Texto Hélder Beja
Fotos A. Vale da Conceição
Costuma dizer-se de certos lugares que são o resumo de uma coisa maior. Como de Singapura, que é um resumo muito arrumadinho da Ásia – com chineses, indianos, árabes e toda a mestiçagem. Pois bem: a cara de António Conceição Júnior, 60 anos, é um resumo de Macau. Pelo menos de uma certa Macau de muitos sangues cruzados, de muitas gentes diferentes. E ao mesmo tempo, quando o encaramos nesta sala de paredes “monasticamente brancas” da casa que habita na Avenida da Amizade, temos a certeza de que este homem não podia ser de outra parte senão daqui.
António Conceição Júnior, autor de banda desenhada. Artista plástico. Criador de moda. Professor. Consultor de arte. Praticante de Aikido. Presidente do Sporting de Macau. Marido. Pai. Este homem nascido em Macau em 1951 trazia as artes e as letras no ADN. Hoje, olhar para o seu percurso é como espreitar um caleidoscópio. “Há uma carga, no sentido positivo do termo, que nunca utilizei e que é a de ter uma mãe que foi a primeira escritora de Macau.” Deolinda da Conceição, a mãe jornalista e escritora, teve uma vida cheia. De Conceição Júnior, o filho, pode dizer-se o mesmo.
António era ainda um catraio quando deixou o território para rumar a Portugal. “As minhas raízes são naturalmente de Macau, mas embora me defina com muito orgulho macaense saí muito cedo daqui, para um colégio interno, talvez porque instintivamente me tivesse sentido a asfixiar em Macau.”
Conceição Júnior fala devagar mas o raciocínio acelera e às vezes o fio da conversa extravia-se. Ele diz que foi do pai, também António Conceição, que herdou os jeitos da divagação. Pedimos-lhe que recorde e recordar significa ir muito atrás, ao colégio no Estoril onde foi colega de ilustres como o banqueiro Fernando Ulrich, na década de 60, e mais atrás ainda, quando com cinco anos viajou pela primeira vez a Portugal com os pais. Pouco depois do regresso, Deolinda da Conceição morre e é a tia, professora primária e locutora de rádio, que passa a tomar conta do pequeno Conceição.
A ida para Portugal, com uma dúzia de anos, é decisiva. “A partir daí começou uma vida de pingue-pongue, três anos cá, três anos lá. Interrompi o curso [de Belas-Artes] para vir fazer a tropa a Macau, estive cá três anos e depois voltei para acabar”, lembra. Cada vez que trocava a Ásia pelo rectângulo europeu, ou vice-versa, António Conceição Júnior sentia-se a crescer. “Quando cheguei à estabilidade de voltar a Macau em 1977 senti que mesmo aos 26 anos já sabia o que queria. Já tinha feito uma banda desenhada em Portugal, que tinha sido publicada, já tinha cumprido alguns dos meus sonhos inimagináveis.”
Mas vamos mais devagar. O curso na Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa, no qual ingressa aos 18 anos, vai também moldar a vida deste macaense. Conceição Júnior era então um rapaz de preto, sempre vestido de preto e de braços abertos. Como? Sim, de braços muito abertos. “Andava com as mãos assim [afasta os braços], para que as pessoas ficassem a saber que eu devia estar habituado a levar telas debaixo dos braços. Ideias de putos, de armar aos cágados. Isso passou-me depois do primeiro ano”, ri-se.
Imaginamos Conceição Júnior a passear-se com telas imaginárias à ilharga e a privar com a Lisboa criativa e com os dois grandes amigos que por ali fez e com quem expôs pela primeira vez em Portugal, na Galeria S. Mamede: Fernando Calhau, artista que se distinguiu na gravura, e o pintor Julião Sarmento. “Éramos na altura considerados os três melhores alunos. Depois, com a guerra [do Ultramar], cada um de nós seguiu a sua vida. Interrompi o curso para vir para Macau. Quando regressei já o Julião estava lançado”, diz Conceição Júnior.
Regresso à terra
Ninguém gosta de aperto. E António di-lo com todas as letras: regressou a Macau para cumprir o serviço militar “porque era muito mais fácil viver aqui do que viver com dificuldades em Portugal”. Regressou porque não queria ir para a guerra – e essa sentença estava praticamente destinada a todos os estudantes de Belas-Artes que não saíssem do país. “Éramos todos tidos como pessoas de mão firme, o que é verdade.” Trabalhar em minas e armadilhas era apenas um dos destinos possíveis. “Como além de tudo o mais já havia aquela consciência política de que a guerra não era minha, resolvi usar a minha condição de macaense e vir fazer a tropa aqui. Isso ajudou-me imenso, porque foi nessa altura, depois da tropa, que fui convidado para fazer um painel para o Banco Comercial de Macau.”
Era então o começo da carreira do artista. E também do professor de liceu, profissão que encetou em Macau. Em 1972, Conceição Júnior faz uma exposição de serigrafia no salão do Hotel Lisboa. “Nessa exposição o Stanley Ho comprou uma obra e tudo”, conta. António estava de volta à terra e à casa do pai, de volta aos amigos. “O meu nome de Macau é Toninho. Foram ter com o meu pai e disseram ‘doutor, queríamos organizar um jogo de futebol para o Toninho jogar’. E ele disse ‘ele não joga futebol!’ [risos]. Para grande pena do meu pai… São estes anedotários e pequenas histórias que fazem as histórias das nossas vidas.”
A história da vida de António Conceição Júnior não haveria de assentar em Macau desta vez. O artista regressa a Lisboa em 1974, termina o curso em 1975, vive em Vila Franca de Xira, dá aulas em Alverca e publica um álbum de banda desenhada, Vong Fei Hong, onde emerge todo o seu imaginário oriental e o gosto pelas artes marciais. Em 1977 torna a casa. Macau passa a ser a morada permanente.
Agente cultural
Conceição Júnior reencontra definitivamente a cidade que o viu nascer com 26 anos. Os braços – os tais que carregavam as telas – já vêm fechados, mas as ideias não. Muito rapidamente começa a ocupar cargos de política cultural. “Tinha vindo com algum cheiro. Os criativos são aqueles que sabem ouvir ou aprendem sem que lhes ensine. Não acredito que se ensine, acredito é que se pode aprender. Como professor achei sempre que o meu papel era abrir janelas, nunca ensinar no sentido de amestrar. Aprendi com o que vi.”
Garcia Leandro, o Governador de então, reconhece-lhe essas características e chama-o para fazer uma leitura sobre o panorama cultural de Macau e apresentar propostas. “Eu já conhecia a minha terra e a coisa mais lógica que me ocorreu foi dizer-lhe ‘Oiça, o que é preciso é haver infra-estruturas mínimas’. O museu, como estava, e com o devido respeito pelo Luís Gonzaga Gomes, que foi sobretudo um missionário, não chegava. Então proponho a criação de um Centro Cultural.”
Em 1978, com apenas 27 anos, torna-se director do Museu Camões, na Casa Garden, onde é hoje sede da Fundação Oriente. Conceição Júnior deposita aí as suas energias, organiza exposições, pede mais apoios. Uma década depois o museu é encerrado. Estávamos em 1988, Carlos Melancia era o Governador e decide propor a António Conceição Júnior o cargo de assessor para a Cultura e a responsabilidade de “dar os passos necessários rumo à implementação do Complexo Cultural de Macau”, nomeando-o coordenador de um gabinete com esse propósito.
O artista, nesta fase já experimentado na gestão cultural, propõe que a nova infra-estrutura seja “o ancoradouro visual de Macau, à semelhança da Ópera de Sidney”. “Era exactamente onde está agora a [estátua da] deusa Kun Iam. Tudo o que o Governo tinha de fazer era conceder a possibilidade de construir naquela zona. Estava-se também a construir o aeroporto e na altura pensava-se que Macau seria um centro de congressos. Pegando nessas vertentes, a ideia era um centro único, dotado de um hotel de mil quartos, um grande centro comercial (não havia nenhum) e a zona de centro cultural, onde haveria uma escola de artes e poderiam decorrer congressos.”
A ideia acabou por não avançar nestes moldes, para pena de Conceição Júnior, que queria a burocracia ao serviço da cultura e não o oposto. “Foi-me dito que tinha a tendência para ser megalómano e a resposta que dei foi que não se faz um Centro Cultural para menos de 50 anos. A verdade é que no que no que toca a museus o actual Centro Cultural está já a rebentar pelas costuras”, comenta.
Com estilo
Em algumas fotografias antigas, as barbas de António Conceição Júnior fazem lembrar as de Camilo Pessanha. Mas o homem que hoje é consultor artístico do Museu de Arte de Macau – e curador pontual de várias exposições – sempre cuidou bastante mais da imagem que o poeta que aos poucos (e aos muitos) se foi entregando ao ópio, enquanto construía o monumento literário que hoje conhecemos.
“A moda surge mais ou menos no tempo em que namorei e depois casei com a minha mulher.” É em Macau que António conhece Helena e se apaixona sem data de validade. “Como ela sempre foi muito bonita e elegante, achei que era a pessoa indicada para eu desenhar umas coisas. Íamos muito à Tailândia, eu comprava sedas e em 1985, ano em que o Kico [António Conceição, filho do casal] nasceu, tive a minha própria ‘gravidez’, que era uma alfaiataria com um alfaiate trazido de Portugal. Chamava-se Classic Harmony.”
A casa foi um sucesso. O alfaiate vindo da metrópole era bom mas quis passar a perna aos sócios, entre eles Conceição Júnior, e o negócio durou pouco. “Com grande tristeza minha. Só que nessa altura já eu tinha aprendido muita coisa”, diz.
Em 1990, aplica esses conhecimentos e estreia-se como criador de moda com a colecção Rota do Oriente, apresentada na inauguração da Missão de Macau em Lisboa. “Decidi fazer aquilo que eu era – todas as viagens imaginárias. Entendo que Macau é uma encruzilhada, não só de culturas, como muita gente diz, mas também um local onde se cruzam todas as ficções possíveis.” António Conceição Júnior estava já a desenhar a sua utopia pessoal.
A colecção tem sucesso e seguem-se aparições em Bruxelas, Macau, Pequim, Dalian. O criador de moda A. Cejunior, designação que adoptou, chega mesmo a receber o título de consultor honorário de moda nestas duas cidades da China Continental.
O percurso deste homem, também fluente em cantonês, continua em diferentes áreas de intervenção, com inúmeras exposições, curadorias, a direcção artística do Festival das Artes local, a representação de Macau num número significativo de eventos internacionais e noutras iniciativas listadas no seu site pessoal (www.arscives.com/25anos ).
Mil facetas
António Conceição Júnior é isto: um homem que, sereno, fala sobre como as roupas de Clint Eastwood nos westerns de Sergio Leone acabaram por influenciar inconscientemente a sua primeira colecção de moda. E um homem que no momento seguinte está de pé, com uma espada na mão – desenhada por si – e exemplifica alguns golpes.
Tanto as espadas – que desenha e continua a vender online – como o Aikido são duas paixões que, parecendo à partida munidas de uma dose de agressividade, valem sobretudo pela carga espiritual. “O Aikido é a primeira das revelações espirituais que tive e que têm vindo a suceder-se. Ele não oferece uma perspectiva meramente da técnica pela técnica, mas sim uma filosofia subjacente. Quando nós nos esvaziamos da emoção, aí estamos a praticar Aikido, ou zen ou o que se quiser. É isso que importa, não é atirar ninguém ao chão”, ressalva.
Esporadicamente Conceição Júnior, que terminou o seu percurso na função pública de Macau em 1998, ainda continua a praticar esta arte marcial. Mas os dias são hoje mais passados entre a criação artística, a família e alguns hobbies. “O meu passatempo favorito é jogar bilhar, sempre na sequência do meu pai. Ele ensinou-me, eu ensinei o meu filho e todos nós somos antónios”, ri-se.
A mulher e os filhos, António (Kico) e Beatriz, são os pilares da vida deste homem que escolheu retirar-se um pouco da cena pública no dia-a-dia – apesar de continuar a ter aparições várias em eventos artísticos – para seguir o caminho que idealizou. “Tenho alguma liberdade temporal, e o dia-a-dia em família é passado naquilo que muita gente não compreende, e que a minha mulher também não: habituei-me a desenhar a ‘ouver’ filmes. Consigo estar nos dois sítios, no filme e no desenho.” Além do desenho, Conceição Júnior tem pintado “esporadicamente” e recentemente lançou em Macau e também em Lisboa um livro de crónicas, “Conversas do Chá e do Café”.
“Vou fazendo várias coisas ao mesmo tempo, não consigo fixar-me numa. Para mim é redutor, também por razões de instinto, porque acho que tudo está ligado e é transversal”, atira. E esta pode muito bem ser a frase que lhe resume o perfil multifacetado, que ainda não acabou.
É que, além de tudo isto, Conceição Júnior deitou ainda mãos à tarefa de revitalizar o Sporting de Macau, associação desportiva que teve na direcção, nos anos 50, o seu próprio pai e que há dois anos ganhou novo fôlego. A equipa de futebol de matriz portuguesa disputa agora a terceira divisão de Macau, mas o presidente do clube não quer ficar apenas pela bola e espera ver os associados a praticarem boxe e bilhar.
Paz interior
“Sou um tipo que às vezes pode parecer difícil”, diz Conceição Júnior. Mais à frente, depois de nos falar de afectos e de como são eles “a grande argamassa para tudo”, diz que mentiria se dissesse que é 100 por cento feliz. “Eu não acredito muito na felicidade, além do amor pelos meus, acredito mais na paz interior – e essa tenho. Agora, felicidade tenho porque nunca fiz mal a ninguém, procurei sempre fazer o bem. Quando preciso de falar grosso, falo grosso e pronto.” O autor refere várias vezes a cidadania, idealiza a participação de todos nas sociedades. “Ainda continuo, aos 60 anos, a ter uma certa dose de quixotismo, de noção de cidadania, sobretudo no que toca a injustiças. A qualidade de vida também passa pela liberdade de cada cidadão poder contribuir para a cidade no tempo e na forma que melhor desejar.”
Afecto e utopia são então chaves para compreender o universo de Conceição Júnior. O grande segredo em Macau, nota, “é conseguir edificar a utopia e para isso é necessário retirarmo-nos de cena”. É o preço que se paga, avalia o artista. “Quem não aparece esquece, mas não busco nada senão o mínimo para a sobrevivência, com dignidade. Prefiro passar tranquilamente os dias.”
Com seis décadas de vida cumpridas, diz que se por um lado o corpo já não responde tanto como esperaria, por outro sente-se afortunado por manter “uma juventude de espírito e até ainda uma certa inocência” perante as coisas.
“Talvez tenha plantado algumas coisas na vida. Não árvores, mas outras coisas. As pessoas que se encarreguem de as fazer crescer”, delega António Conceição Júnior. O afecto, reforça, será sempre o melhor de todos os fertilizantes.