Márcia Schmaltz
Leitora da Universidade de Macau
Sabiam que na Ásia também se comemora o dia dos namorados? Reza a tradição o festejo no sétimo dia do sétimo mês do calendário lunar, que neste ano correspondeu ao dia 23 de agosto. A comemoração é antiga e remonta ainda ao período da Primavera e Outono (ca. 770-416 a.C.). De acordo com os folcloristas, a data era dedica às moças solteiras e constituía-se uma das raras ocasiões em que podiam sair junto de outras para se divertirem e pedirem aos Céus que lhes conferissem destreza para trabalhos manuais como a tecelagem, o bordado e a costura.
Na dinastia Han Ocidental (206 a.C. – 24), eram organizadas exposições dos trabalhos manuais femininos que, mais tarde, evoluíram ao seio popular como uma data em que se enseja o amor e uma vida familiar feliz relacionado ao mito da Tecelã e do Vaqueiro. No Livro dos Cantares (诗经 Shijing), um dos primeiros registos poéticos Chinês, há uma estrofe que já recitava: Sentada ao lado do tear, a Tecelã trama o tecido sem vontade. Remói-se em amores pelo Vaqueiro do outro lado da Via Láctea.
A origem comemorativa da data também se relaciona com a proximidade do Outono, quando a estrela Vega da constelação de Lira — a constelação da Tecelã, para os chineses, desponta no Este da abóboda celeste ao entardecer e, seguindo o olhar para a mesma direcção, vêem-se duas estrelas menores correspondentes às estrelas Alfa e Beta da constelação de Águia — conhecida como a constelação do Vaqueiro, para os chineses. Este fenómeno astronómico somado a fina garoa outonal serviam como marco para o início da tecelagem dos panos para o abrigo do frio e para escolha do gado aos sacrifícios antes do inverno.
O mito está relacionado a um amor transcendental entre um mortal e uma deusa. Conta-se que dois irmãos, órfãos desde muito pequenos, tinham conseguido sobreviver a essa adversidade do destino pela sua união e pelo labor, auxiliado por um búfalo.
Já o búfalo também tem um papel relevante no mito, pois, na altura, os homens ainda não dominavam as técnicas agrícolas e passavam fome. A fim de auxilia-los a superar essa dificuldade, o deus celestial designou o búfalo para a aragem. Como o bovino estava acostumado à boa-vida no céu, o deus celestial disse ao bovino que os homens moravam em vales férteis com água cristalina e, caso fosse mentira, o deus daria a mão de uma de suas filhas a um mortal. Obviamente ao chegar à Terra, o búfalo encontrou uma situação totalmente inversa do que o deus celestial havia prometido, contudo como um animal de temperamento dócil, se conformou com a designação celestial e logo encontrou um bom amo, que devido à constante companhia junto ao búfalo, passou a ser chamado por todos como o Vaqueiro, o irmão mais novo dos órfãos.
Os anos passaram-se e a harmonia entre os irmãos foi abalada depois do casamento do mais velho com uma mulher vil, que temia dividir o pouco que tinham com o cunhado. Ela exigia que o marido mandasse o irmão menor para fora de casa e que reconstruísse a sua vida em outras paragens. A megera também não media esforços em maltratar o Vaqueiro para que esse tomasse a iniciativa de se ir embora. O irmão mais velho bem que relutou contra a ideia nefasta da sua mulher, mas por fim capitulou e disse ao seu irmão mais novo:
— Escuta, estamos todos crescidos e adultos, precisamos ser independentes, cada um tem que ir para o seu lado e construir a sua própria vida.
— Vamos nos separar? Mas onde é que eu vou morar? — perguntou o Vaqueiro assustado. Ele sabia que deveria ser independente, que já estava adulto, mas não fazia a menor ideia onde poderia ir morar.
— Eu também não sei —, respondeu-lhe o irmão e acrescentou — mas a partir de amanhã, tu não moras mais aqui! Podes levar o velho búfalo contigo, como parte de seus bens.
Assim, o jovem não teve outra saída a não ser pegar o búfalo e ir embora daquela casa à procura de um lugar seu para morar.
Algum tempo depois, ele chegou ao sopé de duas colinas e ali decidiu construir uma casinha de palha, que o resguardaria do vento. A seguir, utilizou a força do búfalo para lavrar a terra e plantou várias espécies de vegetais. O resultado de seu trabalho árduo não foi em vão e conseguiu sobreviver razoavelmente. Porém, a sua rotina se resumia apenas a ele e o búfalo, não havia nada mais que o distraísse. Assim, vez por outra, ficava muito entediado. Pensava em casar-se, queria achar a sua cara- metade, mas qual a família que aceitaria um pobretão como genro?
O búfalo, vendo a infelicidade do seu amo, sabia que ele estava assim devido à falta de uma companheira. Como o búfalo havia sido enviado à Terra pelo deus celestial para auxiliar o trabalho no campo dos homens, ele se lembrou das palavras do deus celestial:
— Se o que eu te digo for mentira, eu darei a mão de uma de minhas filhas a um mortal, para que o despose.
E assim, o búfalo, ao recordar-se da promessa, teve uma ideia. Ao ver o Vaqueiro triste se aproximar em sua direcção, disse:
— Amo, eu sou-lhe muito grato pela sua dedicação!
— O quê? — indagou surpreso o Vaqueiro boquiaberto ao ouvir um búfalo falar.
Sem se deixar interromper, o búfalo continuou:
— O amo tem somente a mim como companhia, certamente se sente muito solitário. Agora que já é adulto com uma casa e um pedaço de terra, deveria se casar…
— Casar? Quem… quem disse que eu quero casar-me? — irrompeu gaguejante o Vaqueiro.
— Eu tenho uma ideia! — complementou o búfalo.
— Ideia?! Quê ideia?! — perguntou o jovem desconfiado.
— Amo, não te aflijas! Não te aflijas! Lembras-te do rio onde eu costumo ir beber água? Todas as noites, as filhas do deus celestial costumam ir brincar naquelas águas. As fadas tiram suas roupas e as escondem numa moita próxima do rio. Tu deves ficar escondido ali, pegar uma das peças de roupa e a esconder. A dona da veste que vier reclamá-la será a sua esposa.
O deus celestial tem sete filhas. Todas elas são lindas e muito habilidosas na tecelagem. Dizem que o viés multicolorido do pôr-do-sol é tramado por elas, que os expõem a cada entardecer. Dentre elas há uma que é a mais bela e a mais caprichosa na arte de tecer, chamada de a Tecelã. Durante o dia, as fadas se ocupam em tecer lindos panos e, durante a noite, elas descem do céu para nadarem no rio.
Na noite seguinte, o jovem chegou à beira do rio e se escondeu atrás da moita indicada pelo búfalo. Não havia passado muito tempo, o céu começou a clarear, era a lua que despontava no horizonte, iluminando todo o rio produzindo lindos reflexos.
O Vaqueiro aguardou pacientemente, não se sabe quanto tempo. Quando acompanhado por uma melodia, Sete fadas pousaram na beira do rio, tiraram suas vestes, colocaram-nas na moita e saíram saltitantes ao rio para se banharem.
Quando as fadas estavam no auge de suas brincadeiras, o Vaqueiro pegou uma das vestes e saiu correndo. As fadas ao verem um homem romper do meio da moita, esconderam-se dentro da água assustadas e sem coragem para sair. Esperaram até que ele se afastasse para então chegarem à margem, vestirem-se e retornarem de volta para o céu. Uma delas que não encontrou a sua veste, não tendo como regressar, voltou para dentro do rio.
— Por favor, case-se comigo! — rompeu o Vaqueiro, — se aceitares, eu te devolvo as roupas!
A Tecelã de dentro da água aceitou o pedido com um aceno positivo com a cabeça. E foi assim que a fada foi com o Vaqueiro para casa, passando a viver como marido e mulher, levando uma vida de agricultor e de tecelã.
Um ano mais tarde, eles tiveram um casal de gémeos e as suas vidas tornaram-se ainda muito mais completa.
As duas crianças eram muito obedientes e assim que cresceram um pouco mais ajudavam os pais a tecer e a cuidar da lavoura, o que deixava os pais muito felizes.
Uma tarde, quando o Vaqueiro retornava de mais um árduo dia de trabalho, não avistou, como de costume, a Tecelã e os filhos o aguardarem na porta de entrada da casa. No seu interior, as crianças sozinhas a choravam desesperadamente.
— O que houve? Onde está a mamãe? — perguntou o Vaqueiro assustado às crianças.
— Hoje pela manhã, o papai mal havia saído, chegaram uns guardiões a serviço do deus celestial e levaram a mamãe! Nós a puxamos, tentamos detê-los, mas eles arrastaram a mamãe à força e foram embora…
— Oh, não!
O Vaqueiro ficou desesperado, mas não conseguia, de imediato, achar nenhuma solução, havia perdido a esposa.
Um dia no reino celestial corresponde a sete anos do plano terrestre. No segundo dia, ao descobrir o casamento da Tecelã com o Vaqueiro, o deus celestial ficou furioso e disse:
— Onde é que já se viu um casamento entre uma fada e um mortal? Não há cabimento! Guardiões celestes, vão busca-la imediatamente!
Como as crianças choravam pela falta da mãe, o Vaqueiro teve que recompor o ânimo. Deu-se por conta que a Tecelã só poderia ter sido levada de volta ao Céu. Logo a seguir, propôs aos filhos:
— Papai vai levá-los a procurar pela mamãe!
O Vaqueiro pegou as duas crianças no colo e foi subindo a Via Láctea, que era um rio que dividia o reino celestial e a Terra. Quando estava prestes a alcançar a outra margem, a Via Láctea desapareceu da terra e reapareceu no céu. Foi um encantamento do deus celestial, que com medo de que o jovem conseguisse alcançar o seu objectivo, deslocou a Via Láctea para o céu, separando assim, definitivamente o espaço celestial da Terra.
O Vaqueiro e os filhos ficaram a olhar para o céu, tentaram procurar algum lugar pelo qual pudessem subir até a Via Láctea. Sem uma solução à vista, o Vaqueiro decidiu voltar com as crianças para casa, muito desapontado.
E a Tecelã?
A Tecelã havia sido levada de volta ao palácio celestial pelos guardiões através da Via Láctea. Ao ver seu pai, começou a chorar. Mas o deus celestial, que estava muito bravo, não teve piedade e começou logo a esbravejar:
— Tecelã, tu és uma fada, como casaste com um mortal? E ainda por cima um agricultor! Tu realmente me deixas envergonhado! Não te posso perdoar!
— Papai… — suplicou a Tecelã — O senhor se esqueceu da promessa que fez ao búfalo?
O deus celestial lembrou-se de sua promessa, mas aquilo era apenas uma lorota para ludibriar o búfalo para ir ao plano terrestre e nunca imaginou que o búfalo faria cobraria a sua promessa, que para o deus nunca existiu. Enfim, o mal já estava feito, mas não poderia reconhecer isso, sob o risco de ficar desmoralizado. Por essa razão, o deus celestial ficou ainda mais zangado e bradou à Tecelã:
— Não digas mais nenhuma palavra! Não permito que veja nunca mais aqueles humanos, entendeste? Estás proibida de chegar perto da Via Láctea.
O deus celestial ainda ordenou os guardiões a ficarem de sentinela e atentos a movimentação.
Assim, a Tecelã ficou impedida de ver seu marido e seus filhos. Mas o deus celestial não conseguiu evitar que ela pensasse em seus entes queridos horas e horas, e como não havia nada que pudesse fazer, ela chorava dia e noite sem parar.
Ao retornar a casa e ao lembrar-se da vida feliz ao lado da Tecelã, o Vaqueiro abraçava-se aos filhos e chorava. Algum tempo depois, ele escutou uma voz rouca chamando-o:
— Amo! Amo!
Fazia muitos anos que não tinha escutado mais aquela voz. Pensou um pouco e disse assustado:
— É o búfalo que está falando de novo!
Aproximou-se do búfalo para escutar o que esse queria dizer-lhe:
— Amo, sou-te muito grato pelo companheirismo e atenção recebida nestes anos. Tenho-te grande gratidão e agora que estou morrendo, logo que eu deixar este mundo, tu deves aproveitar a minha carne e retirar o meu couro para resgatar a Tecelã do reino celestial. Colocas meu couro sobre o teu corpo para voar até o céu e te encontrar com a Tecelã.
Ao acabar de proferir essas palavras o búfalo morreu imediatamente.
Ao ver o velho búfalo morto de fato, o Vaqueiro estarrecido não conseguiu se conter e rompeu novamente em prantos. Um pouco depois, se recompôs e seguiu as instruções proferidas. Com todo o cuidado retirou o couro do búfalo como se não quisesse causar maior sofrimento ao amigo.
Fim da penosa tarefa, o Vaqueiro colocou cada uma das crianças dentro de um balaio e atravessou uma vara entre eles de forma que o peso ficasse equilibrado para carrega-las à canga. Depois colocou o couro sobre si e foi caminhando em direcção ao céu. À medida que andava, seus pés ficavam cada vez mais leves e ágeis: ele realmente estava flutuando! Seguiu em direcção à escuridão e, de repente surgiu a sua frente uma luz muito brilhante, finalmente, vislumbrou a Via Láctea.
— Assim que atravessarmos o rio poderemos ver a mamãe – falou ele entusiasmado às crianças, assim que chegaram à beira do rio. As crianças começaram a bater palmas e a gritar:
— Mamãe! Mamãe!
O Vaqueiro segurava as crianças pelas mãos, mas a cada vez que tentavam atravessar o rio, aparecia uma enorme mão que os continham. A seguir, essa mão riscou o rio com um palito e dividiu-o em dois.
A água de um lado do rio ficou revolta, levantando ondas altas e fazendo aparecer rostos horripilantes que impediam a passagem do Vaqueiro e das crianças. Outra vez fora uma ideia do deus celestial. Ele tinha consideração pelo rapaz e o respeitava, mas não admitia que o jovem visse a Tecelã novamente, enfim, não podia perdoá-los. Por isso, ele pegou o palito e riscou uma linha na Via Láctea, impedindo a passagem do pai com as crianças. Nessa hora o Vaqueiro enfureceu, as crianças desesperadas gritavam pela mãe. Mas nada mudou, tudo permaneceu em silêncio. Passado um tempo a menina disse:
— Vamos utilizar os cestos para esvaziar o rio e assim poderemos passar para o outro lado.
Assim que terminou de falar, ela, o irmão e o pai começaram a retirar a água com os cestos. A água era muita e os cestos eram pequenos, e por mais esforço que os três fizessem, o nível da água continuava igual. Sem desistir, continuaram o seu trabalho.
— Que extraordinário! — comentou o deus celestial.
Comovido, o deus celestial concedeu um encontro anual ao casal e aos filhos. A partir de então, o Vaqueiro e as crianças foram morar no céu, mas separados da Tecelã pela Via Láctea, cada um morando em margens opostas do rio.
O deus celestial concedeu à Tecelã, ao Vaqueiro e aos filhos um encontro anual na noite do sétimo dia, do sétimo mês do calendário lunar. Nesta ocasião, as pegas fazem uma ponte ligando as duas margens e a família pode se reencontrar.
Nesta noite chove na Terra, essa chuva corresponde às lágrimas do casal.
No século XXI, com a secularização dos costumes, parece ser raro que alguma moça ainda reze nessa data que lhe seja conferido a habilidade manual para o corte e costura. A destreza desta arte é cada vez mais do domínio de poucas, pois, a formação de uma bordadeira excelente requer tradição e tempo de experiência — cada vez mais raro nesses dias em que o retorno imediato é a tónica e o trabalho manual é menos valorizado. Lembro-me que numa visita realizada à Suzhou e Hangzhou, sítios de excelência da tecelagem e bordado em seda, o director do Instituto de Bordados e Tecelagem em Seda reclamar da carência de mãos habilidosas. O motivo seria de duas ordens: ao longo tempo exigido para a formação das bordadeiras e à mecanização que substituiu à mão de obra. Por outro lado, da antiga tradição ainda se percebe a busca pelo amor, o que faz com que a comemoração permaneça viva.
Hoje em dia, a data é festejada pelos namorados com jantar regado à luz de velas, em que são oferecidos balões, flores, perfumes, bolsas, gravatas entre outros presentes. Os ainda solteiros, mas com pretendente à vista, aproveitam para enviar mensagens electrónicas convidando para começar o namoro neste dia dedicado à união.