Jia Rui despede-se da competição aos 27 anos

Dedicou 22 anos de vida ao wushu, somou mais de duas dezenas de medalhas e distinções em grandes palcos internacionais, foi o melhor do mundo em mais do que uma categoria e deixa o nome associado à maior honra individual alguma vez alcançada por um atleta de Macau. Aos 27 anos, Jia Rui colocou a alta competição para trás das costas, mas vai continuar ligado à modalidade como treinador.

Jia Rui

 

Texto Marco Carvalho

 

Depois de há quatro anos ter feito história em Cantão com a conquista de uma medalha de ouro, este ano na Coreia do Sul conquistou a prata. Sente que ficou aquém das suas potencialidades?

O resultado foi justo. Acredito que todos os atletas partem em pé de igualdade quando se trata de lutar por medalhas e nem sempre se pode vencer. No início de uma competição todos têm as mesmas hipóteses; depois depende muito da forma como a competição evolui e do modo como quem compete agarra as oportunidades. Está mais apto a vencer quem mais consegue avançar em termos técnicos, quem mais consegue crescer.

 

Nasceu na província de Henan e foi o wushu que o trouxe a Macau. Foi uma aposta ganha?

Sou filho único e, estranhamente, a minha mãe não ficou muito incomodada por eu ter vindo para Macau, mas ao fim de todos estes anos reconheço que ela estava certa. Vir para Macau foi a escolha mais acertada que fiz na vida. Devo agradecer aos responsáveis pela Associação Geral de Wushu primeiro por me terem escolhido e depois por me terem permitido aprofundar conhecimentos e técnicas. Macau apoiou-me incondicionalmente ao longo de todos estes anos e ajudou-me a crescer e a evoluir. Para ser bem sucedido, um atleta necessita do apoio dos que o rodeiam e eu devo agradecer todo o apoio que Macau me deu. Foi graças a esse apoio que pude dar o meu melhor e que consegui alcançar os resultados que alcancei. Foi para mim uma enorme honra fazer parte da família de atletas de Macau e competir com as cores do território. É algo que me deixa orgulhoso e feliz.

 

Despediu-se da alta competição nos Jogos Asiáticos de Incheon. O que tem feito desde então?

Tenho descansado muito (risos). Ainda me estou a adaptar à ideia de uma rotina diferente. É bom parar um pouco antes de começar a preparar o futuro.

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Ainda não se acostumou à ideia de que não vai voltar a competir, então?

Confesso que não. Pratiquei wushu durante mais de duas décadas e dediquei uma boa parte do meu tempo à modalidade. Tenho, no entanto, de me convencer a mim mesmo que os meus dias como atleta já fazem parte do passado. Vou continuar a trabalhar na área do desporto, mas não como atleta. Isto é algo novo para mim e não há ninguém que se sinta confortável perante grandes mudanças. Ainda assim, quero virar esta página.

 

Já sente saudades da competição?

Estaria a mentir se disser que sinto. Guardo as melhores memórias dos meus dias como atleta, mas essas experiências fazem já parte do passado. Agora é tempo de olhar para o futuro, de procurar trilhar novos caminhos. Em abono da verdade, a minha vida enquanto atleta era um bocado monótona. Daqui para a frente terei a oportunidade de aprender e de complementar a minha ligação ao wushu com vivências e experiências que nunca tive a possibilidade de ter, porque a prioridade passava por me dedicar a 100 por cento à modalidade.

 

Que tipo de experiências? O que tenciona fazer com o tempo que agora tem em mãos?

Sobretudo aprender. Quero aprender, enriquecer-me a mim mesmo. A verdade é que tenho muito tempo livre e tenho de o preencher de uma forma ou de outra. Quero aprender línguas, como inglês, por exemplo, e quero aprofundar competências noutros domínios. Tenho a ideia de me inscrever numa série de cursos, até porque sinto a necessidade de melhorar em aspectos que fui negligenciando ao longo dos anos. Devo ao wushu tudo o que consegui, mas a verdade é que ser-se muito competente num domínio já não é garantia de nada. A sociedade não gosta de talento homogeneizado. Agora, que já não sou atleta, tenho de ter capacidade para melhorar noutros aspectos, porque só posso acompanhar o desenvolvimento de Macau. Quero ser um bom exemplo para os jovens.

 

Ainda assim, vai continuar ligado ao wushu como treinador…

Já sou treinador desde 2006. Trabalho com miúdos de várias idades e já o fazia enquanto atleta. É algo que me agrada muito. Não vale de nada ter talento se não o partilho com os outros, se não contribuo para o desenvolvimento da modalidade e da sociedade. Quero ajudar os outros a melhorar e a reforçar conhecimentos. Em suma, quero ajudar os outros a serem mais fortes.

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Acredita que algum dos seus alunos pode vir a alcançar o mesmo nível que alcançou?

Trabalho sobretudo com miúdos novos. Os atletas de Macau são treinados pelos mesmos técnicos que me treinaram a mim. Em termos gerais, são todos atletas de elevada qualidade e não é de estranhar que obtenham bons resultados. Eu não trabalho sozinho. Os resultados dos últimos anos são fruto de um contributo colectivo. Trabalhei com atletas extraordinários e estou convicto que aparecerão novos exemplos de sucesso. Não me refiro apenas ao wushu. Noutros desportos também há excelentes atletas.

 

É o mais medalhado dos atletas que competiram e competem com as cores de Macau. Sem Jia Rui, é de esperar que o desporto de Macau continue a ser assim tão bem sucedido?

Não sei bem ao certo se serei mesmo o atleta mais medalhado. Acredito piamente que se um atleta conquista medalhas e é bem sucedido, só o é porque nele convergiu o apoio do governo, o trabalho desenvolvido por toda uma equipa associativa e as expectativas da população. É claro que é necessário também um grande esforço individual. Se Macau vai continuar a conquistar medalhas sem mim? Estou convencido que sim. Os nossos atletas são muito empenhados. Além disso, o governo e as associações dão um grande apoio. O nível competitivo dos nossos atletas está sempre a aumentar. Sem mim, haverá espaço para que um novo Jia Rui se afirme e há em Macau, como dizia, muitos atletas extraordinários. Há, ainda assim, margem de manobra para alguma melhoria. Desde que Wong Tong Ieong conquistou a primeira medalha de Macau nos Jogos Asiáticos de 1990, o wushu de Macau e, de uma forma geral, o desporto do território melhorou significativamente. Fico feliz porque para além do wushu há resultados a surgir noutras modalidades. O taekwondo e o karaté têm um nível muito elevado e as prestações na natação são cada vez melhores. Espero que as pessoas possam dar o devido valor ao esforço destes atletas, porque eles trabalham de forma árdua.

 

Qual é a melhor memória que guarda de tantos anos na alta competição?

Depois dos Jogos Asiáticos, fomos a escolas partilhar experiências com crianças e esta foi uma das perguntas. Outros atletas evocaram certames em que competiram, mas eu não tenho uma memória predilecta. Toda a minha carreira foi inesquecível. Dediquei 22 anos da minha vida ao wushu e lembro-me de forma cristalina de todas as provas em que participei. Poderia escrever um extenso texto sobre cada uma delas, porque todas as memórias são dignas de serem evocadas. Aprendi muito ao longo deste anos e algumas delas são lições de vida.

 

E teve momentos menos felizes?

Há sempre. Estreei-me em competições internacionais com as cores de Macau em 2004 e sofri a primeira grande desilusão da carreira logo na primeira prova em que participei, ao encaixar uma derrota estrondosa. Foi uma das experiências mais importantes pelas que passei porque me fez perceber que teria que ser mais diligente. Na altura éramos amadores à luz dos regulamentos desportivos. Reflecti bastante e foi essa derrota que me levou a assumir a postura que fez de mim, como dizia, o mais medalhado dos atletas de Macau. Por vezes, o fracasso pode ser bom. Fiquei devastado porque achava que tinha desperdiçado uma oportunidade, mas aprendi a fazer dessa derrota uma referência: foi esse desaire que levou a melhorar e a ambicionar sempre mais. Quando se é atleta, isto é o mais importante.