Margarida Saraiva
Investigadora, curadora e educadora
Tiago Quadros
Arquitecto
Toda a construção deve ser entendida como oportunidade de revelação de um lugar. As características essenciais que separam a arquitectura das outras artes de expressão visual fundam-se nos critérios espaciais e tipológicos e na gravidade que assegura a natureza essencialmente estrutural e construtiva do projecto arquitectónico. O espaço é determinado pelas propriedades concretas da terra e do céu. A fenomenologia do “espaço natural” ocupa-se, de forma sistemática, de toda esta totalidade feita de planícies, vales, colinas e montanhas. A este propósito, Norberg-Schulz defende que a terra, quando controlada, é “o palco cénico da vida quotidiana”, e que quando entre os homens se estabelecem relações, carregadas de significado, a paisagem natural origina a paisagem cultural.
As Torres Prestamistas erguem-se sobre a complexidade das relações do espaço humano (do espaço natural à sua ocupação), entre os conceitos de “orientação” e de “identificação”, que determinam os aspectos essenciais das relações entre nós e Macau. Nestas obras estão presentes questões essenciais à arquitectura. Falamos da ordem e da razão. Do prazer do olhar, do escutar, do sentir e do tocar. Do percorrer a arquitectura. As Torres Prestamistas retomam a ordem inevitável – a ordem da construção, o sentido da ordem, a ordem e o caos. Mas ao mesmo tempo, estas torres eram casas, armazéns, alvos preferenciais dos constantes assaltos dos piratas. “Entre a porta principal e o balcão das transacções, notava-se a presença de um biombo de madeira, de formato quadrangular que servia para esconder o cliente dos olhos de quem circulava na rua. A face exterior do referido biombo, voltado para a rua, era pintada de vermelho, tendo ao centro a figura de um morcego de asas abertas – o morcego foi, desde longa data, símbolo das casas de penhores – e o nome do estabelecimento pintado a ouro.”[2]
“As cidades podem ser vistas, apreciadas ou avaliadas de avião, de carro particular, a pé ou de transporte público e os diversos pontos de vista que delas podemos ter não são irrelevantes. Há cidades que são belas quando sobrevoadas e se tornam monótonas quando visitadas a pé. Ao desinteresse suscitado por certa vista aérea de uma cidade, pode contrapor-se o fascínio de um passeio.”[3]
As Torres Prestamistas que sobram na cidade vão estabelecendo um longo caminho de rupturas silenciosas, dando sinal de uma nova visão do espaço e da cidade, marcados por acontecimentos sociais, culturais e políticos da última década em Macau. Provavelmente como nenhum outro método de visualização, as imagens em movimento conseguem representar os espaços arquitectónicos como espaços “vividos” e “habitados”. O cinema é muitas vezes encarado como um meio que, através da relação espaço/tempo, da mise-en-scène, dos personagens e do argumento, pode circunscrever importantes debates sobre a arquitectura e a vida urbana. Com efeito, as Torres Prestamistas criam um “sentido de lugar”, fenómeno não só relacionado com a matriz da realidade física do espaço construído, mas também com a relação vivencial que estabelecemos com o seu significado.
Neste momento, desejava permitir-me um desvio, algumas considerações preliminares que irão precisar progressivamente os termos do debate que pretendo abrir. Falo da relação entre a história do espaço urbano, da arquitectura e das imagens em movimento na China. Das oportunidades que se podem gerar de partilha de reflexões em torno de discursos fílmicos sobre a arquitectura assim como leituras espaciais do cinema, cruzando as fronteiras das duas disciplinas. Numa época em que a cultura contemporânea chinesa é objecto de estudo um pouco por todo o mundo, sobretudo em centros universitários – dentro e fora da China – o exemplo das Torres Prestamistas em Macau deve ser analisado e debatido. E os estímulos gerados, serão de certo fonte de interesse para estudos académicos sobre a arquitectura, o urbanismo e a antropologia do espaço na China.
Desconhece-se a data exacta em que as primeiras casas deste género foram estabelecidas na China. De acordo com alguns documentos da época, supõe-se que terão surgido durante a dinastia Tong (618-905). Aqui estamos perante o que podemos chamar de “poética” da aproximação. Com efeito, a beleza da Torre Prestamista está na sua simultânea lógica de “pertença” e na sua eminente “levitação” face a este lugar. A sua materialidade – impressa nas texturas do construído – coexiste com um sentido de abstracção que é dado pela rude geometria dos seus planos. A Torre Prestamista vive entre a aparição e o desaparecimento. Ora este diálogo é na realidade um encontro que se dá intimamente como se então fosse possível vermo-nos a nós mesmos ou, melhor, porque tal é precisamente possível com a arquitectura: este diálogo é um encontro com o nosso vazio fascinante e terrível. E é nesse diálogo estreito que reside a sua delicadeza. Estamos perante uma arquitectura que vive e declara o espaço sem o modificar. Uma arquitectura que parte da natureza e afirma a natureza, sem ter vontade de a imitar. Uma arquitectura que acumula e agrega, mas que se despe na subtracção. Uma arquitectura que parece simbolizar a não-construção, a não-estrutura, o não-objecto. E sem demoras, o chá de jasmim consome-nos a tarde imensa.
[1] BARROS, Leonel (1 de Novembro de 2008). “Torres Prestamistas” in Jornal Tribuna de Macau, p. 16. [2] Idem. [3] PINTO RIBEIRO, António (2011). “A minha cidade são cidades”, in Questões Permanentes, Lisboa: Livros Cotovia, p. 291