Futebol | Talento lusófono atrai talento local

Dos 765 futebolistas da RAEM, 118 são estrangeiros e grande parte vem de países lusófonos. A integração de jogadores de fora serve de exemplo para os locais, elevando a qualidade do desporto na RAEM

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Texto Luciana Leitão | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Pé na bola, finta o adversário, rumo à baliza. Objectivo: golo. Aliás, vários golos. Quantos mais, melhor. Para ajudar nesta missão, há cada vez mais jogadores profissionais estrangeiros a integrar as equipas locais. Vêm de segundas e terceiras divisões dos respectivos países de origem, na maioria lusófonos, em busca de maior estabilidade salarial e de um novo desafio. Os clubes que os contratam esperam que tragam qualidade e sirvam de exemplo.

Filipe Duarte, defesa central português do Sport Lisboa e Benfica de Macau, chegou a Macau há três anos vindo do Oriental, em Portugal. No país europeu, fez a formação no Sport Lisboa e Benfica e integrou a selecção nacional dos sub-15 aos sub-20. Jogou ao lado do craque Cristiano Ronaldo, passou pelo Apollon Limassol, no Chipre, onde foi campeão. Uma lesão levou-o a uma paragem de um ano e depois de passar pelo Operário dos Açores e pelo Oriental, surgiu a oportunidade de Macau.

As condições de trabalho e de salário eram boas e por isso tem-se mantido por aqui, mesmo sendo esporadicamente assediado por equipas como o Belenenses. Filipe afirma que há ainda alguns obstáculos à progressão do futebol local, sobretudo porque as equipas não têm o seu próprio campo, devendo usar espaços públicos para treinar. De qualquer maneira, é optimista, já que ao longo de três anos tem vindo a assistir a uma evolução do futebol local. “Mesmo o próprio Benfica evoluiu bastante, trazendo melhores jogadores. As equipas tentam reforçar o plantel com jogadores de qualidade e trazendo treinadores de fora também”, diz.

Para Filipe Duarte, jogar ao lado de amadores, que apenas praticam futebol a tempo parcial, não é um problema, até porque o que conta é a motivação. “Falo pelo Benfica – são jogadores não profissionais, mas que quando vêm para os treinos é como se fossem”, afirma.

Niki, 26 anos, de origem portuguesa, é o avançado do Sport Lisboa e Benfica de Macau, jogando a título não profissional. Iniciou-se no futebol no território, quando tinha apenas 12 anos. “Aos 14 fui para Portugal – joguei no Estrela da Amadora, fiz lá os juniores. Joguei também no Casa Pia, Igreja Nova, em terceiras divisões”, diz, relatando um pouco do seu percurso no país europeu. Em 2011, regressou ao território para jogar como amador no Windsor Arch Ka I e agora faz parte do plantel do Benfica. “Quando cheguei a Macau, o futebol era um pouco mais fraco do que agora. Tem havido progressos, também porque os clubes têm apostado em trazer jogadores estrangeiros”, declara. Para Niki, trazer profissionais de fora é importante para desenvolver o futebol local.

Desde que regressou a Macau, procura conciliar o futebol com um trabalho a tempo inteiro. “É fácil conciliar, Macau também é pequeno – saímos do trabalho e em 20 minutos estamos no local do treino.” Quanto ao convívio com os colegas profissionais, diz que é muito salutar até porque “aprende” muito com eles. “Queremos chegar ao nível dos profissionais e os profissionais puxam pelos amadores.”

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As diferenças

Edgar Silva, natural do Brasil, chegou a Macau no fim de Setembro do ano passado e apesar das diferenças, sobretudo no que toca ao futebol, já está habituado à vida na RAEM. O jovem, que cresceu no país de Pelé e Romário, afirma que se deparou com um futebol bastante diferente daquele que é praticado no Brasil. Mas apesar de tudo considera que as condições dadas a profissionais de fora são boas.

Fez a sua carreira praticamente toda no Brasil, passando pelo Comercial de Ribeirão Preto e pelo Barretos, até que surgiu a primeira oportunidade para ingressar num clube estrangeiro, o Sporting Clube de Macau. “Foi uma oportunidade muito válida para mim, sobretudo por não ter tido antes hipóteses para sair do país.”

Agora a trabalhar como jogador num território onde o futebol é uma modalidade amadora, diz-se surpreso com a falta de afluência aos estádios, que julga serem resultado de uma fraca divulgação dos torneios existentes.

Conciliar a sua experiência com a dos jogadores locais tem sido tarefa fácil, já que os amadores “têm muita vontade de aprender”. Aliás, quando chegou, a Edgar, tal como aos outros profissionais, foi pedido que “ajudasse os locais a crescer enquanto atletas”. E é isso que tem procurado fazer.

Já o capitão do Sporting Clube de Macau, Bruno Brito, natural de Portugal, acabou por vir parar à RAEM em Setembro do ano passado, depois de passar por algumas equipas lusitanas e pelo Frenaros do Chipre. Encontrou aqui uma realidade muito diferente daquela que conhecia, mas nem por isso desmoralizou. “Não temos campo para treinar, mas estamos aqui alegres e a treinar.” E, apesar de satisfeito com os resultados da sua equipa, Bruno Brito esperava ver maiores desenvolvimentos na qualidade do futebol local. “A qualidade tem-se mantido e isso não é bom.”

Por seu turno, o brasileiro Bruno Figueiredo chegou a Macau pela primeira vez em 2011, vindo do Belenenses de Portugal, numa altura em que o clube luso estava a passar por dificuldades. “Eu estava só treinando, sem dinheiro e veio essa proposta – aceitei para estar na Ásia, onde o futebol estava a crescer, em busca de outros lugares, como Tailândia, China ou Hong Kong”, afirma. Macau e o clube Monte Carlo foram a sua porta de entrada num continente com um futuro que ele considera promissor no que diz respeito ao futebol.

Depois do Monte Carlo, ainda acabou por jogar em Hong Kong, seguindo-se o Brasil. “Acabei por ir para a Polónia, depois Índia e só depois o Ka I para jogar na Bolinha”, conta.

Admitindo que as dificuldades de progressão do futebol do território são muitas, Bruno Figueiredo diz que há treinadores e clubes locais com espírito profissional. “No Monte Carlo, naquela época treinávamos todos os dias; no Ka I também.” Porém, reconhece que a falta de campos próprios para treinar é um grande obstáculo.

Duarte Alves

Mais e mais profissionais

Duarte Alves, director da Casa do Sport Lisboa e Benfica em Macau, afirma que os bons resultados da equipa são fruto de um “trabalho iniciado em 2008”, altura em que começou a disputar campeonatos.

Hoje em dia, entre os 44 jogadores que fazem parte da equipa, contam-se 22 estrangeiros, reflexo de uma vontade de alcançar um nível mais profissional. “Em Macau, até já se ouve falar de jogadores profissionais na quarta divisão, coisa que em 2008 era impossível.”

Tratando-se de uma região tão pequena e com uma população limitada, Duarte Alves afirma que é necessário recrutar jogadores de fora para “ir buscar a experiência ao estrangeiro, aumentando a qualidade”. Por isso, nos últimos anos não só o Benfica mas também outros clubes locais têm recrutado bastantes profissionais. “A maioria dos outros clubes concentra-se nos jogadores brasileiros, mas o nosso objectivo é trazer de Portugal”, diz, esclarecendo que tal se deve apenas porque é mais fácil a comunicação.

Normalmente, diz Duarte Alves, vêm de uma segunda divisão ou segunda divisão B e, por algum motivo, não conseguiram subir na carreira. Da equipa do Benfica fazem parte 11 jogadores estrangeiros e o treinador, entre um total de 24. “São trabalhadores do clube, todos com blue card [cartão de não-residente], a trabalhar a tempo inteiro no Benfica”, explica. E vêm não só para melhorar os resultados do clube, mas também para ajudar os locais. “Temos treino quase todos os dias, para ter tempo para estes locais poderem dar o contributo à sua equipa.”

 

Os segredos

Para o treinador do Sporting Clube de Macau, João Maria Pegado, a equipa, que tem vindo a obter cada vez melhores resultados, está a gozar os frutos de “uma atitude perante o treino e de um investimento maior”. E esse maior investimento traduziu-se num “reforço” da equipa, contratando-se jogadores estrangeiros, oriundos de Portugal e do Brasil, que vieram “trazer mais qualidade”.

Os profissionais são escolhidos depois do visionamento de vídeos ou em função da experiência prévia noutras equipas do território. Vêm de clubes com a “mesma dimensão financeira” que o Sporting Clube de Macau, seja a segunda ou terceira divisão brasileira, ou das distritais de Portugal. “A nossa equipa tem vindo a subir de qualidade, muito por causa desses jogadores que trouxemos.”

Agora com treinos seis dias por semana, João Maria Pegado afirma que é essa “exigência” responsável pelos bons resultados. E diz mais: se fosse treinador a tempo inteiro, todos os jogadores – e não só os profissionais – teriam treinos duas vezes por dia.

Perto de 60 por cento da equipa é composta por jogadores amadores, que nem sequer tiveram qualquer tipo de treino. “Estão no Sporting porque gostam de futebol, seria impossível impor isso a toda a equipa”, diz.

 

Necessidade de mudar

O presidente do Sporting Clube de Macau, António Conceição Júnior, acredita que o obstáculo actual mais evidente à progressão da modalidade é a falta de infra-estruturas. “É preciso espaço para treinar e mudar para pisos sintéticos”, sugere, acrescentando: “Aliás, nós já fizemos um pedido [formal] de um relvado sintético.”

O dirigente do Sporting considera que o futebol está “com muitas dificuldades de progressão”. E sugere que se comece por reduzir o número de equipas e divisões, para que haja uma boa gestão. “Neste momento existem três divisões de futebol de onze o que é excessivo no contexto e circunstâncias do futebol de Macau. Daí, resulta uma terceira divisão que joga um campeonato a uma volta apenas, porque depois entram outras competições e ninguém lucra nada com isto, porque nada chega a ser alguma coisa”, esclarece. Assim, António Conceição Júnior considera que o futebol de Macau devia ter apenas duas divisões de onze, enquanto a actual quarta divisão, jogada em regime de futebol de sete, devia passar a ser a terceira divisão.

Sobre o investimento na equipa, António Conceição Júnior diz que a vinda de jogadores profissionais portugueses e brasileiros foi uma mais-valia, já que “tem ajudado toda a equipa”.

José Tavares

A história

O futebol de Macau foi fundado no fim dos anos 30. Na altura, era apenas associado da Federação Portuguesa de Futebol. “Só depois do 25 de Abril de 1974 [Revolução dos Cravos em Portugal] é que se tornou autónomo e pôde passar a filiar-se directamente nos organismos internacionais”, afirma o presidente do Instituto do Desporto (ID), José Tavares. Veio então a filiar-se na Confederação Asiática de Futebol e posteriormente passou a fazer parte da Federação Internacional de Futebol (FIFA).

Mas foi em plenos anos 40, altura em que as verbas atribuídas eram escassas, que o futebol começou a dar os primeiros passos. “Os militares deram o seu apoio, o campeonato era bastante competitivo”, diz.

A primeira equipa profissional surgiu nos anos 80 pelas mãos do empresário

António Assumpção. Chamava-se Negro Rubro. “Já naquela época tinham dois milhões e tal de patacas de orçamento, o que não é brincadeira nenhuma”, destaca José Tavares.

Surgiram depois outros clubes “importantes”, como o Lam Pak e mais recentemente tem ocorrido uma “grande evolução”. “O reaparecimento do Benfica veio dar uma nova fisionomia ao desporto local, especialmente ao futebol”, diz, acrescentando: “O futebol agora tem equipas locais com jogadores internacionais, é bem mais competitivo do que há 15 anos. É bom, mas também temos de assegurar os lugares para os locais.”

Quanto à intervenção do ID na evolução da modalidade, José Tavares assegura que garante subsídios para a Associação de Futebol de Macau. “Não é para os clubes, os clubes financiam-se a si próprios, como acontece em Portugal. Os nossos subsídios são para uso da associação na organização de campeonatos territoriais, no enquadramento técnico que precisam – contratação de treinadores, árbitros e também na participação em algumas competições internacionais, além de assegurar os treinos”, esclarece.

Assumindo que faltam instalações aos clubes para proceder aos treinos, José Tavares afirma que essa é uma condicionante de Macau, dada a dimensão física limitada do território. E que sem esses campos é também difícil apostar na formação.

De qualquer maneira, José Tavares acredita que os primeiros passos estão a ser dados, com algumas equipas a recrutar jogadores de certo nível para elevar a qualidade do desporto. “Outro passo é todas as equipas fazerem o mesmo.”

Uma outra condicionante de Macau é a “falta de cultura clubística”. “Não temos centenas de milhares de sócios a pagar quotas. Quando o homem que cria o clube morre, morre o clube, normalmente.”

 

Um jogador que faz parte da história

Daniel Pinto, natural de Cabo Verde, chegou a Macau nos anos 80, depois de ter representado a Académica de Coimbra em Portugal, para jogar no Negro Rubro, e por aqui ficou. Macau teve um período áureo durante os anos 80, altura da fundação da equipa Negro Rubro. “A selecção de Macau era temida; Hong Kong vinha jogar com Macau e trazia a melhor equipa; Cantão também”, recorda.

Com o decorrer do tempo, o Negro Rubro acabou. “Faltou dinheiro e faltou o António de Assumpção.” Mas Daniel Pinto não desistiu e continuou em Macau, passando por clubes como o Wá Seng, Chong Son, Sporting e, até mesmo, o Benfica. “Foram momentos agradáveis, com vários títulos. Criei raízes em Macau.”

Acabou por se tornar treinador a tempo parcial, quase acidentalmente. “Não estava nos meus planos. Joguei pelo Porto, subimos à primeira divisão, depois surgiu o convite para treinar o Porto e foi isso que aconteceu.” Mais recentemente, foi treinador por pouco tempo do Benfica.

Olhando para a história do futebol de Macau, Daniel Pinto afirma que o facto de faltar aos locais o “espírito de entrega e de querer ser alguém no futebol”, muitas vezes condiciona a evolução da modalidade. Por isso, aprova a 100 por cento a integração de profissionais estrangeiros em todas as equipas de Macau.

Chong Coc Veng

Um plano para o futebol juvenil

Segundo o presidente da Associação de Futebol de Macau, Chong Coc Veng, actualmente não há grandes problemas a dificultar a progressão da modalidade no território. Com o seu grande objectivo a ser a promoção da formação juvenil, o dirigente revela que está actualmente a ser negociado um projecto-piloto com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). “Estamos a implementar um plano trabalhando com a DSEJ para combinar o campeonato escolar com o campeonato de futebol de Macau, para ser mais abrangente.”

O presidente revela também que estão a discutir com o ID uma forma de seleccionar, junto da escola de futebol juvenil do ID, indivíduos que integrarão uma equipa de elite. Porém há muitas dificuldades, considerando que há ainda poucos jovens a quererem prosseguir com o futebol.

Quanto ao carácter amador do futebol de Macau, o dirigente afirma que “o profissionalismo não significa necessariamente o melhor para a modalidade”, até porque “é mais importante promover o espírito do que a parte técnica”.

E é na formação juvenil que o treinador brasileiro José Arlindo Filho, mais conhecido por Josecler, vê grandes lacunas. Por isso, é nisso que tem apostado ao longo dos últimos anos. O antigo jogador é agora coordenador da escola do São Paulo Futebol Clube em Macau.

No que toca à formação, Josecler afirma que apesar das escolas existentes continua a faltar competição. “Sem campeonato, quando chega aos 12 anos, acaba-se o futebol”, afirma. Neste momento, através da escola do São Paulo espera trabalhar com meninos dos 15 aos 17 anos, de forma a constituir uma equipa da quarta divisão e, progressivamente, ir subindo de categoria.

Josecler Filho

 

Como está organizado o futebol em Macau

Liga de Elite                                       9 equipas

Segunda divisão                                10 equipas

Terceira divisão                                 11 equipas

Quarta divisão [futebol de 7]          96 equipas

Veteranos                                          13 equipas

Taça Júbilo                                         11 equipas

Juniores                                             9 equipas

A Bolinha

Em Macau, além do futebol de 11, continua a disputar-se o futebol de sete, ao qual se deu o nome de Bolinha. É praticado em campos de menor dimensão como o que existe no Colégio D. Bosco.