T Vanessa Amaro | F Gonçalo Lobo Pinheiro
Um palpite de um mestre de feng shui aqui e um livro acolá. A calçada portuguesa em Macau não se fez apenas de pedra. O que parecem desenhos e formas simples a olho nu escondem o domínio dos conceitos do feng shui pelos arquitectos portugueses. Caminhar pelo pavimento de estilo português é também estar em contacto com a história e a ligação da região ao mar, documentado com cuidado na Avenida Almeida Ribeiro, toda calcetada com desenhos marítimos que remetem ao tema dos descobrimentos portugueses. Mas aqui o peixe é chinês – fonte de abundância e prosperidade, espalha-se pela artéria do centro histórico. Já os leques vermelhos contornados a preto no Parque Dr. Carlos D’Assumpção servem para guiar a energia do ambiente na direcção certa.
O arquitecto Francisco Caldeira Cabral, ou o “Chico das calçadas” como acabou por ficar conhecido este ‘pai’ da calçada portuguesa em Macau, não tardou para se aperceber que não bastava apenas inspirar-se na originalidade do pavimento de Lisboa. Corria o ano de 1996 e o jardim central da Alameda Dr. Carlos D’ Assumpção já estava concluído quando surgiu o projecto do Centro Ecuménico Kun Iam. E o alerta foi dado: a cauda do peixe a apontar para o rio – peixe esse pensado para canalizar as energias da terra para a água – estava a apontar como facas para a deusa que aí ficaria colocada. “Havia essa incompatibilidade representada pelo bico da cauda do peixe. A solução mais fácil era destruir o peixe [risos], só que eu sou duro de roer e fui falar com um mestre de feng shui a Hong Kong para encontrar outra solução”, relembra Caldeira Cabral.
O peixe foi salvo e cada lado da cauda deu lugar a dois tanques de água com flores de lótus. “A água tem sempre um efeito positivo que contraria as energias negativas. Os dois tanques resolveram logo este problema que poderia estalar numa polémica.” A partir de então, o arquitecto começou a levar o conceito do feng shui muito mais a sério. Criou a sua própria biblioteca e por autodidactismo especializou-se na matéria, que ainda hoje aplica em todos os seus projectos paisagísticos, até em Portugal. Quando a resposta ao problema não aparece nos livros, recorre aos mestres do assunto. “Nem sempre é fácil, porque muitos deles percebem muito de feng shui para dentro de casa. Quando é para uma dimensão destas, com um ambiente tão alargado, nem todos conseguem ajudar.”
A utilização do calcário vermelho em Macau surgiu como uma opção adaptada ao clima local. A pedra em tons rosa absorve o calor e não reflecte tanta luz como a branca, reduzindo a temperatura do pavimento. No entanto, a população chinesa agradece a atenção por outro motivo, não fosse o vermelho a cor da felicidade, prosperidade e longevidade.
Neutralidade acima de tudo
Francisco Vizeu Pinheiro, responsável pelo projecto da calçada na Avenida Almeida Ribeiro, também teve de aprender conceitos básicos de feng shui antes de se lançar ao desafio. Depois de decidir utilizar padrões marítimos na avenida, foi aconselhado a evitar a sequência peixe-camarão-caranguejo, que remete para a ideia do jogo de dados chinês sic bo, ou yee hah hi, comum nos casinos locais. “Não queríamos estar a orientar ninguém para o jogo”, comenta a rir-se.
Acabou-se por isso a dar-se ênfase ao peixe de estilo chinês e há muitos caranguejos, associado à vitória e considerado o símbolo da antiga Baía da Praia Grande. “Os braços do caranguejo simbolizam os antigos fortes do Bom Parto e de São Francisco. Os olhos são dois fortinhos que existiam, o de São Pedro e outro na zona da Sé. Em conjunto, este animal é percebido como protecção.”
Nas zonas onde há mais sombras na avenida, desenhou-se o sol, para garantir o fluxo de boas energias mesmo na escuridão. As estrelas trazem com elas a prosperidade e as inúmeras caravelas e outras quantas embarcações chinesas representam, como um todo, a fartura e a riqueza. O sol e a lua aparecem sempre num ponto de cruzamento, próximo à uma esquina ou passadeira: “Atravessar a rua é como passar do dia para a noite e vice-versa, sendo o ponto de chegada sempre o sol”, explica Vizeu Pinheiro. Desenhos com lados pontiagudos são evitados a todo o custo, já que podem desequilibrar o fluxo de energias.
À entrada no Largo do Senado, os visitantes são guiados por uma sequência de uma igreja e de um templo desenhados em pedra preta. As ilustrações são, na verdade, uma espécie de bússola que indica aos mais atentos a direcção do património português e chinês. “Se seguirmos a sequência de igreja e templo, vamos lá chegar”, aponta o arquitecto.
Para não cair em erros que possam ir contra a filosofia chinesa, Estefânia Inácio, arquitecta da Divisão de Reabilitação e Manutenção Urbana do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), opta sempre por desenhos mais neutros. Quando fez o seu primeiro projecto, na Travessa da Misericórdia, em 2001, escolheu usar apenas a calçada de pedra branca nas laterais, recorrendo a um material menos escorregadio no centro, por onde as pessoas andam. Já na Travessa dos Anjos, projecto concluído em 2013, tinha ideia de usar desenhos de anjos ou dos signos dos zodíacos, mas para evitar ferir susceptibilidades optou pela neutralidade – flores e borboletas que trazem a energia da beleza e da harmonia.
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Feng shui de pedras
Estrela – Símbolo da energia positiva, da iluminação espiritual e da integridade
Flores – Energia da beleza e da graça
Borboletas – Símbolo do amor e do romance
Embarcações – Os barcos são imagens auspiciosas ligadas a prosperidade, fartura e riqueza
Peixe – Um dos símbolos mais auspiciosos. Carrega abundância e riqueza
Caranguejo – Atrai prosperidade e protecção. As pinças simbolizam a força e a agilidade
Concha – Protecção e sorte
Golfinhos – Trazem alegria, magia, criatividade e inteligência
Cavalo marinho – Perseverança e protecção
Flamingo
Mensageiro do rejuvenescimento