Fado com sotaque chinês

Apaixonou-se por um português no comboio transiberiano, mudou-se para Portugal e foi tocada pelo fado. Cao Bei é a única pessoa que canta fado em mandarim. A passar uma temporada em Pequim, Cao contou a sua história de amor, a aventura e o choque de deixar a China há 20 anos para casar e viver num monte nos arredores de Lisboa. Falou do seu fado oriental e do sonho de cantá-lo na China

 

Fadista Chinesa

 

Texto Vera Penêda, em Pequim

 

Agarrando o xaile preto que lhe cai das costas, fecha os olhos e canta o fado. Muda de verso embalando o torso e lançando o queixo no ar. Franze o sobrolho com o peso da saudade. Tem jeito de fadista. Só que esta cantora veste qipao de seda, tem olhos rasgados e nasceu na China, a uma distância intercontinental da terra-mãe do fado. De repente, a Lágrima, canção intemporal da diva maior Amália, ouve-se em chinês e ao som do guzheng, uma cítara chinesa. O público espanta-se e encanta-se com um espectáculo que une a cultura milenar chinesa ao património português do fado.

“O meu fado tem um pouco de tom chinês”, conta Cao Bei antes de entoar Lágrima sem resvalar nos “erres”. “Perguntei-me muitas vezes se os portugueses aceitariam bem uma chinesa a cantar o fado”, conta a autodidacta, que há três anos afinou a voz para um fado que tem sabor oriental. Contente de abrir portas para uma ponte cultural sino-portuguesa, Bei acredita que pode oferecer um fado diferente.

“O meu concerto é uma fusão de cultura tibetana, budista e portuguesa. Canto o fado em português, mas também em chinês e acompanhado com instrumentos chineses. Penso que tem um efeito diferente e exótico para o público português e por isso é que as pessoas batem palmas”, explica com um sorriso enquanto canta em chinês “Wo zhidao wo de ai…. O fado já lhe corre no sangue. “Gosto dos tiques vocais e da emoção do fado, do que me faz sentir. Mas sou chinesa, acho que tenho obrigação de mostrar a música tradicional do meu país que é mais exótica em Portugal”, explicou, contente com a forma como o seu fado tem sido bem aplaudido pelo público português.

 

De Pequim para Lisboa por amor

“É uma história muito engraçada. Começou no transiberiano”, solta Cao. “Eu era professora universitária de Economia Política, ensinei durante oito anos em Pequim”, relembra a deixar transparecer a emoção de quem tem uma história única para partilhar. “Comecei a ter dificuldade em explicar as teorias de Karl Marx que descreviam os países capitalistas como sendo pobres e com uma população que vivia na miséria. Na época, com a abertura da China ao exterior, os meus alunos que viajavam para fora regressavam a dizer que a vida nos Estados Unidos e na Europa não era assim”, notando que acabou por perder o interesse pela carreira de professora aos 29 anos.

Cao apanhou então o comboio que percorre a Linha Transiberiana de Pequim para Moscovo para tentar fazer negócios na capital russa. “Foi durante os seis dias de viagem no comboio que conheci o meu marido Carlos.” De regresso a Portugal depois de uma temporada na China para a sua tese de doutoramento, Carlos reparou em Cao no comboio e começou a cortejá-la. “Notei que um homem estrangeiro, de barba, estava sempre a olhar para mim e que me seguia. Convidou-me para jantar, disse-me que tinha curiosidade em conversar comigo”, recorda a acrescentar que negou o pedido do estranho.

Durante três dias Carlos esperou à porta da cabine de Cao com chocolates e fruta. “Viajámos em Dezembro e quando passámos pela Sibéria, emocionei-me com aquele cenário todo branco e comecei a cantar ópera. As pessoas vieram ouvir-me e o Carlos também.”

Emocionada com a atenção, Cao aceitou o convite para jantar. “Gostei muito de conversar com ele. Era um homem culto e interessado pela China, partilhávamos um gosto por cultura. Ele dizia-me que eu tinha a pele bonita e eu pensava que ele estava a brincar comigo. A minha pele é meio morena e na China a pele branca é que é sinal de beleza”, conta entre sorrisos, dizendo que na época se entendiam em inglês.

Chegando a Moscovo, trocaram contactos e já não se largaram mais. Foram juntos ao balé, à ópera e visitaram o mercado de antiguidades. Mas Carlos seguiu caminho para Portugal e Cao ficou em Moscovo. “Durante um mês, todos os dias enviava-me um fax, às vezes dois por dia, e escrevia palavras muito bonitas.” Carlos regressou então a Moscovo, onde chegou a conhecer os pais da namorada, que estavam de visita. “Os meus pais acharam que era um homem honesto, humilde, que era de confiança.” Com o aval concedido pela família, Cao mudou-se em um mês para Lisboa. E já lá vão 18 anos.

 

Choque, solidão e fado

Foi mais fácil apaixonar-se por um homem português do que por Portugal. “Quando saí do aeroporto em Lisboa tive uma grande desilusão, achei que a cidade tinha um ambiente velho, antigo. Depois lembro-me que o carro nos levou por caminhos estranhos e escuros. O meu marido vivia fora da cidade, a casa dele era no meio do nada. Eu só pensava onde me tinha ido meter”. Cao tinha ouvido falar de Portugal pela primeira vez no ensino secundário, a propósito dos Descobrimentos.

A cantora gostou da casa que a recebeu, mas a adaptação à vida no subúrbio lisboeta levou algum tempo. “Era uma casa muito modesta, pequena, de campo. No entanto, pareceu-me interessante, gostei do ar da serra. Mas foram tempos de solidão. O meu marido ia todos os dias trabalhar para Lisboa, eu não tinha vizinhos e ficava sozinha no monte. Não falava português e não conhecia ninguém.”

Em vez de continuar trancada em casa, Cao abraçou o desafio. “Resolvi tirar a carta de condução porque senão não podia ir a lado nenhum. E comprei livros para começar a aprender português. Lê-se como está escrito, foi fácil.”

Hoje em dia, Cao recorda as diferenças entre os seus dois países com alegria: “Não percebia porque é que as viúvas se vestiam de preto em sinal de tristeza. Achei muito estranho porque é que os portugueses, sendo tão trabalhadores, não aceitavam trabalhar num feriado pelo dobro ou triplo do salário. Lembro-me de perceber que podia falar-se abertamente em Portugal, mesmo que fosse para criticar o governo.”

Só foi em 1996 que descobriu o fado. “Lembro-me que foi durante um concerto em Setúbal, uma orquestra de Macau interpretou o Barco Negro com instrumentos chineses. Pensei: que música tão linda, exótica, com uma melodia meio árabe. O meu marido disse-me que era fado, a música nacional portuguesa. Pensei que tinha que saber mais, ouvir mais.” Teve então pressa de aprender, mas com a sua própria voz.

 

O desafio dos “erres”

Descobriu Dulce Pontes, Amália, Gonçalo Salgueiro, Ricardo Ribeiro e logo pediu ao marido que a levasse a ouvir mais fado. “Foi nas casas de fado em Alfama e na Mouraria que vi um fado mais rústico. Para mim era um ambiente misterioso, tudo me parecia interessante: a meia-luz, o xaile preto, o cantar de olhos fechados”, relembra a semi-cerrar os olhos.

Ávida por aprender, há dois anos e meio começou a explorar mais a fundo o género musical. “Com os meus dois filhos mais crescidos e o meu negócio [de exportação de seda] mais estável, comecei a ter mais tempo livre. Pensei voltar a cantar e quis experimentar o fado.”

As primeiras tentativas não saíram bem. O próprio marido lhe dizia que não soavam a fado. Mas a experiência com a Ópera de Pequim, que aprendeu a cantar aos 12 anos, ajudou-a a afinar a voz para um tom mais melancólico. “Há fados que não consigo aprender porque o português tem muitos erres. É complicado para mim. Sempre tive aulas de canto, tanto em Portugal como na China, mas aprendi o fado sozinha porque o meu objectivo não é cantar como os fadistas portugueses. Interessa-me oferecer um fado que mantém a tradição do estilo com um toque novo.”

A cantar em público desde os 12 anos, Cao passou por palcos universitários e depois de um interregno o fado fê-la regressar aos espectáculos. Publicou o blogue Fado Jasmim, fez contactos no meio da música e começaram a aparecer os convites para cantar em eventos. Com vontade de acentuar o cunho chinês do seu fado, resolveu aliar o guzheng ao canto. “Fui à China comprar o guzheng, as pautas e um CD. Em 15 dias estava preparada.”

As lições de piano que iniciou aos dez anos de idade ajudaram à aprendizagem da cítara chinesa. Entre Lágrima e Nem às Paredes Confesso, alguns dos seus fados preferidos, os seus concertos incluem canções em mandarim bem como música romântica chinesa e temas budistas.

O interesse por sonoridades diferentes da ópera vem desde a juventude. “Vivia em Pequim no final de década de 1980 e início dos 1990, quando a China começou a abrir-se ao exterior, comecei a ouvir jazz e música country. Foi nessa altura que também ganhei o gosto pela música tibetana e nepalesa. São estes estilos que hoje alio ao fado.” Desde então a cantora já actuou a solo e com outros fadistas no Teatro São Luiz, no Centro Cultural de Belém, na televisão portuguesa e em eventos luso-chineses.

 

Alma lusa

Cao está de regresso à China por uns meses acompanhando os dois filhos adolescentes, que chegaram a Pequim para estudar mandarim. Mas o seu coração bate por Portugal. “Em Pequim nunca vi o céu azul, não quero viver aqui. Há muita poluição”, diz a fadista, que é natural da província de Sichuan no sudoeste do país. “Nasci em Mianyang, uma cidade calma, de clima húmido. É a província da comida picante e dos pandas.”

A China dita-lhe a nacionalidade, mas Portugal conquistou-lhe o coração. “Gosto muito do clima e acho os portugueses muito simpáticos e educados. Tenho saudades do sol e das praias, tenho lá os meus amigos músicos. E a gastronomia portuguesa? A-do-ro, carne de porco à alentejana, caldeirada, arroz de marisco, bacalhau com natas. Adoro tudo e aprendi a cozinhar”, revela a explicar com orgulho a receita do Bacalhau à Braz em três passos simples.

Cao não pretende regressar ao seu país natal para aproveitar a onda de prosperidade económica. “A China muda a uma velocidade surpreendente, até para mim. Há 20 anos ainda era um país fechado e as pessoas não tinham dinheiro. Agora anda-se à vontade, com um ambiente mais livre e sente-se a força económica do país”, observou durante a entrevista no Imperial Club, um luxuoso clube privado, paredes-meias com a cidade proibida.

A cantora sonha, no entanto, levar o fado para a China. “Quero, mas não sou eu sozinha que consigo fazer este trabalho. O nome de Portugal ainda não está muito divulgado na China. Os chineses conhecem os futebolistas portugueses e pouco mais. Para divulgar Portugal e o fado, preciso de ajuda da embaixada e dos empresários portugueses”, deixou o apelo, acreditando no potencial do fado junto do público chinês. “Os chineses são curiosos e estão receptivos ao que vem de fora. Não sentem uma necessidade de descobrir novos estilos musicais porque há muita variedade de música chinesa. Mas se houver promoção, acho que vão gostar do fado como eu gosto.”