioria da comunidade – se bem que tenha havido também protestantes, por exemplo. Basicamente, continua, os macaenses iam casando entre si, até que, de vez em quando, chegava um novo português de Portugal, normalmente um jovem solteiro e “muito cobiçado” atendendo a que “a comunidade era pequena e não havia muitas alternativas”. Regra geral, vinha em comissão de serviço e, ao contrário dos tempos de hoje, “naquela época, dizia-se adeus à família quando se partia para Macau”: “À excepção de uma vaga carta que se escrevia, não havia correspondência para trás e para diante do cidadão comum”.

A “grande renovação” da comunidade macaense fazia-se sobremaneira com a guarnição militar que levava para Macau desde o soldado ao coronel, em síntese, “gente de diferentes níveis e estratos sociais”. A título de exemplo, descreve Jorge Forjaz, um soldado normalmente cumpria a sua carreira, passava à disponibilidade e à vida civil e depois casava localmente; enquanto um coronel, por norma, trazia a família consigo, pelo que eram os seus filhos que iam cruzar-se, por via do matrimónio com uma chinesa ou com uma filha de uma família macaense, “refrescando o sangue”.

Neste contexto, não é, portanto, de estranhar que o 25 de Abril de 1974, que ditou o fim da ida de guarnições militares para Macau, marque o que qualifica como “o início de uma grande crise da comunidade macaense, com a saída e não entrada de mais gente para manter o [seu] nível demográfico”. O segundo momento, como é sabido, foi o da transferência de administração de Macau, de Portugal para a China, em 1999, não fosse “o macaense essencialmente português”, embora haja famílias das mais distintas origens, como americana, francesa, inglesa ou alemã”, sublinha Jorge Forjaz, explicando a razão de ser de muitos apelidos estrangeiros no extenso índice de nomes.

A sua importância não é menor, tanto que o historiador abre um parêntesis: “Essa gente, curiosamente, casava numa família macaense e integrava-a, ou seja, não levava consigo a tradição alemã ou dinamarquesa ou inglesa para dentro da família, optando antes por incorporar a parte macaense, indo às suas festas, participando nas suas tradições, comendo a sua gastronomia. Integravam-se no espírito macaense e, portanto, possibilitando também um refrescamento ao longo de gerações”.

 

 

Pétalas ao vento

Em Macau a comunidade foi sempre relativamente reduzida, mas o mesmo não se pode dizer da diáspora. Encontrar os descendentes foi, aliás, um dos principais desafios de Jorge Forjaz aquando da feitura da segunda edição. “Há 20 anos houve famílias que ficaram completíssimas – até àquela criança que nasceu na véspera de enviar o livro para a máquina! Mas também houve outras que não estavam actualizadas pela simples razão de que eu não conseguira encontrar os descendentes. Era muito difícil, porque se espalharam pelo mundo inteiro. Imagine uma série de pétalas na mão para as quais se sopra, fazendo-as voar, em que cada uma cai para um lado. Assim foram os macaenses”, metaforiza o historiador.

“Os macaenses viveram concentrados em Macau inicialmente, mas depois espalharam-se por Hong Kong, Cantão e toda a costa da China, até Xangai, até chegar lá cima, próximo à fronteira com a Mongólia e a Sibéria. Foram para o Japão, Singapura, Tailândia, havendo, nestes últimos dois casos, famílias muito antigas, cujas origens remontam ao século XIX”, explica.

Depois, “a revolução na China, que culminou em 1949, foi um outro período particularmente importante [na migração], dado que os estrangeiros, incluindo obviamente os portugueses, tiveram 24 horas para sair do país. Muitos regressaram a Macau, mas voltaram a partir, foram para Lisboa, para os Estados Unidos, para o Canadá, para a Austrália…”, sublinha. Por essa razão, complementa, havia muitas famílias na primeira edição em que a informação respectiva parava na década de 1950, pois tinham saído para “parte incerta”. Ora, na segunda edição, com acesso que não tivera antes à documentação dos chamados refugiados de Xangai, o historiador pôde “apanhar” o rasto de muitos descendentes e depois houve muitos desses que lhe escreveram ao tomar conhecimento de que ficaram fora do catálogo. “Esses descendentes deram-me informações desde então, pelo que já estamos a falar de mais duas ou três gerações que faltavam, além de uma série de famílias novas”, explica.

 

Mais do que uma árvore de costados

A genealogia pode “fazer-se de muita maneira”, mas é mais do que “uma árvore de costados” para Jorge Forjaz. A genealogia pode ter só o “esqueleto” – “só com os nomes e a maior parte das pessoas contenta-se com isso” –, também ter “carne” – com datas de nascimento, casamento e óbito – e ainda “sangue” – ao incluir profissões, habilitações literárias, cargos ou distinções importantes. Mais completa fica com “alma” e, essa, chega por via das fotografias, pelo que Jorge Forjaz quis dar às suas Famílias Macaenses tudo o que podia: “ossos, carne, sangue e alma”.

“Quando digo que fulano de tal se casou na Sé Catedral dou-lhe uma ideia muito vaga. Mas quando mostro uma fotografia de casamento quase pode tirar as conclusões sobre quem é aquela gente, seja pelo modo como veste, pelo tipo de convidados que o rodeia, se é da classe média ou de origem abastada…” Para Jorge Forjaz, as fotografias de casamento são mesmo uma preciosidade: “É muito interessante porque encontrei em Macau e entre os macaenses espalhados pelo mundo inteiro mais fotografias de casamento do que as que se encontram na Ilha Terceira, onde vivo. Dos meus avós não tenho uma única e eram pessoas que tinham todas as possibilidades para tirar as que quisessem, mas não tenho. De famílias macaenses, tenho fotografias do século XIX e absolutamente fantásticas!”

Explicação? O historiador arrisca uma: “Não sei se não terá sido mesmo o facto de eles andarem sempre em peregrinação e de, no fundo, Macau já começar a ficar longe e de as raízes se estarem a perder que os levou a ter esse cuidado de deixar tudo registado… é uma interpretação”.

Analisando a evolução das famílias macaenses no fio do tempo, Jorge Forjaz considera também “muito interessante” ver como antigamente eram “muito prolíferas” – era vulgar ter dez a 12 filhos –, continuando “numerosíssimas nas décadas de 1950/60” até que a prática dos nossos dias é a de ter um ou dois filhos. “A mortalidade infantil era enorme e, hoje graças a Deus, caiu quase para zero, pelo que a sensação é a de que antigamente tinham dez filhos para ficar com cinco”, sublinha, indicando que se cruzou com o facto “absolutamente extraordinário” de haver famílias em que nenhum filho chegou a adulto.

A forma como encaravam o luto naquela época é, aliás, um mistério que a “escadaria do sangue”, ou seja, a genealogia não permite desvendar: “Hoje quando um filho morre às vezes há um luto que nunca acaba. O que seria quando iam morrendo consecutivamente? Será que as pessoas sofriam tanto como hoje ou haveria uma espécie de pré-disposição de que eram elevadas as probabilidades de não resistirem? Seria a única maneira, talvez o único mecanismo de defesa, daqueles sucessivos desgostos.”

Para Jorge Forjaz, ficam igualmente por se conhecer os cheiros daquela gente, que correspondem também a padrões de higiene que evoluem com o tempo, e são, por vezes, característicos de um povo; assim como era viver em Macau, com o seu calor e elevada humidade, com indumentária dos séculos XVIII ou XIX. “Não posso imaginar como esses antepassados macaenses viviam no dia-a-dia.”

Jorge Forjaz orgulha-se de poder dizer que, neste momento, “será rara a pessoa que tenha passado por Macau que não saiba dizer quem é”, além de que fotografou as sepulturas de todos os portugueses no cemitério de Macau, no de Hong Kong e até o de Singapura, porque nas campas jaz “imensa informação”, sobretudo para quem se dedica a estabelecer ligações de sangue.

O sangue é um componente vital, mas não basta para ditar a continuidade da comunidade macaense. “Há três maneiras de a manter viva: a língua, a religião e a culinária. Estes três elementos são o cimento que faz a ligação de uma comunidade entre si. Se alguém perde as três coisas deixa de pertencer definitivamente a essa comunidade”, sublinha Jorge Forjaz.

Em contrapartida, “há casos interessantíssimos” na comunidade na diáspora, sendo o da Califórnia, um exemplo de “vitalidade” sem par. “Há centenas de pessoas à volta das Casas de Macau, com uma actividade permanente, que mantém a chama acesa através das suas festividades, contactos com a terra, etc.”, especifica o historiador, para quem é também “muito curioso” ver por exemplo americanos que casam com mulheres macaenses e adotam os seus costumes, participando nas iniciativas. Neste sentido, arrisca dizer que “a sobrevivência do espírito macaense é mais forte hoje na Califórnia do que em Lisboa, porque nos Estados Unidos estão num meio diferente, no qual não se fala a sua língua por exemplo”.

 

Famílias famosas

Como acontece em todo o mundo, há famílias que se destacam, pelos mais variados motivos, na sociedade em que se inserem, e as macaenses não são excepção à regra. “Há famílias que, de facto, atravessam um bocadinho a própria história de Macau, mas o conceito de ‘família famosa’ também evolui com o tempo. As de hoje podem não ter sido as mais prestigiadas há 50 ou 100 anos”, observa Jorge Forjaz. Apesar das ressalvas, o historiador elenca apelidos bem conhecidos e até singulares como “Nolasco da Silva”, uma família antiga de Macau, cujo ‘grosso’ se encontra actualmente espalhado pelo mundo; a “muito grande” “Senna Fernandes”, ou a “muito antiga” “Rodrigues”. Umas ficaram “famosas” pelos “acasos do destino e estiveram sempre na crista da onda, outras porque foram interventivas no meio sócio-económico de Macau, tendo tido sempre um papel mais ou menos importante no desenvolvimento da sociedade”.

“Claro que tudo isto foi mais forte até 1974 e 1999 e vai ter tendência a diminuir com os anos ou a diluir-se naturalmente”, vaticinou.