Texto Catarina Domingues | Fotos Instituto Cultural da RAEM e Gonçalo Lobo Pinheiro
Tinha uma relação próxima com o mar, pescava, caçava, reunia-se e até tinha sentido de estética. Não se sabe muito mais sobre o homem do Neolítico que habitou Macau. Ou melhor, Coloane. Se hoje é na península de Macau que se concentra grande parte da população do território, a verdade é que não foi sempre assim. A zona costeira de Coloane foi na Pré-história o local privilegiado pelo homem para a fundação dos primeiros povoados. A razão: o fácil acesso aos recursos marítimos.
Evidências arqueológicas de finais do século passado já apontavam para a presença humana nesta região há pelo menos 6000 anos. As novas escavações na Rua do Estaleiro, em Coloane, vêm reforçar a tese de que comunidades se teriam instalado na ilha durante a era neolítica.
Mas os especialistas responsáveis pelo projecto arqueológico não querem arriscar verdades absolutas. E, enquanto a análise em laboratório dos artefactos encontrados não estiver concluída, as conclusões mantêm-se provisórias.
O trabalho de campo, que teve início em 2014, dividiu-se em três fases de escavações (ver quadro) numa área de cerca de 3400 metros quadrados. A equipa de especialistas em Arqueologia, Geologia e Paleoambiente de Macau, Hong Kong e Interior da China só terminou recentemente a terceira fase de trabalho de campo.
Chio Ut Hong, arqueóloga do Instituto Cultural (IC), o organismo responsável pelo projecto, é cuidadosa nas primeiras conclusões. “Precisamos de combinar todos os dados e analisar os artefactos”, diz. A responsável não avança datas e sublinha que este longo processo poderá levar o “triplo do tempo que foi necessário para as escavações”. É necessário, além disso, continuar o estudo comparativo destes fragmentos com os vestígios encontrados nas regiões vizinhas.
Quatro períodos históricos num único sítio arqueológico
Para já, as primeiras análises comparativas com outras cidades localizadas no estuário do Rio das Pérolas, como Zhuhai, Shenzhen e Hong Kong, permitem relacionar alguns dos artefactos encontrados com determinados períodos da história da Humanidade. Chio Ut Hong observa: “Os locais pré-históricos destas regiões localizavam-se em dunas de areia, porque eram áreas mais adequadas à fixação do homem, devido aos recursos marítimos, como a pesca”.
Na segunda fase de escavações, considerada pelos especialistas a mais importante, foram recolhidos cerca de 500 artefactos. Esta foi a primeira vez que os arqueólogos encontraram em contexto de escavação na ilha de Coloane vestígios da Idade do Bronze ou do período que atravessa as dinastias Tang e Song. Trata-se também da primeira vez que foi possível identificar num único sítio arqueológico vestígios de quatro períodos diferentes: Neolítico, Idade do Bronze, período entre as dinastias Tang e Song e dinastia Qing.
Dos últimos tempos da era neolítica, explica Chio Ut Hong, foram desenterradas ferramentas em pedra, que serviriam “provavelmente para cozinhar ou para caçar”. A especialista refere também a descoberta de uma peça em quartzo para adornar um anel. “Sabemos que no período da Pré-história, as pessoas usavam o quartzo (…) e é provável que polissem o material bruto em forma circular, fizessem um orifício no centro para criar uma argola”, nota Chio Ut Hong, referindo que já na altura haveria alguma preocupação com a aparência. Esta descoberta veio dar nova força às teorias avançadas durante campanhas arqueológicas realizadas noutras áreas de Coloane, onde a recolha de lascas de quartzo e cristal de quartzo levou os investigadores a avançar a possibilidade de Hac-Sá ter sido em tempos uma aldeia habitada por pessoas especializadas no fabrico de argolas de quartzo, um mineral abundante na região.
Na segunda fase de escavações foram ainda encontrados fragmentos de um tijolo de forno, fragmentos cerâmicos e de porcelana em vidrado verde do período histórico entre as dinastias Tang e Song. “No passado, foram recolhidos [vestígios desta era] à superfície e não numa camada arqueológica, e, portanto, não sabíamos qual era a sua origem”, relembra a especialista, dizendo que só têm valor arqueológico para Macau os artefactos encontrados no processo de escavação estratigráfica. “Desta vez temos a sustentação arqueológica”, refere.
Importância das novas tecnologias
Depois de concluídas as análises dos fragmentos recolhidos ao longo das três fases de escavações, o Instituto Cultural vai decidir qual o próximo passo a dar. Mas Chio Ut Hong diz que não há pressas.
Na arqueologia, o conceito de investigação tem mudado ao longo dos tempos, refere a especialista, apontando que o planeamento das intervenções deve ser feito a pensar nas gerações futuras. “Acreditamos que não é necessário escavar tudo de uma só vez”, nota a arqueóloga. “O sítio arqueológico é um recurso e devemos deixar que a próxima geração o partilhe, porque hoje em dia temos determinadas tecnologias para as escavações, mas no futuro haverá técnicas mais avançadas”.
Chio Ut Hong realça ainda que os fragmentos de valor arqueológico encontrados vão ser armazenados num local onde a temperatura e a humidade possam ser controladas. Mas a especialista espera um dia ter oportunidade de mostrar ao público as peças e conclusões do projecto arqueológico da Rua do Estaleiro, em Coloane. “Espero que possa ser publicado um livro e que seja organizada uma exposição para contar a história desta área e para que se saiba que, em Macau, já há presença humana há mais de seis mil ou quatro mil anos”.
Pressão do sector imobiliário
A Fundação Macau convidou em 1994 especialistas locais e de Hong Kong para localizarem áreas com potencial interesse arqueológico nas ilhas da Taipa e de Coloane. O estudo veio demonstrar a impossibilidade de efectuar uma avaliação na Taipa devido às construções e aterros existentes. Dos cinco sítios arqueológicos descobertos em 1972 em Coloane, a equipa sublinhou a dificuldade de fazer escavações em Cheoc Van, Ká-Hó e determinadas áreas de Hac-Sá devido ao elevado número de edificações.
“Infelizmente houve campos arqueológicos que saíram da lista para desenvolvimento [de construções], como é o caso da área onde está hoje o conjunto residencial Hellene Garden em Coloane”, nota o arquitecto Carlos Marreiros, que esteve à frente da presidência do Instituto Cultural entre 1989 e 1992.
O arquitecto afirma, porém, que “num ou noutro caso” contou-se com a permissão dos responsáveis pelas obras e pelos terrenos para a realização de escavações arqueológicas antes ainda de se erguerem novos projectos de construção. “Mas a tendência é para evitar que isso aconteça”, vinca Marreiros, constatando que, hoje em dia, existe em Macau “muita pressão do sector imobiliário, porque o terreno é muito caro”.
Na história das escavações de Macau, grupos arqueólogos amadores locais e de fora desempenharam um papel importante. Marreiros recorda um grupo que costumava sair à rua para “perscrutar Macau quando um edifício ia abaixo”. “Houve um caso na Rua Central – a primeira rua direita em Macau – em que durante estas escavações se descobriu muita coisa, como louças de exportação das dinastias Ming e Qing, que entretanto foram classificadas e entregues ao Instituto Cultural.”
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Rua do Estaleiro, Coloane
1.ª FASE
Parque de estacionamento
Foram encontrados vestígios pré-históricos. Investigadores descobriram que o parque de estacionamento estava situado numa zona periférica do sítio arqueológico e decidiram estender as escavações ao campo de futebol.
2.ª FASE
Campo de futebol
Zona central do sítio arqueológico, esta é considerada a fase mais importante do projecto. Aqui foi encontrada grande parte dos artefactos em estudo.
3.ª FASE
Norte do parque de estacionamento e campo de basquetebol
Trata-se também de uma zona periférica da área nuclear de escavações. O trabalho de campo foi concluído e o material está a ser analisado.
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Rua do Estaleiro, Coloane
Enquanto se analisam os vestígios encontrados na terceira fase de escavações, o Instituto Cultural aponta que foi na segunda fase que se descobriram os fragmentos mais importantes – são cerca de 500 artefactos, estruturas e vestígios arqueológicos de quatro períodos distintos: Neolítico, Idade do Bronze, período entre as dinastias Tang e Song e dinastia Qing.
Dinastia Qing
(1644 – 1912)
Os vestígios encontrados remontam a meados e finais da dinastia Qing. Entre os objectos recolhidos nas escavações, contam-se moedas em osso com inscrições em chinês e manchu e estruturas pétreas. Embora a função destas estruturas ainda não esteja definida, Chio Ut Hong, arqueóloga presente no projecto, aponta para a possibilidade de ter sido “utilizada pela indústria para tingir tecidos”.
Período entre as dinastias Tang a Song
(618 – 1279)
Primeira vez que são encontrados vestígios desta era em contexto de escavações em Macau. Fragmentos cerâmicos, fragmentos de um tijolo de forno da Dinastia Tang e um fragmento em porcelana em vidrado verde da Dinastia Song estavam enterrados no local.
Idade do Bronze
(há cerca de 3000 – 2500 anos)
Fragmentos cerâmicos e outras ferramentas de pedra pertencem ao último período da Idade do Bronze. De realçar a descoberta de um pote cerâmico de fundo redondo com padrão de losangos e pontos salientes. “Observa-se um padrão de decoração clássico, que é um padrão geométrico. Na Idade do Bronze, a temperatura utilizada era mais alta e por isso a cerâmica é mais forte do que nos períodos anteriores”, realça Chio Ut Hong.
Neolítico
(há cerca de 4000 – 3000 anos)
Ferramentas de pedra que poderão ter sido utilizadas para cozinhar ou caçar e núcleos de anel em quartzo remontam ao período do Neolítico Tardio. “É provável que polissem o material bruto em forma circular, fizessem um orifício no centro para criar uma argola”, explica Chio Ut Hong, referindo que já na altura haveria alguma preocupação com a estética.
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CRONOLOGIA
44 anos de escavações arqueológicas
1972 – O antigo Leal Senado convida arqueólogos amadores e membros da Sociedade de Arqueologia de Macau para fazer um levantamento na ilha de Coloane. Trata-se da primeira investigação arqueológica realizada em Macau. Foram encontrados artefactos arqueológicos na área de Cheoc Van, Hac-Sá e outras zonas de Coloane. Estudiosos estimam que estes vestígios remontem ao período do Neolítico Médio e Neolítico Final.
1973 – Entre vários fragmentos, foi encontrada uma moeda wu shu do período entre a Dinastia Han e as Seis Dinastias numa sondagem realizada no sítio de Hac-Sá (Sul).
1977 – Resultados de novas escavações no sítio de Hac-Sá (Sul) apontam para a possível existência de dois estratos culturais pré-históricos associados a duas eras: Neolítico Final e Neolítico Médio.
1985 – Ficou confirmada a presença de dois estratos culturais de diferentes eras na zona Sul de Hac-Sá. A presença de fragmentos de cerâmica pintada de pasta fina no estrato cultural mais profundo permite inferir que esta camada poderá ter sido formada há seis mil anos, nos primórdios do Neolítico Médio.
1988 – Numa investigação do Instituto Cultural junto às Ruínas de São Paulo, na península de Macau, foram encontradas ruínas de construções e vestígios cerâmicos.
1990-1992 – São convidados arqueólogos portugueses para uma intervenção arqueológica na área das Ruínas de São Paulo.
1994 – O estudo de localização de potenciais áreas de interesse arqueológico nas ilhas da Taipa e Coloane revela a impossibilidade de efectuar esta avaliação devido ao elevado número de construções e aterros.
1995 – O Centro para a Arqueologia e Arte Chinesas e o Departamento de Chinês da Universidade de Macau procederam a uma nova campanha arqueológica na área de Hác-Sá (Sul). Do primeiro estrato cultural, recolheram-se algumas ferramentas líticas, objectos de jade, material em bruto, lascas de pedra, núcleos de pedra, mais de 200 fragmentos de cerâmica. O relatório aponta para a produção destes artefactos ter ocorrido há mais de 3500 anos.
1995-1997 – Realiza-se um estudo para avaliar potencial arqueológico da Fortaleza do Monte, bem como as funções e o plano arquitectónico original do Colégio de S. Paulo. As ruínas escavadas foram mantidas em exposição.
2006 – Nova campanha em Hac-Sá (Sul) numa área total de 124 metros quadrados. Foram descobertas lascas de quartzo e de cristal de quartzo, peças semi-acabadas e outras ferramentas e fragmentos de cerâmica. É avançada a hipótese de que Hac-Sá terá sido outrora uma aldeia habitada por pessoas especializadas no fabrico de argolas de quartzo.
2010-2012 – Na área em torno das Ruínas de São Paulo foi encontrada uma vala com material de construção e peças de cerâmica – milhares de fragmentos de porcelana azul e branca, incluindo a Kraak, que se estima ser de finais da Dinastia Ming e primórdios da Dinastia Qing.
2014-2016 – Lançamento do projecto arqueológico da Rua do Estaleiro, em Coloane, com escavações no parque de estacionamento, no campo de futebol e no campo de basquetebol. Na segunda fase deste projecto – a mais importante – estavam enterradas estruturas e vestígios arqueológicos de quatro períodos distintos: Neolítico, Idade do Bronze, período das dinastias Tang a Song e dinastia Qing.
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Descobertas nas Ruínas de São Paulo
É um trabalho que não tem fim. As escavações arqueológicas na área em torno das Ruínas de São Paulo já terminaram, mas prossegue a análise em laboratório dos cerca de 4000 fragmentos de porcelana encontrados em 2012. Trinta dessas peças foram seleccionadas para uma exposição de quatro meses no Museu de Macau – “Marcas Históricas de Lingnam: Os mais notáveis achados arqueológicos de Guangdong, Hong Kong e Macau” – que explorou os desenvolvimentos históricos e culturais destes três locais desde o período do Neolítico à Dinastia Ming.
De Macau estiveram em destaque várias porcelanas, incluindo a Kraak, destinada sobretudo à exportação. Esta porcelana, manufacturada entre os finais da dinastia Ming e primórdios da dinastia Qing, era famosa pelos padrões e temas específicos. O nome Kraak surgiu no século XVII, quando alguns dos grandes navios de comércio portugueses (carracas), foram apreendidos pelos holandeses, que os designavam por Kraaken. As carracas transportavam grandes quantidades de porcelana azul e branca chinesa de exportação. Foi a partir dessa altura que se generalizou entre os europeus o termo Porcelana Kraak.
Esta porcelana chinesa tornou-se numa parte importante da rede comercial estabelecida pelos portugueses no Extremo Oriente, sendo a Kraak um dos produtos dessas trocas. A descoberta “evidencia o papel de Macau enquanto porto comercial entre o Oriente e o Ocidente”, diz à MACAU a arqueóloga do Instituto Cultural, Chio Ut Hong, notando ainda que na altura apenas duas regiões do Interior da China produziam uma porcelana “tão fina”. “Acreditamos que seja oriunda de Jingdezhen, na Província de Jiangxi, que é uma área muito conhecida de produção de porcelana.”
A equipa responsável pelo projecto está ainda a tentar perceber qual o destino desta porcelana. “Estudos sobre o comércio demonstram que partiam uma série de rotas de Macau para a Europa, África e Sudeste Asiático, mas ainda não temos a certeza”, diz a responsável.