Ana Cristina Alves
Doutorada em Filosofia da Cultura Chinesa
A Divindade Estelar da Prosperidade (Lù 祿) integra-se num grupo de três, sendo as restantes a Felicidade (Fú福) e a Longevidade (壽 Shǒu 壽). Entre os símbolos mais utilizados para identificação destas divindades, encontramos, como se recordam: a criança associada à felicidade, mas também por homofonia ao morcego (biānfú 蝙蝠); o veado [lù 鹿 (cervus nippon taiouanus 梅花鹿 ), ainda por homofonia perfeita com o carácter Lù de emolumento ou salário (lù 祿), que constitui a Divindade da Prosperidade e Dignidade; e o ramo de pessegueiro e o pêssego representam a divindade da Longevidade.
Um breve olhar sobre a Divindade da Prosperidade indica-nos que se trata de uma figura bem apessoada, detentora de um magnífico salário, como indica o veado que se esconde por trás das suas vestes mandarínicas, além disso ostenta o chapéu e outros símbolos de mandarim. Esta é a representação mais política das três divindades, ele é a figura de estado, que se distingue, devido ao seu imenso saber e, por isso, surge em estreita conexão com a Divindade da Cultura Florescente (文昌帝君), da qual será dada, no ponto seguinte, uma breve biografia.
Por agora interessa reter que para se ser bem sucedido nos exames imperiais (科舉), porta de entrada no mundo dos governantes, é preciso apelar à protecção de uma divindade estelar específica, a da Prosperidade, que até à dinastia Song do Norte (北宋) se encontrava intimamente associada à da Cultura Florescente. Ora esta é uma estrela, que ocupa a sexta casa da Ursa Maior e como tal vai dirigir celestialmente os destinos dos arrojados terráqueos que estudam para os exames, a fim de os vencerem e de transporem o imenso fosso entre governantes e governados, garantindo com o salto um bom estatuto social, necessariamente acompanhado por um salário alto.
Ficam deste modo intimamente associadas posição social e financeira, como é dado a observar em inúmeros ditos proverbiais chineses, dos quais apenas serão citados alguns dos mais conhecidos: Ascender a mandarim e entrar para a nobreza (升官進爵); ser-se submetido aos Exames Imperiais (科舉及第);e Alto status, grande salário (高位重祿).
Na grande maioria dos provérbios, mérito poder e salário parecem harmonizar-se perfeitamente, uma vez que os candidatos têm de passar por exames, esforçar-se com aplicação e os mais crentes até rezarem fervorosamente; porém nalgumas expressões podemos encontrar uma crítica e denúncia a certas situações, onde salário e mérito surgem afastados, como em: Embora sem mérito, recebe o seu emolumento (無功受祿) ou em: Ainda que nada faça, tem estatuto e recompensa pecuniária (無任之祿).
O Supremo Senhor da Cultura Florescente (文昌帝君)
A Divindade Estelar da Prosperidade esteve confundida até a dinastia Song do Norte (北宋) com o Supremo Senhor da Cultura Florescente, tendo a partir daí assumido a identidade de Divindade Estelar da Prosperidade. Actualmente, podemos estabelecer a distinção, nomeadamente em Taiwan, entre as duas divindades, integrando-se o Senhor Supremo da Cultura Florescente num grupo conhecido por Divindades da Cultura, são elas: Confúcio (孔子公), Zhuxi (朱文公), O Senhor Supremo da Cultura Florescente (文昌帝君) e a Divindade da Literatura e da Guerra, Guandi (関聖帝君). O Texto que apresentamos sobre o Senhor da Cultura Florescente integra-se num trabalho de investigação realizado pela autora em Taiwan em 2011, intitulado Histórias das Religiões Taiwanesas (pp. 220-221)
O Senhor Supremo da Cultura Florescente (文昌帝君) é profundamente venerado em Taiwan, porque aqui, com em todo o mundo chinês, pais e filhos estão verdadeiramente preocupados com os estudos e os exames. O Senhor Supremo da Cultura Florescente era originariamente uma estrela protectora do destino humano e da felicidade social, que desde os tempos antigos na China está relacionada com o estudo e a pesquisa.
Na altura dos exames, estudantes e seus familiares acreditam que se derem o melhor deles, o Senhor Supremo Cultura Florescente fará o resto. Por isso vão a um dos Templos da Cultura (文廟), onde esta divindade pode ser venerada.
As famílias levam uma cópia do material de exame e flores de antraceno, aipo embrulhado em papel vermelho e uma lanterna brilhante para apelar ao êxito dos estudantes. Nas vilas tradicionais são empregues os mesmos ritos para celebrar o aniversário desta divindade. Os crentes reúnem-se e rezam com profunda convicção durante o período de exames.
Para rogar pelo auxílio de Cultura Florescente, recorrem a símbolos impregnados de sentido, tais como: a flor de antraceno, que representa a inteligência; o aipo, que simboliza o estudo intenso e a concentração; e a lanterna ou a vela a solicitar iluminação para os projectos futuros e em especial sucesso nos exames.
A Cultura Florescente em Taiwan governa os destinos humanos e a felicidade, bem como a má sorte, a vida e a morte e claro a fama meritosa, que transcende a vida humana. Junto desta divindade, podemos observar o cavalo espiritual (祿馬神), simbolizando elevada posição social. Há um provérbio que lhe anda associado, muito utilizado quando se reza à Cultura Florescente e ao cavalo seu companheiro: «o cavalo da felicidade deve correr, à medida que se eleva na escala social. (祿馬得得跑,官位步步升)[1].» A veneração do Senhor Supremo Cultura Florescente não é exclusiva dos círculos confucionistas. Há histórias taoístas relativas à sua humanização. Entre as várias existentes, escolheu-se aqui referir apenas duas. De acordo com a escola taoista, a Estrela Celestial veio à terra, porque era um dos filhos do Imperador Amarelo.
Dos Zhou à dinastia Yuan renasceu 917 vezes, de modo a assistir todos os esforços dos homens de cultura.
Na outra história taoísta sobre a sua humanização, viveu durante a dinastia Tang, sendo um homem de cultura chamado Zhang Ya (張亞). Nasceu em Zhejiang e foi ensinar para a Província Zitong (梓潼縣). Morreu adorado como o Senhor Supremo de Zitong (梓潼帝君), devido ao seu carácter moral e vontade de auxiliar as pessoas.
A Origem Celestial do Senhor Supremo Cultura Florescente
Segundo um documento sobre o Governo Celestial do Livro da História (《史記.天官書》) e pelo registo da Vontade Astronómica na Comunicação dos Hábitos Sociais (《風俗通.天文志》, Cultura Florescente é uma das sete estrelas que compõem a Ursa Maior. Ocupa a sexta residência (também conhecida pelo nome de «Palácio do Senhor Supremo Cultura Florescente»), em frente da Estrela Kui (魁星). As divindades são denominadas pela posição oficial, com os seguintes cargos: «General Comandante-Chefe», «Segundo General», «Nobre Primeiro-Ministro», «Comandante do Centro», «Comandante da Vida» e «Comandante da Posição Social». Diz-se ainda que a sexta estrela é «Palácio da Cultura Florescente». Todas as noites cada estrela realiza o seu dever, à semelhança dos mandarins civis e militares dos tempos feudais. Pelo que fica dito, a sexta estrela, Cultura Florescente, cumpre as suas obrigações relativas à educação e aos exames, podendo ainda realizar outras obrigações celestiais.
根據《史記.天官書》及《風俗通.天文志》所載,言及〈文昌帝君〉就是北斗七星之中魁星前的文昌六府(即〈文昌宮〉),祂們就是〈上將〉、〈次將〉、〈貴相〉、〈司中〉、〈司命〉、與〈司祿〉之總稱。也就是說,〈文昌宮〉的六顆星,每一顆星宿都各有職司,如同封建制時代文武官員一樣。據此而論,原始的〈文昌〉六顆星非只專司教育及考試之文神而已,也各司其他的職務。[2]
A Divindade da Prosperidade e o Rei Wen de Zhou
Segundo a tradição chinesa a divindade da Cultura Florescente é apenas uma das possibilidades de filiação biográfica para a Divindade da Prosperidade, havendo outras filiações como aquela em que surge associada ao imortal Zhang da linhagem taoísta que concede filhos (送子張仙).
Ainda que a Divindade da Prosperidade ou da Dignidade se distinga menos pela sua influência nas esferas familiar e guerreira, embora também a tenha tido nos seus diversificados registos biográficos, e mais como ministro, letrado e até figura real, como no caso do grande Rei Wen [1171-1122(周文王)], pai do rei Wu (周武王), fundador da dinastia Zhou.
E se o primeiro imperador mítico chinês, Fuxi (伏羲), foi o grande descobrir dos oito trigramas que formam o núcleo filosófico chinês[3], o agrupamento dos trigramas nos sessenta e quatro hexagramas terá sido obra do rei Wen, de acordo com a história tradicional composta a partir da escola confucionista e que nos chegou aos nossos dias por meio de Feng Youlan (馮友蘭), Wilhelm e tantos outros.
Estes hexagramas indicam os vectores comportamentais essenciais aos descendentes do Dragão em todas as dimensões da ética à política, da ciência à religião.
Se a dignidade e a posição social se obtêm por meio de um esforço intelectual intenso, a ser recompensado pela abundância de respeito e riqueza, então o caminho para a obtenção desse mesmo estatuto virá explicitado no Clássico das Mutações (《易經》), devendo ser-lhe dedicado algum hexagrama, onde se possa ver como procedia um letrado aspirante a protegido da Divindade da Prosperidade, de modo a ascender em dignidade e a ser incluído na classe dos mandarins.
Ele existe e chama-se o hexagrama da Ascensão (升). É composto por dois trigramas: na base, o vento (巽) suave, gentil, que ganha corpo na madeira, no topo, a terra (坤), receptiva.
A imagem da ascensão, do ponto de vista naturalista, é composta por uma planta que germina dentro da terra e se esforça com muita energia para vir ao mundo e traçar o seu caminho de crescimento e desenvolvimento na direcção vertical, tal como indica o carácter (升) também ele a trepar até atingir a plena maturidade e definhar. A ascensão tem como finalidade a obtenção de algo grande e elevado, por isso implica um trabalho de transcendência de si próprio a partir do solo em que se está enraizado.
No juízo das linhas, pode ler-se:
Ascender dá o supremo sucesso.
Há que ver um Grande Homem.
Sem medo.
A partida para Sul
Traz boa sorte
(升,元享,用見大人,勿恤,南征吉)
Ascender é óptimo e deve ser o objectivo de qualquer pessoa de estudo, que tenha trabalhado muito para ser bem sucedido nos exames imperais. Não basta ascender um bocadinho, é preciso fazê-lo por inteiro e com grande confiança, como indica a linha de base: A elevação completa, é uma grande fortuna (初六:充升大吉). Na segunda linha faz-se um apelo directo ao apoio das divindades, naturalmente as da cultura: a confiança desenvolve-se com oferendas às divindades, sem erro (九二;孚乃利用禴). Na terceira linha somos informados o que espera esta esforçada planta: uma entrada numa cidade vazia (九三;升虛邑). É preciso notar que se está no final do trigrama do Vento, de modo que o letrado foi acumulando energia e saber, o que lhe faculta apenas a ascensão em dignidade, sendo reconhecido como um sábio entre os sábios. O sucesso material, que proverbialmente anda associado ao estatuto, dá-se na quarta linha, com a entrada no hexagrama da Terra (坤卦), pois há uma alusão indirecta à galinha dos ovos de ouro, que habita no Monte Qi (岐山) em Shaanxi (陝西) e, portanto, às eventuais recompensas pecuniárias: o rei oferece-lhe Qi Shan, boa sorte. Sem erro (六四;王用享于岐山,吉,无咎).
Do ponto de vista imagético, joga-se com várias trigramas nucleares formados a partir dos dois principais. É possível obter a partir do Vento (巽), do Lago (兌) e da Terra (坤), o Raio (震) e a Montanha (艮). Tal paisagem reúne as condições ideais para uma fortuna auspiciosa, já que a água alimenta a terra, além do mais, a firmeza da montanha, conjugada com a força criativa do raio, permite um sucesso duradoiro, como nos indica a quinta linha: A lealdade de intenções é auspiciosa, favorecendo uma ascensão por degraus (六五;贞吉,升皆) , devendo esta ser vista como a entrada no palácio imperial e portanto a concessão do primeiro grau de mandarim (進士). A partir daqui é perigoso e pode ser fatal continuar a pretender ascender, como nos indica a sexta linha, uma vez que o próprio trigrama da terra termina. Deste modo, não há qualquer benefício no pensamento constante em ascender às cegas. (上六; 冥升,利于不思之貞)[4].
Como seria de esperar, e de acordo com a tradição filosófica do Império do Meio, há um apelo frontal ao equilíbrio e à via do meio. Logo a ascensão sociopolítica tem que ter um termo, porque os extremos não mantêm a dignidade, nem o excesso de riqueza a postura. Não surpreende pois que a Divindade da Prosperidade seja figurada apenas com um lingote de ouro na mão.
Para terminar aqui fica um registo poético, à laia de resumo, sobre a acção da Divindade da Prosperidade no mundo dos antigos mandarins e actuais letrados.
A Galinha dos Ovos de Ouro e a Dignidade
No antigo Império do Meio
havia uma galinha de ovos de ouro
no Monte Qi em Shaanxi.
Recompensava ela a nobreza e restante realeza
com ofertas esmeradas e muito douradas.
Estas eram chocadas e polidas
ao sabor das noitadas e dos dias
dos futuros mandarins,
cujos parentes já dançavam ao som dos cornetins.
Os pais, esses, eram convocados por emissários imperiais,
anunciando ora audiências banais,
ora festividades solenes de requintes tais,
comprovadas por sedas, porcelanas e iguarias,
adquiridas em palácios de imortais.
Os alunos estudavam,
pedindo às Divindades da Cultura,
auspícios de longa dura,
enquanto belas paisagens em rolos caligráficos
os transportavam para outras margens.
E rogavam, rogavam, às divindades de Aquém
pela sorte de ir além.
[1] 吳冠衡(主編)2006《臺北市寺廟神佛源流》p. 104
[2] 董芳苑2010《台灣人的神明》pp. 86/7
[3] O Céu (乾) e a Terra (坤), O fogo (離) e a Água (坎), o Vento (巽) e o Raio (震), o Lago 兌) e a Montanha (艮).
[4] 張中奪(Zhang Zhongduo) 1995 《易經提要白話解》205/209.
Bibliografia
Livros
Alves, Ana Cristina. 2004 Representações do Feminino na Cultura Chinesa. A Mulher nos Discursos Filosófico, Religioso e Sociopolítico. (tese policopiada)
Alves, Ana Cristina. 2004.Uma Viagem de Muitos Quilómetros Começa por um Passo. Macau: Cod
Alves, Ana Cristina 2011. História das Religiões Taiwaneses (texto policopiado)
Blofeld. 1965. The Book of Change. A New Translation of the Ancient Chinese I Ching (Yi King), with detailed Instruction for its Practical Use in Divination. London: Georg Allen & Unwin LTD
Fung Yu-lan. 1983. A History of Chinese Philosophy, vol 1, Trad. de Derk Bodde. Princeton, Princeton University Press
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes. Prefácio de C. G. Jung. London: Penguin Group
張中鐸(ed) 1995《易經提要白話解》台南市:大孚
Internet
《祿神》http:// baike.baidu.com/view/24984.htm
《祿》http:// chengyu.itlearner.com/chaxun.php?q=%C2%BB&x=44&y=11