Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
No almanaque chinês, 12 de Março de 2016 era uma boa data para casar. E quando a mãe de Sam Hou In foi até ao templo cruzar esta data com os dados de nascimento do filho e da futura nora, os deuses disseram que sim.
“Agora que penso sobre isto, e se as nossas datas não fossem compatíveis?”, diz Sara Lo, a nora. “Que acontecia?”, pergunto. Sara solta uma gargalhada. “Oh, não mudava nada”, responde, segura. “Mas não deixa de ser estranho.”
Se os tempos fossem outros, depois de analisada a compatibilidade da união, os chamados oito caracteres dos noivos (ano, mês, dia e hora do nascimento de cada um) seriam redigidos em papel encarnado e colocados num altar, em casa. Ao longo dos dias seguintes, sinais de desgraça, como doenças ou louça partida, poderiam ditar o fim da união.
Embora em Macau a família e a tradição ainda sejam elementos de peso em todo o processo matrimonial, é ao casal que cabe a última palavra. “Houve alguma pressão para se casarem?”, pergunto. “Talvez o meu marido tenha sentido mais, é o único rapaz da família.”
Sara está sentada à minha frente, num café vazio, no centro de Macau. Passaram poucos meses desde que se casou, o dia-a-dia regressou ao normal, com a diferença que já não vive com os pais, mas com Sam. No telemóvel, vai procurando fotografias do grande dia.
“Inicialmente queríamos que fosse em Dezembro, mas o restaurante já estava reservado”, relembra. “Em dias populares é difícil encontrar um local disponível.”
Quando fala em dias populares, Sara refere-se a dias auspiciosos. Alguns exemplos: diz-se que no final do ano é a melhor altura para casar, porque se completa um ciclo; entre Junho e Julho não é uma boa opção – estamos a meio do ano e pode significar separação; Abril é também um mês a evitar, realiza-se o festival Ching Ming, em homenagem aos mortos. Dados oficiais revelam que é sobretudo durante o primeiro e o último trimestre do ano que se realiza a maior parte dos casamentos em Macau.
“Foi um casamento discreto, com poucos convidados”, continua Sara. “Quando era pequena estive em grandes banquetes com cenários de contos de fadas, mas não era o que queria para mim.” A jovem realça, porém, que a união envolveu a organização de uma cerimónia tradicional. “Era importante para a minha família que o fizéssemos”, conta.
O casal levou quase um ano com os preparativos e não dispensou a sessão fotográfica pré-casamento (do inglês pre-wedding). Foi na zona do Mercado Vermelho, explica Sara, enquanto vai mostrando as fotografias, que tem guardadas no telemóvel. Ela calçou umas botas pretas, salto raso, e optou por um vestido branco até aos joelhos; ele levou uma camisa clara, as calças dobrou-as um pouco acima dos tornozelos.
“Não são fotos comuns de uma sessão pré-casamento em Macau”, sublinha. “Mas foi aqui que nos conhecemos, que nos apaixonámos e queríamos captar as coisas reais da vida.”
Há mais de três décadas, também os pais de Sara guardaram o momento. Na altura, as fotografias tiravam-se num estúdio.
Conversa entre casal
Grace Lao e William Chan estão à espera do primeiro filho – vai nascer dois dias depois desta entrevista. Encontramo-nos num restaurante de comida rápida, no bairro do Fai Chi Kei. Casaram-se em Okinawa, no Japão, em Outubro do ano passado. A cerimónia tradicional realizou-se um mês antes, em Macau.
– “Não foi Outubro?”, hesita Grace.
– “Setembro”, responde William. “Em Outubro foi o nosso casamento.”
São os dois jornalistas do canal chinês da Teledifusão de Macau. William acabou de chegar do trabalho, traz um capacete debaixo do braço; Grace tirou férias, aparece com um vestido branco, longo, que salienta a barriga. Quem a conhece sabe que o corpo pouco mudou com a gravidez.
Agora que falamos sobre o casamento levanta-se uma série de questões, aparentemente tão natural para o casal, questões essas que nunca foram discutidas entre quatro paredes. “Sentiram alguma pressão para casar e manter a tradição?”, pergunto.
– “Talvez mais por parte da mãe do William”, começa por dizer Grace. Sorri, olha o marido, espera uma resposta.
– “Na realidade, sim. Apesar deste ser um assunto só nosso, na sociedade tradicional é um evento entre as duas famílias, por isso senti de ambos os lados.”
– “A sério?”, estranha Grace. “Os meus pais nem mencionaram o assunto.”
– “O que quero dizer é que se não realizássemos a cerimónia da forma tradicional, será que ficariam chateados? Satisfeitos? Não sei, por isso, senti alguma pressão.”
Manda a tradição que a família do noivo ofereça dinheiro à família da noiva. A quantia é discutida pelos dois lados.
– “Paguei um valor de cinco dígitos. Na realidade não sou eu que pago, mas são os meus pais que pagam aos pais da noiva”, explica William. Depois vira-se para a mulher, pergunta em cantonês? “Porquê?”
– “É uma espécie de presente, talvez por a família ter criado a filha em circunstâncias complicadas”, responde Grace. “Mas isto são apenas suposições.”
Ao longo desta longa conversa vão surgir muitas outras dúvidas que dizem respeito à tradição e aos rituais do casamento chinês. William acredita que as famílias de Macau começam, aos poucos e poucos, a aceitar outras opções para o casamento dos filhos. Grace não concorda. “É que 90 por cento dos meus amigos continuam a casar-se como manda a tradição.”
As novas casamenteiras
Mak Tse tem vestida uma blusa vermelha, estilo chinês, botões em nó – é esta peça de roupa que costuma utilizar nas cerimónias tradicionais de casamento. Está à hora marcada à porta do centro da Federação das Associações dos Operários de Macau, da qual é sócia. Subimos até ao primeiro andar, um café espaçoso. Da janela vê-se uma das passagens superiores da rua do Campo.
O contacto para esta entrevista foi feito por Sara Lo, que recorreu aos serviços de Mak Tse para a organização da cerimónia tradicional. Na China antiga, Mak Tse seria uma casamenteira, importante figura do casamento tradicional, a quem cabia assegurar que o protocolo da união entre um casal fosse seguido com rigor. A casamenteira conhecia como ninguém as famílias da região onde vivia e recolhia informações sobre homens e mulheres em idade para casar. Além de servir de contacto, contribuía também para o bom termo das negociações entre as duas famílias.
“Apesar do namoro antes do casamento ser hoje uma regra, a timidez dos chineses justifica que a função de casamenteira possa continuar a ser necessária”, escrevem os jornalistas Rogério Beltrão Coelho e Cecília Jorge, autores da obra A Fénix e o Dragão: Realidade e mito do casamento chinês, explicando, além disso, que grande parte dos casais se conhece actualmente por intermédio da nova geração de casamenteiros: familiares, vizinhos, colegas de trabalho ou da escola.
Mak Tse fala de uma divisão de trabalhos e em novos modelos que foram surgindo com o desaparecimento da antiga casamenteira. A esta organizadora de casamentos – é assim que descreve o trabalho que faz – cabe assegurar que o matrimónio continue a ser seguido segundo a tradição.
“Ajudo na entrega dos presentes de noivado e todos os outros procedimentos tradicionais, como a cerimónia religiosa e a cerimónia do chá.” Em Macau, realça, são seguidas diferentes tradições. “A tradição na China varia de região para região e, por isso, sigo os requerimentos dos casais de Macau, conforme a sua origem”, explica a responsável, dizendo que hoje os rituais foram simplificados e dispensam na maioria a cerimónia religiosa tradicional. Já a cerimónia do chá mantém-se.
Na China, as tradições ancestrais foram profundamente afectadas pelas alterações sociais e políticas no país. Também a conquista da mulher de mais espaço no seio da família e da sociedade veio contribuir para as mudanças que se verificaram no casamento tradicional. “Antigamente, quando a mulher entrava em casa do marido depois de se casar, ele punha-se de pé em cima de uma cadeira para ficar mais alto, o que significava que quem tinha o poder em casa era o homem”, diz Zheng Dehua, professor de cultura e história da China na Universidade de Macau.
O académico realça que os novos “elementos ocidentais” que começaram a ser integrados nas cerimónias de casamento apareceram sobretudo no final dos anos 70 do século passado, durante a “política de abertura do país”. “As pessoas começaram a viajar, a ver novas coisas e a trazer esses novos conceitos para a China”. Em Macau, diz ainda Zheng Dehua, “esta influência do Ocidente” é cada vez mais visível.
“Os pais destes jovens que se estão a casar têm à volta de 50 anos e já não conhecem bem as tradições, mas os avós continuam a fazer exigências e, por isso, é necessário alguém que possa guiar a cerimónia”, acrescenta Mak Tse, assegurando que, em Macau, entre 60 e 70 por cento dos jovens recorrem a estes serviços profissionais de consultoria.
Por ano, Mak Tse acompanha cerca de 40 casamentos. Por cada sessão cobra 3800 patacas.
A despedida
Na noite que antecede o casamento, na varanda da casa de família, a mãe de Sara penteia os cabelos à filha. O ritual, geralmente realizado por uma mulher casada, que vai entoando palavras de esperança, simboliza a entrada na idade adulta. Numa mesa, estão petiscos tradicionais, está uma tigela com tangyuan – bolinhos recheados feitos à base de farinha e arroz glutinoso. Está também uma garrafa de baijiu, a bebida alcoólica preferida do avô. “É uma forma de lhe pedir a bênção”, explica.
No dia seguinte, sábado, Sara acorda às seis da manhã para se preparar para a cerimónia tradicional. No Facebook encontrou o contacto de uma maquilhadora freelancer que chega de Hong Kong para a ocasião. O traje tradicional de duas peças foi alugado – fundo vermelho, flores bordadas a dourado, e a imagem repetida da fénix, símbolo feminino associado à fertilidade.
Sam vem buscar a noiva. Traz um fato cinzento claro, quadrados largos, um laço preto. Numa tradição antiga, que ainda se mantém viva em Macau, as amigas da noiva vão tentar dificultar a missão do futuro marido. “Então ele faz uma declaração de amor, diz que vai cuidar de mim, da minha família, e que todo o dinheiro que tem também é meu”, lembra Sara.
Numa referência a este ritual, os autores da obra A Fénix e o Dragão, explicam que “a brincadeira, no fundo, pretende demonstrar quão querida e valiosa é a jovem que o noivo pretende afastar do lar e do círculo de amigas”. Os autores referem ainda que, na opinião de alguns antropólogos, esta é “uma espécie de teste à inteligência e à perseverança do noivo”.
Guiados por Mak Tse, os noivos vão prestar homenagem aos pais e restantes membros da família na cerimónia tradicional de chá. O ritual vai ser repetido mais tarde, em casa dos pais de Sam, “num gesto que ainda não perdeu o acto de vassalagem”, como descrevem Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho. A acção é compensada com a entrega de lai-sis (envelopes vermelhos com dinheiro), pulseiras e outras jóias de ouro.
De acordo com a tradição, a noiva regressa ao lar paterno um mês depois da boda. Este período foi sendo reduzido ao longo dos tempos para duas semanas, depois três dias. Sara e Sam voltaram nessa mesma tarde, trouxeram um leitão assado para o almoço.
O banquete tradicional começou pelas seis da tarde no hotel Grand Lapa, com quatro mesas de Mahjong disponíveis para os convidados. Às oito, foi servido o jantar – comida tradicional chinesa – e por volta das dez, os noivos e os pais despediram-se dos convidados à porta do salão.
Sara e Sam partiram em lua-de-mel durante duas semanas. Estiveram na Polónia, Alemanha e República Checa. Quando regressaram, organizaram uma última cerimónia para os amigos na Pousada de Coloane. Sara vestiu-se de noiva. Estava de branco.
Princesa por um dia
Seul, Coreia do Sul. Foi aqui que William e Grace fizeram as fotografias pré-casamento. Ainda não tinham data marcada, não havia proposta, mas namoravam há cinco anos e era hora de pensar em casar. Aproveitaram as férias de uma semana para o primeiro passo: a sessão fotográfica.
“Porquê a Coreia?”, pergunto. “É um estilo muito diferente do de Macau, parece que estamos num filme”, diz Grace, que alugou três vestidos: dois brancos, um preto. “Na China, a cor preta é raramente utilizada”, explica. No final dessas férias, estava Grace a terminar de fazer as malas para regressar, quando William apareceu com um ramo de flores. O pedido estava feito.
Em Macau, o casal celebrou o noivado com uma cerimónia de chá “simplificada”.
– “Aquele momento em que as amigas da noiva tentam impedir a entrada do noivo em casa é aborrecido, todos fazem o mesmo”, justifica Grace.
– “É embaraçoso”, acrescenta o marido.
E, em vez de um banquete, os jovens partiram para a ilha de Okinawa, no Japão. A acompanhar estavam 20 pessoas, entre família e amigos.
– “Os nossos pais cresceram na China e fizeram tudo como manda a tradição, mas a nossa geração cresceu em Macau, uma cidade com influência ocidental”, aponta William.
– “Só posso agradecer ter tido o apoio da família, o que não é comum, porque há quem force os filhos a casar-se de forma tradicional”, acrescenta Grace.
Para esta jovem jornalista, a igreja, o vestido branco eram sonhos de criança. Por várias vezes, viu outras noivas entrarem na igreja acompanhadas pelo pai, caminharem até ao altar, dizerem que sim. Grace e William não são baptizados, católicos, nem acreditam em Deus – “talvez em alguém que olhe por nós”.
Em Okinawa, este não era um requisito. Grace e William casaram-se pela igreja, numa cerimónia católica, e em inglês. “Quando entrei na igreja comecei a chorar, sem conseguir parar. Chorei durante toda a cerimónia”, recorda Grace.
William nunca pensou casar pela igreja no Japão, nem fazer a sessão fotográfica pré-casamento na Coreia do Sul.
– “Na cultura actual do casamento, o homem é apenas o pano de fundo. A personagem principal é a mulher. Mas se a podemos fazer feliz, por que não?”
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Convites menos vermelhos
Mudam os tempos, mudam os convites de casamento. Os jovens de Macau preferem cores como rosa, azul, roxo ou castanho. Estas começam a ser escolhas cada vez mais comuns, diz Vincent Lam, director-geral da Happy Wedding, uma empresa local que produz convites para o dia de casamento.
“Se forem os pais a decidir, serão de certeza vermelhos”, realça Lam, explicando que “cerca de 50 por cento dos noivos ainda opta pelo convite tradicional, porque o processo é controlado pela família”.
Hoje em dia, sublinha Lam, os casais também procuram “um design mais moderno”, em que se integram, por exemplo, “padrões chineses em papel cortado a laser num estilo ocidental”.
O símbolo de dupla felicidade (囍) continua a ser um elemento presente nos cartões. Os convites da Happy Wedding são desenhados em Macau e produzidos na Província de Guangdong e os preços variam entre as 5 e as 25 patacas.
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Curiosidades
- O coco faz parte de um grupo de objectos simbólicos que se compra antes do casamento. Em chinês, a palavra coco diz-se yez´, e pronuncia-se da mesma forma que as palavras ‘avô’ e ‘criança’. Por isso é um fruto auspicioso, representando uma família grande.
- O ouro revela o estatuto da noiva. Nas pulseiras, fios e medalhões constam inscrições ligadas ao casamento, como o símbolo de dupla felicidade (囍) – a repetição do carácter 喜, que significa felicidade.
- No dia do casamento, a noiva deixa a casa dos pais debaixo de uma sombrinha vermelha para se proteger de todos os males. Amigos e familiares atiram arroz para desviar a atenção dos espíritos malignos. Diz-se que este espírito tem a forma de galinha e que o arroz pode desviar a atenção do animal.
- A troca de vestidos durante o dia do casamento pretendia fazer prova da riqueza dos pais ou da generosidade dos sogros. Ainda hoje, as noivas de Macau continuam a respeitar esta tradição, embora o número de vestidos utilizados seja menor.