Quando há várias décadas famílias migrantes chinesas partiram para Macau à procura de novas oportunidades, deixaram tudo para trás. Tudo menos o nome. Unidos pelos mesmos apelidos, estes homens e mulheres acreditam que podem ser sangue do mesmo sangue e descendentes de figuras centrais da história da China, como o filósofo taoista Zhuang Zi ou o almirante chinês que conquistou Taiwan, Shi Lang. Em Macau criaram associações que reúnem pessoas com o mesmo apelido.
Texto Catarina Domingues | Fotos Tiago Alcântara
Ouvem-se pedras de mahjong a bater no tampo da mesa de jogo. O dia mal começou, as pecinhas brancas circulam sonoras sem interrupção e quatro jogadores fecham-se sobre a mesa, como se não dessem pela nossa presença. Um calendário de parede diz que estamos a 9 de Novembro de 2016, é quarta-feira, luzes brancas e frias iluminam o espaço e quadros gigantes de fundo amarelo com fotografias tipo passe dão forma a complexos organogramas da direcção da Associação do Clã Si de Macau. Nas imagens, os homens, em clara maioria, aparecem de gravata vermelha; elas vestem uma camisa branca. Todos, sem excepção, têm o mesmo apelido: Si (Shi em mandarim).
Subimos ao primeiro andar, onde nos encontramos com o empresário Si Siu Fung, presidente desta associação. Caixotes por abrir e quadros pousados no chão conferem ao espaço um carácter quase efémero, embora uma das imagens colocadas na parede nos faça parar por momentos no tempo: entre as quatro figuras históricas desenhadas, encontra-se Shi Lang, o almirante que serviu as dinastias Ming e Qing e a quem é atribuída a conquista de Taiwan no início da década de 1680. Diz-se que Mazu, deusa dos mares e originária de Fujian (conhecida como A-Má em Macau, onde também é adorada) apareceu a Shi Lang, abençoando-o nesta conquista.
A-Má é, por isso, venerada pelo clã Si. Shi Lang ocupa igualmente um espaço quase sagrado nesta pequena sala e na história de cada membro desta associação. “Se olhar para a nossa genealogia, então pode ver que muitos deles [membros] são parentes de sangue, embora existam diferentes linhagens. Pode ser que nas gerações anteriores, os antepassados tenham sido primos, mas a maioria descende destes quatro homens que pode ver na imagem”. Si Siu Fung vira-se para o quadro. Shi Lang tem um chapéu cónico, uma túnica escura de gola redonda; ao alto está também Lu Hui Gong, considerado o primeiro antepassado do clã Si [ver caixa].
Reunir os Si
De novo à mesa de mahjong. Choi Suk Ngai deixou a Província de Fujian em 1985 com o marido, que é quem carrega o apelido Si. Na associação, faz trabalho de voluntariado, vai passando os dias. “Jogamos a dinheiro, fazemos pequenas apostas, umas cinco patacas”, resume Choi, sem nunca se perder do jogo. O presidente da organização mantém-se ao nosso lado, acompanha a conversa e vai completando as curtas respostas da jogadora. “Quando formámos a nossa associação, todas as pessoas de apelido Si se juntaram e, apesar de não sermos parentes directos, temos os mesmos antepassados”, nota ainda Si Siu Fung.
A Associação do Clã Si de Macau, com representações em vários países, foi fundada localmente em 1994 pelo empresário Si Wai Wai, pai do empresário Si Ka Lon. Em Macau, onde vivem cerca de 4000 membros com este sobrenome, o grupo reúne sobretudo chineses originários de Fujian, que chegaram à cidade nas últimas décadas do século passado à procura de melhores condições de vida.
Si Siu Fung refere que o objectivo principal da organização é permitir que as pessoas do mesmo clã “se relacionem, olhem umas pelas outras” e que “participem em diferentes actividades sociais”. Do Governo, recebem anualmente cerca de 100 mil patacas – a ala jovem recebe outras 50 mil – mas o grosso dos fundos vem dos próprios membros e de uma associação de caridade que entretanto foi criada. “A nossa missão é amar a nossa pátria, amar Macau e utilizamos esta plataforma para trabalhar com o Governo, com a nossa terra natal e para ajudar as pessoas a diferentes níveis, como na área da educação”, refere o responsável, sublinhando que a associação se tem tornado “muito influente em Macau”, tendo entre os membros “políticos, funcionários públicos, advogados, médicos e professores”. Um grupo pequeno pertence também ao colégio que elege o Chefe do Executivo de Macau.
Culto dos antepassados
A tradição chinesa do culto dos antepassados fez com que, mesmo ao lado da associação, os membros do clã erguessem em 2011 um templo ancestral. No local presta-se homenagem a todas as linhagens Si. “Em Macau só o clã Ho e o nosso clã têm um templo ancestral”, refere Si Siu Fung.
Quem entra, vê logo à esquerda o andor talhado a ouro utilizado na principal procissão do clã em honra à deusa A-Má; nas paredes de mármore contam-se momentos desta grande família: a chegada do almirante Shi Lang a Taiwan está lá, discípulos de Confúcio que pertencem ao clã Si também; 24 desenhos narram histórias sobre a piedade filial, conceito confuciano que tem por base o respeito pelos pais e antepassados. Si Siu Fung prossegue a explicação: “Temos uma expressão chinesa que diz que ‘a piedade filial é a mais importante de todas as virtudes’ e, por isso, tratamos os nossos antepassados e os nossos pais com respeito e esperamos que os nossos filhos nos possam respeitar também. Este templo é uma forma de preservar na memória todos os nossos antepassados”.
Si Nang Paang, vice-secretário geral desta associação acompanha a visita guiada. Diz que estas associações devem preservar um “lado espiritual”, que, aliás, foi durante muito tempo desencorajado no Interior da China. “Aconteceu na fundação da República Popular da China em que, por razões políticas, não era permitida a existência deste tipo de associações ou qualquer coisa que estivesse relacionada com a tradição.” A construção de um templo ancestral, salienta ainda Si Nang Paang, “estaria muito ligada a um lado supersticioso e espiritual, que as autoridades de então queriam desencorajar”.
Por essa mesma razão, várias organizações do género, incluindo a Associação do Clã Si, foram estabelecidas primeiramente em Taiwan.
Orgulho de um clã
Visitamos Si Ka Lon, filho de Si Wai Wai, fundador da Associação do Clã Si de Macau. No seu escritório, na zona norte da península, cadeirões escuros, estilo chinês, combinam com as escrituras budistas penduradas nas paredes verdes. “Transmitem-me calma”, diz o jovem empresário de 39 anos. A um canto está ainda um quadro com quatro caracteres desenhados a tinta-da-China: lê-se 谦虚谨慎 (qianxu jinshen), expressão chinesa que, numa tradução livre, significa modéstia, prudência, humildade e cautela. Si Ka Lon serve-nos uma taça de chá verde, retoma a explicação: “A pintura é de um calígrafo famoso, foi o meu pai que me ofereceu e não me deixa esquecer como devo olhar a vida”.
Si Ka Lon personifica o membro comum desta associação. Nasceu em Jinjiang, sul de Fujian, mudou-se com os pais, os dois irmãos e a avó para Macau no início dos anos 1980. Viveram primeiro entre um grupo de 20 pessoas, habitaram uma casa de madeira até se mudarem para um apartamento de dois quartos. “O Interior da China não tinha muitos recursos e as pessoas compravam bens em Macau para vender para lá. Foi assim que começámos a ter um melhor nível de vida e com as poupanças montámos o nosso negócio.”
À semelhança desta família, outras pessoas da mesma região foram-se instalando em Macau. Quando Si Ka Lon chegou à cidade, “já aqui viviam umas centenas de pessoas com este apelido”, recorda o empresário, contando que foi este grupo de migrantes de Fujian que esteve à frente da fundação de várias organizações daquela região em Macau, como é o caso da Associação dos Conterrâneos de Jinjiang, a primeira a ser criada, a Associação Geral dos Conterrâneos de Fujian e a Associação do Clã Si em Macau. Estas duas últimas fundadas por Si Wai Wai.
Si Ka Lon, que desde pequeno acompanhava o pai nos trabalhos associativos, vale-se de Confúcio para descrever o objectivo final deste tipo de associações. “Confúcio disse que devemos, em primeiro lugar, aperfeiçoarmo-nos, depois administrar a nossa família e governar o nosso Estado, sendo que esta é a única forma de trazer justiça e virtude ao mundo. Por isso digo que nós temos de gerir o nosso clã de forma a apoiarmo-nos uns aos outros e contribuir para a sociedade.”
Os Chong (Zhuang) e os Im (Yan)
No Bairro do Iao Hon visitamos a Associação dos Indivíduos de Apelido de Chong e Im (em mandarim diz-se Zhuang e Yan). Entramos por um centro comercial antigo, sinais de decadência não afastam a clientela dos pequenos negócios do rés-do-chão, que são cabeleireiros, são estabelecimentos de comidas e bebidas. Caminhos escuros levam-nos até ao primeiro andar, é aí que se encontra a sede da Associação dos Indivíduos de Apelido de Chong e Im, onde um grupo de homens e mulheres já está à nossa espera. O presidente aparece de fato escuro, camisa listrada, e a vice-presidente traz ao pescoço um lenço comprido, o cabelo parece ter sido arranjado com laca.
Sentamo-nos numa mesa longa, temos livros à nossa frente, são obras que contam a história da associação ou de Zhuang Zi, o filósofo chinês do século IV a.C. que está ligado a estas pessoas pelo apelido. Ao longo da entrevista, duas câmaras fotográficas vão estar sempre em movimento, a nossa e a da associação.
Ao contrário do grupo que reúne membros do clã Si, esta organização junta pessoas de dois apelidos diferentes: Chong e Im. O presidente Chong Cing Jyun explica: “Na China havia o ‘tabu do nome’ contra a utilização do nome próprio do imperador e dos seus antepassados. Com o imperador Ming de Han (28d.C – 75d.C), que se chamava Lau Chong (Liu Zhuang, em mandarim), pessoas com o nome Chong tiveram de mudar e muitos escolheram Im”. Por esta razão, realça ainda o responsável, diz-se que aqueles chamados de Chong e Im têm os mesmos antepassados, assim como historiadores apontam que os chineses que se chamam Im vieram de famílias que tinham o apelido Chong.
Só em Macau vivem cerca de 3000 pessoas com estes dois sobrenomes e no mundo o número poderá atingir os 20 milhões, aponta ainda o responsável.
Chong Lai Wa, vice-presidente da organização, é também fundadora da associação local das mulheres de Fujian. Nascida em Jinjiang, na Província de Fujian, chegou a Macau em 1982 e tem-se dedicado a “servir a população”, nomeadamente na “protecção dos direitos das mulheres e das crianças”, trabalho pelo qual foi agraciada em 2015 pelo Governo da RAEM com a Medalha de Serviços Comunitários.
A responsável realça a importância de juntar em Macau aqueles que carregam o mesmo apelido. São “sangue do mesmo sangue”, diz. “Se não estivéssemos ligados pelo sangue, formaríamos outro tipo de associação, como as associações de conterrâneos, mas a verdade é que as pessoas que pertencem ao mesmo clã são muito mais próximas porque estão ligadas pelo mesmo sangue.”
A Associação dos Indivíduos de Apelido de Chong e Im, que foi fundada em 2005 por Chong Man Coi, também é subsidiada pelo Governo de Macau. “Todos os anos recebemos entre 80 mil e 100 mil patacas, mas este ano deverão ser 70 mil porque a economia tem estado em baixo”, revela Chong Cing Jyun, salientando ainda que, de três em três anos, a associação participa numa conferência internacional que junta membros deste clã espalhados por todo o mundo. No ano passado, realizou-se em Macau.
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O primeiro Si/Shi
Diz-se que a primeira pessoa deste clã foi Lu Hui Gong (768 a.C.-723 a.C.), 13.º governador do Estado de Lu, estado vassalo da Dinastia Zhou. Lu deu ao filho o nome de Shi Fu e, por isso, o governador é considerado hoje o primeiro antepassado deste clã. O Estado de Lu, onde hoje se situa a Província de Shandong, é tido como berço do apelido Si/Shi. De realçar ainda que Shi Bo e Shi Zhichang, dois dos discípulos de Confúcio, também eram oriundos desta mesma região. Shi Bo era filho de Shi Fu e neto do governador Lu Hui Gong. Com o tempo, os Si/Shi acabaram por se espalhar por outras regiões chinesas, como Zhejiang, Henan, Jiangsu e Anhui. Até à Dinastia Tang já tinham chegado a Fujian e na Dinastia Song ocupavam sobretudo as províncias de Guangdong e Fujian. Este é um dos apelidos mais importantes nestas regiões.
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O primeiro Chong (Zhuang) e Im (Yan)
Manuscritos antigos referem que as primeiras pessoas de nome Chong/Zhuang eram descendentes do Rei Zhuang do Estado de Chu, Dinastia Zhou, que morreu no ano de 591 a.C. A origem do nome Im/Yan remonta à Era dos Estados Combatentes ao Estado de Yan, sendo o soldado coreano Im Seoi (Yan Sui, em mandarim) um dos seus descendentes. Outra das origens deste apelido está relacionada com a proibição do uso do nome Chong – tratava-se do nome de um imperador – que fez com que muitas pessoas mudassem o nome para Im. Posteriormente, durante as dinastias Wei e Jin, muitos daqueles que se chamavam Im voltaram a trocar para Chong. Os Chong espalharam-se ao longo da história pelas províncias de Guangdong, Fujian, Jiangsu e ainda por Taiwan. Já os Im migraram para as províncias de Jiangsu, Sichuan, Hubei e Guangdong. Estes homens acreditam que são descendentes de figuras importantes da história da China, como o Rei Zhuang, o filósofo Zhuang Zi, o escritor e académico Yan Fu, o calígrafo Zhuang Yunkuan e o empresário de Hong Kong Zhuang Shiping.