Texto Patrícia Lemos | Fotos Paulo Cordeiro, em Portugal
Verónica Milagres da Silva e Carolina Figueiredo identificaram-se logo pelo olhar quando se cruzaram, como aliás acontece sempre que um goês se encontra com outro. Sabiam que algo as unia. “Percebemos isso de imediato”, sublinha Verónica. Se o reconhecimento das raízes foi imediato, já a formação das PortuGoesas, que inclui ainda o pianista Carlos Garcia, esperou vários anos para acontecer.
As cantoras líricas conheceram-se no Coro da Gulbenkian, em Portugal, há 15 anos, mas eram vários os descendentes de goeses nesse agrupamento, por isso não estranharam a coincidência. Nem depois de descobrirem que os pais não só se conheciam, como tinham cantado juntos há 50 anos, as fez pensar que o destino tinha marcado encontro entre as duas. Porque quase todos os goeses cantam, dançam ou tocam um instrumento.
Há dois ou três anos numa situação informal, “uns amigos do coro pediram que cantássemos música goesa. A Carolina sentou-se ao piano e, sem combinar, cantámos músicas que ambas conhecíamos”, recorda a soprano Verónica. “Parecia ensaiado” de tanto que se completavam, “porque a Carolina, que é meio-soprano, era a voz grave e eu a aguda”. A semente estava lançada mas não passou de uma “situação engraçada”. Foi preciso uma viagem de trabalho ao Porto, a coincidência das duas não poderem acompanhar o resto do Coro da Gulbenkian no autocarro e terem de fazer a viagem juntas de carro para a semente germinar. Nessa viagem nasceu a ideia de formar as PortuGoesas, que muito deve a um “desenrolar de coincidências”, dizem quase em uníssono.
O rol de acasos não termina aí. Pouco depois do momento decisivo, Carolina encontrou o compositor goês Jerónimo Silva num restaurante: “Já não o via há largos anos. Ele contou-me que estava a terminar de compor uma missa em concani [uma das línguas oficiais da Índia] e eu falei-lhe do nosso novo projecto de música goesa”. A partir daí, os encontros sucederam-se para que as PortuGoesas conhecessem melhor as partituras inéditas. Se dúvidas restassem sobre o destino das duas cantoras, este compromisso com o compositor selava o arranjo. Afinal, seriam elas e Carlos Garcia a estrear aquele original da música erudita. Algo que, aliás, pretendem continuar a fazer, apesar de grande parte do seu repertório pertencer ao cancioneiro de Goa.
Em Maio, revelou-se essa mesma missa em concani no Museu do Oriente. Mas não foi a primeira vez que actuaram. As PortuGoesas já passaram por alguns palcos lusos, ouvindo até aplausos em Goa. E Macau também está nos planos do trio. Afinal, foi lá que foram buscar parte do repertório…
Do Senado ao São Luiz
Carolina mudou-se para Macau com os pais e os irmãos quando tinha apenas oito anos. “Só fui para Portugal aos 18.” Durante a adolescência integrou o Grupo Musical de Macau – Família Figueiredo. Actuou muitas vezes na cidade e até deu um grande espectáculo no São Luiz, em Lisboa, nos idos anos 1990.
Já adulta, a meio-soprano rumou a Portugal para prosseguir os estudos. Em Macau, ficaram os pais e muitas partituras de música de Goa, Portugal, Macau e até de Timor. “O meu pai era cuidadoso e catalogou tudo em pastas.” A de Goa esteve guardada em Macau até nascerem as PortuGoesas. E foi a Verónica que, numa viagem à RAEM, a trouxe para Lisboa.
Carolina promete num eventual concerto do trio em Macau entoar algumas músicas compostas ou recolhidas na região pelo seu pai. E levanta a ponta do véu: “É provável que sejam de embalar”, revelando depois Bastiana como o tema eleito. Confessa que gostava de actuar no Fórum de Macau e queria encher a sala. “Podíamos também cantar no Largo do Senado, onde já actuei em pequenina.”
A recolha continuou e mais pautas se juntaram à festa das PortuGoesas. Numa outra viagem, desta feita a Goa, Verónica aproveitou para comprar alguns compêndios tradicionais onde, para sua surpresa, encontrou dois mandós – um género típico de Goa – escritos pelo bisavô. “Foi uma grande emoção”, confessa, orgulhosa.
Com o repertório a crescer na toada das viagens, onde se incluem ainda muitas horas de navegação na Internet, as PortuGoesas têm-se surpreendido com a quantidade de informação disponível sobre o cancioneiro de Goa. Contudo, Verónica considera que “não é um repertório muito conhecido”, sem desprestígio para os grupos amadores que o têm feito perpetuar. Mas sente que talvez não tenha existido até hoje uma preocupação em divulgar essa música “de um modo mais institucional”.
Apesar de darem prioridade à música de Goa, com Tucá, Kaiboreló, Farar Far ou Adeus em destaque no alinhamento, os sons da raiz da lusofonia não são esquecidos. É o caso do Fado da Mariquinhas, que faz todo o sentido na set list porque os mandós lembram os fados. Estas músicas lentas de Goa dividem-se em várias categorias. Os mandós mais clássicos são canções de amores fracassados. Também há mandós de casamento, de amores felizes e os de celebração de nascimentos e os de funerais. “No fundo, são canções de amor”, atalha Verónica.
Por tradição, “depois dum mandó canta-se uma rapsódia de dulpods, que são músicas mais mexidas”. São pequenos estribilhos de canções que têm um tom mais satírico, com carácter social ou político. A música das PortuGoesas inclui ainda cantares das bailadeiras hindus, as colvontas, e as canções de embalar que eram entoadas pelas amas de antigamente. O trio ainda não chamou para o seu repertório as canções de trabalho de Goa, mas está nos planos.
World music com clássica
“A música goesa é muito diferente da do resto da Índia, porque é muito influenciada pela portuguesa em termos de concepção harmónica”, explica Carolina, adiantando que a estrutura dos tradicionais mandós e dulpods “dá para ser entoada a duas vozes”. Apesar de vocalmente mais simples do que o canto lírico, a música de Goa ganha nas vozes de Carolina e Verónica roupagens mais clássicas, até porque a acompanhá-las está um pianista com conhecimentos musicais mais formais e variados. “Entendemo-nos todos muito bem porque temos formação clássica.” Neste momento, os arranjos estão praticamente a cargo de Carlos Garcia e isso está bem patente no disco de estreia que têm estado a gravar em Lisboa e arrisca lançamento até ao fim deste ano.
No início eram as cantoras que definiam o som pretendido, porque “era um tipo de música que o Carlos não conhecia”, justifica Carolina. Com uma experiência que vai do jazz à música popular, o pianista “é bastante plástico”, segundo Verónica. Ao que a meio-soprano acrescenta: “E tem muita sensibilidade para a world music”.
As PortuGoesas não gostam muito da ideia de classificar de “clássica” a volta que estão a dar à música goesa, “porque cantamos estes temas como antigamente, como aprendemos a entoá-los”, sublinha Verónica. Aliás, muito deste repertório nasce da tradição oral, porque antigamente as famílias passavam muitos serões a tocar e a cantar, “e as canções passavam de pais para filhos”, como aconteceu com as duas intérpretes. Não é por isso de estranhar a riqueza do cancioneiro de Goa que, apesar de disperso em livros e websites, ainda hoje se encontra vivo na memória dos seus herdeiros.
Não é possível falar de Goa sem falar de música, com tudo o que isso tem de modernidade, por ter sido o berço da música electrónica trance, e de antiguidade, porque era também a cantar que os goeses afirmavam a sua identidade. E se tal era natural na Goa povoada de hindus e indianos, também o foi quando muitas famílias goesas se mudaram para Portugal e outras paragens distantes. A música manteve e reforçou a ligação às raízes.
Brilhos de Goa
É sobretudo o piano de Carlos Garcia que tece o cenário musical das PortuGoesas. Mas dois outros instrumentos de percussão de Goa são convidados para colorir o repertório do trio de Lisboa que inclui música erudita, tradicional e religiosa de Goa. A meio-soprano Carolina Figueiredo toca o ghumat, “que está para a música goesa, como a guitarra portuguesa para o fado”, esclarece, admitindo que aprendeu recentemente a tocar este instrumento “com a ajuda de outros goeses”. O ghumat é um cântaro de barro e é coberto por uma pele de lagarto em vias de extinção.
A soprano Verónica Milagres da Silva toca paizonam. “São uns guizos que se colocam nos tornozelos e eram sobretudo usados pelas bailadeiras.” Esta opção das PortuGoesas tem muito a ver com a necessidade de diversificar o timbre e “dar outro brilho rítmico à música”, apesar de não ser um instrumento comum no mandó, o género musical típico de Goa.
Acentuando a sua “liberdade de escolha” no tratamento das raízes, as cantoras não vestem o traje típico dos mandós (pano baju), “porque era um pouco pesado”, explica Carolina. Para o palco levam sempre o salwar (calças) kameez (túnica), que inclui ainda uma dupatta (lenço).
O que é o mandó?
Também apelidado de manddo, este género musical típico de Goa é a marca cultural do encontro entre a cultura indiana e a portuguesa. Cantadas durante os séculos XIX e XX, estas canções de amor eram populares entre os goeses católicos.