Macau na missão Cabul

Quando há uns anos palmilhava o caminho entre casa e o Liceu de Macau, Olívia de Souza nunca pensou que passado algum tempo ia andar a rebolar na lama no meio da serra de Sintra, perto de Lisboa, como se de um filme do Rambo se tratasse. Hoje Olívia de Souza é provavelmente a única macaense que sabe combater incêndios, é uma entendida em protecção em ambiente nuclear, radiológico, biológico e químico, sabe lidar com engenhos explosivos, disparar armas pesadas e, ao mesmo tempo, salvar vidas. Olívia é médica na Força Aérea Portuguesa e foi como tal que passou meses num dos teatros de guerra mais intensos do mundo – Cabul, a capital do Afeganistão. Poucos macaenses têm esta experiência no currículo - viver na guerra para fazer a paz

 

Afeganistao

 

Texto Macao magazine | Fotos Arquivo pessoal

 

Quem vê Olívia Fátima de Silva Souza na rua, ou num centro comercial de Lisboa, nem lhe dá os 34 anos que tem, nem a imaginaria capaz de disparar uma arma ou a desmontar uma bomba, quase com a mesma facilidade com que agarra no telemóvel para mandar um mensagem na esplanada de um restaurante. Vestida com uma bata ou com uma farda da Força Aérea, Olívia passa a ser a Capitã-Médica Olívia de Souza e fica muito mais perto do retrato de Maverick, o piloto de caças interpretado pelo actor norte-americano Tom Cruise no filme Top Gun.

A carreira de medicina, a estada em Portugal, a troca da vida civil pela militar, nada disto foi planeado, nem pensado. Se o sonho de Maverick sempre foi ser piloto, a Olívia nunca lhe tinha passado sequer pela cabeça ir viver para Portugal, quanto mais ingressar na Força Aérea Portuguesa (FAP).

Olívia nasceu ao pé do jardim de Lou Lim Ieoc. Daí passou a viver na calçada de Santo Agostinho e daí para o pé da avenida da Praia Grande. As avós são do Sul da China, os avôs são de Portugal. Bem antes sequer de haver aeroporto em Macau, Olívia passava os dias no Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, e foi depois estudar para a actual escola luso-chinesa Sir Robert Ho Tung, antiga escola primária oficial de Macau. Daí saiu para a Escola Comercial, depois, para o Liceu de Macau. Foi aí, quando tudo corria normalmente, que a vida lhe deu uma volta.

“No fim do liceu, fiz as provas e ligaram-me do apoio pedagógico. Disseram que queriam falar comigo com alguma urgência antes de eu entregar os papéis para a faculdade. Disseram-me que tinha notas para entrar em medicina e sugeriram-me que fizesse isso”, conta a Capitã-Médica. Olívia, ao princípio, ainda torceu o nariz à ideia. Medicina, pensava, “dava demasiado trabalho”, mas ficou convencida com o argumento que lhe deram no liceu: caso se arrependesse era mais fácil mudar de medicina para outro curso, do que de outro curso para medicina. E era arrependida que Olívia apostava que ia ficar, até porque se tinha já pensado numa carreira nas ciências, nunca lhe tinha passado pela cabeça ser médica. “Tinha ficado fanática pela investigação em laboratório. Tinha pensado em investigação, biologia, farmácia, bioquímica, tinha escolhido tudo menos medicina”, lembra.

Mas foi medicina a escolhida. Olívia deixou para trás em Macau uns pais contentes e orgulhosos, mas também cheios de saudades. Depois do choque da partida, para Olívia o grande choque foi a chegada. “O primeiro embate em Portugal foi muito difícil. Para quem estava habituada a viver num sítio em que se falava 99 por cento em cantonês, era difícil falar sempre em português, de manhã à noite, despedir-me das pessoas em português, dizer boa noite em português”, recorda. “No meu primeiro dia de faculdade, só queria voltar para casa, honestamente. Para mim, era tudo desconhecido. Desconhecido fisicamente, mas também não conhecia as pessoas. Basicamente, fui sozinha”, acrescenta, lembrando o que lhe custavam as pequenas coisas, como ter de comprar o passe para o autocarro, o não poder ir a todos os sítios a pé.

Chegada a Lisboa, Olívia instalou-se primeiro em casa de um tio antes do pai ter tido a ideia de a pôr a viver num lar de freiras, onde ficou até ao terceiro ano da faculdade, quando passou a viver numa casa com mais duas raparigas de Macau.

Macau, no entanto, continuava a ser uma das pedras de toque da vida da jovem estudante, e foi mesmo na então missão de Macau, no centro de Lisboa, onde acabou por conhecer o futuro marido, que é de Xangai e foi para Portugal aos 20 anos ter com a família.

Se até aqui a vida de Olívia ainda estava por decidir, a pouco e pouco as peças do puzzle foram-se completando. A partir do quarto ano do curso, decidiu que queria tirar a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF), para ser médica de família. Do que mais gostava – e gosta ainda –  é da abrangência da área, uma especialidade que envolve todas as idades. “Quando comecei a conhecer melhor o grupo de amigos da faculdade, com quem depois fiz o resto do curso, comecei a gostar de Portugal. A pessoa começa a gostar da liberdade, de estar longe dos pais, de poder fazer as coisas por conta própria.”

A ideia de ir trabalhar para um hospital ou para um centro de saúde de Macau foi assim sendo abandonada. A ideia foi posta completamente de lado quando uma certa carta chegou a casa. Foi aí que Olívia mudou de vez a agulha. Os pais não gostaram muito da ideia. “Ficaram chocados, não estavam à espera. O meu pai, então – ele não diz, mas acho que foi quem sofreu mais. A partir do terceiro ano, eu acho que já sabia que não ia voltar para Macau, porque já tinha o meu grupo de amigos, comecei a habituar-me ao estilo de vida de Portugal, não me custava nada ficar.” A carta foi uma surpresa. “Recebi então uma carta do Centro de Recrutamento da Força Aérea, com várias especialidades, e havia uma grande escolha. A primeira era MGF e eu pensei, se calhar não custa nada experimentar. Entreguei os papéis no centro de recrutamento, só para experimentar. Pensei, pode ser que dê, ou não, não tenho nada a perder.”

Depois de uma visita ao hospital da Força Aérea, Olívia ficou ainda mais convencida até porque, lembra, foi bem recebida e atraiu-a a estabilidade profissional, da entrada para o quadro.

 

Do bisturi para a G3

Mas para entrar na Força Área, foi preciso suar – literalmente. Se num outro emprego só é pedido um teste psicotécnico ou entrevistas, a Força Aérea exige a Prova de Aptidão Militar (PAM), que determina se o candidato está apto para ingressar na vida militar. Para a franzina Olívia, foi uma mini recruta de duas semanas na base aérea de Sintra, com provas psicotécnicas, exames médicos e provas físicas, a que segue uma iniciação à vida militar. “Quem é civil, não está à espera do que vai encontrar na PAM. É um choque, mas pela positiva. Nunca imaginei que me iam atribuir um camuflado, umas botas, que ia andar na lama, a rastejar na Serra de Sintra. Nunca antes tinha feito, só tinha visto nos filmes do Rambo. E aquilo parecia um filme. Aprender a marchar, formaturas, tudo para mim era uma grande novidade. Vestir o camuflado, deixar de estar à civil.”

A jovem recruta lembra-se de “viver tudo ao máximo nesses dias” e de, já na última fase, ter de um momento para o outro de fazer marchas nocturnas, de acordar de manhã já cansada, de pegar pela primeira vez numa arma. “Foi uma sensação muito estranha. Nunca tinha pegado numa arma pesada como a espingarda G3. Estava habituada ao estetoscópio, a bisturis, coisas assim mais ligeiras. Estar a andar com uma arma, marchar com uma arma, nada disso fazia parte da minha vida. A sensação de disparar pela primeira vez deu-me nervos e algum medo, apesar de estar tudo monitorizado, de termos sempre gente connosco.”

Olívia de Souza passou assim, sem nada na sua vida o ter alguma vez feito prever, a integrar os quadros do pessoal de saúde da Força Aérea Portuguesa. “A minha mãe achou muito estranho, o meu pai não tanto porque já tinha feito o serviço militar. Mas a minha mãe achava que eu não tinha perfil nenhum, embora tenha acabado por assimilar a ideia.”

Já casada, em 2004, a Capitã-Médica Olívia teve a primeira colocação, na base aérea de Monte Real, ao pé de Leiria, no centro de Portugal, no início de uma carreira na Força Aérea onde deixou sempre uma boa impressão por onde passou. “É um exemplo como militar, com sentido de dedicação ao serviço e à instituição das FAP, sendo de destacar a forma abnegada como trabalhou em função do serviço e dos militares e civis a quem prestávamos cuidados”, diz Manuela Tátá, Chefe do Serviço de Pneumologia do Hospital da Força Aérea, superior de Olívia entre Setembro de 2010 e Abril de 2011. “Ela tem excelentes qualidades humanas e profissionais.”

Entretanto, Olívia voltava a Macau sempre que podia nas férias, normalmente uma vez por ano. O suficiente para os amigos e a família verem como a Força Aérea estava a fazer diferença. “Os meus pais diziam que eu estava um bocadinho mais mandona, achavam que eu tinha ganho algum autoridade. Passei a chegar a casa e começar a dar algumas ordens. Até em casa, ainda hoje, esqueço-me às vezes de que já me desfardei. Chego a casa e começo a dar instruções e a organizar as coisas, e o meu marido diz-me ‘não estamos na tropa’. É-nos incutida muita responsabilidade. No início estranhava muito. Em Monte Real fardava-me, vestia-me como uma militar. Mas não tinha muita noção de ser uma militar. Mas depois, com o tempo, as coisas enraízam-se.”

Olívia manteve-se sempre em contacto com os amigos de Macau. “Eles achavam o máximo eu estar na FAP. Perguntam-me sempre o que eu faço, o que é o meu dia-a-dia. Para eles é muito interessante ter uma amiga que é tropa.” Nos fins-de-semana, guarda sempre um tempo para falar com os amigos da terra, até porque, em Lisboa, são cada vez menos os macaenses no seu grupo.

Ainda assim, Olívia continua a ir ao yam-tcha em Lisboa com a família. A médica tem em Lisboa agora a mãe, o marido, a filha, de quatro anos, e alguns tios mais afastados. “Mantemos ainda algumas tradições de Macau.” A família sente-se hoje confortável com a pertença à FAP, que até ajuda a alguma identificação entre Olívia e as gerações mais velhas. “A minha família é grande, e muitos tios fizeram em Portugal o então serviço militar obrigatório. De certa forma ganhei também alguma identificação com os meus tios, com a geração dos meus pais”.

Especialidade médica acabada, em Fevereiro de 2010, Olívia apresentou-se na Direcção de Serviços para saber do futuro. Deram-lhe uma unidade a escolher e Olívia pediu a Base Aérea número 6, no Montijo, perto de Lisboa. “E fui para onde fui, mas antes deram-me outra proposta.” Esta proposta era um pouco mais longe da casa de Olívia que o Montijo. Era Cabul, a capital do Afeganistão, mais precisamente.

 

SOS Cabul

“Disseram-me que me colocariam, com todo o gosto, no Montijo, mas que antes tinha uma missão. Pensei que fosse uma missão nacional, pacífica. Mas depois pensei que, como me tinham mandado sentar, é porque a conversa iria demorar. Quando me disseram Cabul, fiquei de boca aberta. Ia caindo para o lado, pensei que estivesse a ouvir mal”, recorda Olívia.

A jovem macaense admite que andou um tempo preocupada, sem saber o que iria fazer para o Afeganistão, até que a Força Aérea lhe ensinou a fazer o que muito pouca gente em Macau sabe fazer. No curso de Individual Common Core Skills aprendeu tiro e defesa pessoal, a manusear diferentes armas, a combater incêndios, a saber o que fazer com engenhos explosivos, a enfrentar armas biológicas e químicas.

A família, entretanto, tinha recebido as notícias de forma diferente. “A minha mãe entrou logo em pânico. A minha filha ainda não percebia. A minha irmã, que estava a passar férias comigo nessa altura, também entrou em pânico. Cabul, Afeganistão, eram coisas muito perigosas. Elas perguntavam o que eu ia fazer, e eu dizia que não sabia, que só chegando lá é que ficaria a saber.”

O marido assumiu um ar mais calmo, mas também se engasgou quando soube. O pai manteve também um semblante calmo, e disse à filha que tudo iria correr bem. Daí para a frente, foi uma roda-viva, com os familiares todos os dias à procura de coisas na Internet sobre o Afeganistão. “No início eles tinham um certo receio, pelo perigo que uma pessoa lá podia correr. Eu nem tinha tempo para ver nada. Andava sempre em formação. Também não tentei investigar muito, por que o que tem que ser tem que ser, o que é para ser é. O que me interessava mais na altura era quanto tempo ia lá ficar e saber quais seriam as minhas funções. Os meus amigos militares que já tinham feito missões, embora mais calmas, disseram-me também que tudo ia correr bem. E correu.”

A 12 de Abril de 2010, no aeródromo militar de Figo Maduro, em Lisboa, Olívia embarca para o Afeganistão, num Hércules C-130. A viagem lembra os Grand Tours do século XVIII – antes de chegar a Cabul parou em Salónica, na Grécia, e em Baku, no Azerbaijão.

Se na viagem a macaense não sabia o que ia, à chegada só se lembra de pensar uma coisa: “Vim parar ao deserto.” Já tinha visto fotografias, mas a realidade para Olívia era na altura tudo menos realidade “Era completamente surreal. Montanhas por todo o lado, deserto, altitude, areia, pó”. Ao desembarcar do Hércules, ao pisar pela primeira vez o alcatrão da pista do Aeroporto Internacional de Cabul, que iria ser nos próximos meses o mundo, a casa e o local de trabalho de Olívia, ela olhou, saco às costas, por detrás do ombro.

Como pano de fundo, cenário mas também limite do horizonte, as montanhas de cumes nevados que rodeiam Cabul, as nuvens que nascem detrás das montanhas e que indiciam um mundo que não se vê, o silêncio do amanhecer nas ruas de casas pré-fabricadas atravessado apenas pelo Land Rovers da missão da NATO, que cruzam o amanhecer. As montanhas são tão altas que parece que começam onde a base acaba, no arame farpado que separa a base do resto da cidade, e do resto do mundo.

“Mal cheguei, deram-me o que cada um tinha: arma, capacete, colete e munições. Não havia nada para o meu tamanho.” A missão era um contrato que Portugal tinha com a NATO, entre Julho de 2009 e Julho de 2010, separado em três destacamentos médicos, cada um com uma missão de quatro meses, cada destacamento com 16 elementos.

Trabalhar em Cabul era pesado, sobretudo as urgências. Muito mais do que o simples centro de saúde de Macau ou de Portugal, onde a médica tinha planeado fazer vida quando ainda estudava. O hospital do aeroporto da capital afegã recebia feridos graves e oferecia especialidades mais escassas no país, como neurocirurgia.

Olívia e um grupo de médicos internacionais, sobretudo franceses, lidavam diariamente com cerca de 30 feridos graves nas urgências. Homens, mulheres e crianças, muitos mutilados, muitos corpos que nunca serão como antes, que se terão de habituar a viver para sempre sem pernas, sem braços, sem olhos. “Eram sobretudo vítimas que exigiam cuidados de trauma, ortopedia e cirurgia. São vítimas civis e militares. Os civis eram afegãos, danos colaterais; os militares eram efectivos da International Security Assistance Force (ISAF).”

“Era pesado. Ver doentes tão traumatizados, em estado tão grave. Eu não estava à espera. Um médico de família costuma trabalhar em centros de saúde. Eu estava na enfermaria das urgências, porque não havia mais ninguém”. Olívia respirou fundo, e disse que conseguia. “Fiz o meu melhor. O que é muito pesado de ver são crianças mutiladas. Havia muitas. Crianças amputadas, porque há o pós-dano colateral, por exemplo, de tiros, ou pisam numa mina e levam com estilhaços. A sensação de ver uma criança mutilada dói, dá um aperto no coração.”

Os dias em Cabul não eram fáceis, mas o ambiente era de alguma forma cosmopolita e interessante em termos profissionais. Olívia diz ter aprendido muito – quer profissional quer culturalmente – com as equipas médicas alemãs, francesas, belgas, romenas ou americanas. Uma das coisas mais interessantes era o jogo dos palpites sobre as origens de Olívia. De japonesa a coreana, de filipina a tailandesa, ouviu de tudo. Um francês de origem vietnamita ainda pensou ter adivinhado em Olívia um patrício. Atiraram-se todos os países à volta do pequeno território nas costas do Mar da China, menos Macau.

Se de Portugal a jovem médica ainda matava saudades com uns bacalhaus ou com uns enchidos que chegavam de vez enquanto a Cabul, de Macau era mais difícil, até porque não havia ninguém da China na base. Cantonês só falava pelo telefone com a família. Para se lembrar, Olívia ligava o leitor de músicas e ouvia a Tuna Macaense. “Mal os ouvia, sentia-me mais próxima da minha terra e da minha família”, recorda.

Se não fosse pela música, também não era pela mesa que Olívia mataria saudades. Na base, a comida era como numa pequena cidade norte-americana – hambúrgueres, cachorros, fajitas, pizzas. Macaense não havia nada, mas de chinês também só havia cup noodles para aviar. Só um restaurante tailandês na base conseguia, fazer, por vezes, encurtar distâncias com Macau.

Os restaurantes, os jogos de pingue-pongue e de bilhar, a pouca vida social serviam apenas para aligeirar uma missão que exigia muito dos efectivos devido ao investimento emocional. “Como trabalhava no internamento, e como eram feridos graves, ficavam lá algum tempo a convalescer. Sobretudo as crianças foi o que mais me marcou. Não estava à espera de receber tantas crianças com danos colaterais, feridos graves, de várias idades, desde meses até ao mais velho que recebi, que tinha 13 ou 14 anos. Como morria de saudades da minha filha, passava muito tempo com as crianças, como se fossem meus filhos. Quando os deixei, marcou-me. São crianças, estão feridas.”

Um dos desafios, recorda, era conseguir com que os feridos afegãos ultrapassassem o medo e a desconfiança de quem vem de um mundo totalmente hostil, onde se mata e se morre, para um hospital. Olívia diz que rapidamente o gelo se conseguia quebrar – graças também ao apoio dos médicos afegãos que ajudavam a ultrapassar a barreira linguística e cultural – mas percebia a dificuldade dos feridos afegãos. “Como qualquer outra pessoa, quando o doente entra, não me conhece a mim, desconfia. Nestes povos em conflito, desconfiam mais, é normal. Têm muito medo daquilo que nós fazemos, porque nunca viram, nunca foram tratados num hospital como deve de ser, por alguém que saiba minimamente tratá-los e, portanto, é necessário explicar passo a passo do que vamos fazer”.

Uns feridos aprenderam a tomar banho, a fazer a barba, ou a dar banho aos filhos. Outros a utilizar uma sanita. Passado pouco tempo os doentes, conta Olívia, já recebiam os médicos “quase com afecto, já não tinham aquele medo”. As crianças, em especial, aprendiam rapidamente algumas palavras em português – bom dia, boa tarde, boa noite.

Além da Tuna Macaense, os dias afegãos de Olívia passavam-se também ao som da música de Jason Mraz ou dos portugueses Rui Veloso, Pedro Abrunhosa ou João Pedro Pais. Dias cheios, onde a médica nem teve quase tempo para pegar nas “toneladas” de livros científicos que tinha levado, na esperança de ter uns dias para estudar. No entanto, se não aprendeu ali muita coisa nos livros, a vida ensinou-lhe coisas que nunca irá esquecer. “A visão do mundo muda radicalmente depois de uma experiência destas. Uma pessoa vive de maneira muito diferente e quando regressa, vê as coisas completamente diferentes. Relativiza muito mais. Acho que damos muita importância a coisas fúteis. Os afegãos não têm nada. O povo afegão ensinou-me isso”, frisa a Capitã-Médica.

Quase de lágrimas nos olhos, Olívia lembra a forma como as mães improvisavam com resguardos hospitalares fraldas para os meninos afegãos, amarradas com nós improváveis. Ou a alegria das crianças quando recebiam no hospital uma caneta, um papel, um boneco. Ou a emoção das mães, que, quando saiam do hospital de volta ao mundo lá fora, recebiam um pacote com latas de comida, sabonetes, escovas, pasta de dentes e pentes. “Fechámos a loja com a sensação do dever cumprido, com a sensação de que deixámos alguma coisa bem feita. Pelo menos no período em que estiveram connosco, conseguimos melhorar em alguma coisa a vida daquelas pessoas. Nunca vamos conseguir melhorar tudo – gostaria de o poder fazer e toda a gente da minha equipa gostava também de o conseguir, mas pelo menos durante uns dias, uma semana, uma quinzena, demos alguma coisa que eles, se calhar, nunca tinham tido na vida.”

No final, Olívia só a algum custo consegue reconhecer a miúda saída do Liceu de Macau para passar sozinha uns anos em Lisboa, e mesmo assim meio contrariada. No final desta estrada, desta caminhada de vida pelo Afeganistão, Olívia nunca mais olhou para o mundo da mesma maneira. Olívia sente ainda que, depois de uma missão onde deu tudo, foi ainda ela que ficou a dever àqueles que mais ajudou. “Se calhar, mudaram-me mais eles a mim que eu a eles. Eu não consigo mudar a vida deles, mas eles mudaram a minha. Porque eles vão continuar a ficar por lá, nós é que estivemos de passagem por um sítio completamente diferente, vivemos coisas diferentes, vimos coisas diferentes e depois trouxemos para o dia-a-dia o que sentimos.”