O Estro do Poeta

Fonte de inspiração de poetas, inúmeros poemas foram escritos ao regalo do vinho, que possui uma longa tradição na cultura Chinesa

Texto Márcia Schmaltz

Leitora da Universidade de Macau

Fonte de inspiração de poetas, inúmeros poemas foram escritos ao regalo do vinho, que possui uma longa tradição na cultura Chinesa. É no Livro dos Cantares (Shi Jing, 《诗经》), organizado por Confúcio (551-479 a.C), que é creditada a primeira referência à uva:

Há no sul plantas vergadas

Que as trepadeiras atraem.

Oxalá o nosso Príncipe frua gozo e bem-estar.

Compilado no mesmo período, Rituais de Zhou (Zhou Li, 《周礼》) aponta o cultivo de vinhedos em residências particulares e o consumo de vinho pela corte. Li Shizhen (1518— 1593), autor do Compêndio de Ervas Medicinais, observa que a designação 葡萄 (pútáo) está registada nos Anais de Han[1] e está relacionada aos ideogramas homófonos 酺醄 (pútáo), extraídos do verbete: “bebida de consumo colectivo que provoca embriaguez” (人酺饮之,则醄然而醉, rén pú yǐn zhi, táorán ér zuì).

De acordo com as anotações do Registos da História (《史记》 Shi Ji), a variedade Europeia da uva e a respectiva técnica de fermentação foram introduzidas da Ásia Central, entre 138-119 a.C., pelo explorador Chinês, Zhang Sai (张塞). Conta-se que o vinho foi tão apreciado pelo imperador que este ordenou o plantio de vinhedos em toda a volta do palácio cuja produção de vinho chegou a uma escala considerável. Entretanto, com as guerras no final da dinastia Han Oriental, no início do século III, a produção vitivinícola caiu, fazendo com que o valor do vinho subisse às alturas. Segundo os Anais dos Três Reinos (《三国志》 San Guo Zhi), um cargo de governador de província fora obtido mediante o pagamento de vinte e seis litros de vinho, uma pequena fortuna na época.

O imperador Cao Pi da dinastia Wei (220-265), também era um grande apreciador de vinho, a tal ponto que costumava registar a sua opinião sobre o néctar em seus éditos, incentivando o gosto pela bebida entre os súditos e, dessa forma, propulsionou em patamar mais elevado, a cultura do vinho na China.

Durante o reinado do imperador Li Shimin (627-649) da dinastia Tang (618-907), o território Chinês expandiu-se para além de Samarcanda e Tashkent e, assim, novas variedades de uvas e técnicas de fermentação foram introduzidas, melhorando substancialmente a coloração e o sabor do vinho. Nos primeiros vinte anos do reinado de Li Longji (712-756), o Império do Meio atinge um período de prosperidade, graças à estabilidade social e econômica, que possibilita ao vinho concorrer em popularidade ao lado dos então consagrados destilados de arroz, de trigo e de sorgo (chamados genericamente por bai jiu 白酒). Foi neste áureo tempo que nasceu o mais genial de todos os poetas chineses Li Bai (701-762), também conhecido como o maior amante do vinho.

Os grandes temas recitados pelo gênio eram compostos principalmente por montanhas, rios e pela lua, regado à inspiração proporcionado pelo vinho, presente sempre em seus poemas: canto o meu canto, bebo o meu vinho/ e desejo ver a Lua brincar na minha taça de vinho. O poeta era de tal forma apaixonado pela bebida que desejou sorver cem taças por dia, até o fim dos tempos, e até ansiou que as águas do rio se transformassem em vinho, como demonstrado na Balada de Xiangyang, traduzido por António Graça Abreu:

(…)

Cem anos são trinta e seis mil e quinhentos dias,

é preciso esvaziar cem taças por dia.

Ao longe as águas do rio Han,

verdes como cabeças de pato, como vinho fermentado.

Se este rio se transformasse em vinho,

levantar-se-iam grandes terraços com o mosto.

Então eu trocaria a minha jovem concubina

por um cavalo de mil onças de ouro

e, bêbado, a galope, cantaria “Murcham as flores da ameixoeira”.

No carro suspenderia um pote de vinho

e avançaria entre a música de pífaros e flautas.

Melhor esvaziar a taça ao luar

(…)

O poeta de espírito irrequieto, não se enquadrava aos moldes clássicos tradicionais, e preferia colocar o pé na estrada, na companhia do vinho, onde não via o tempo passar, como declamou:

Sentei-me bebendo.

Não divisei o anoitecer

até que pétalas caídas

encheram as pregas da minha cabaia de seda. (…)

Em outro poema, percebe-se o seu lado taoista, desprendido das disputas de poder e da materialidade terrena, preferindo a inspiração poética e em companhia de um bom vinho:

Sentados em esteiras, bebendo vinho,

desfrutamos a paisagem no Terraço da Fénix.

As ondas do rio arrastam o passado,

abre-se meu coração, dissipam-se as nuvens.

Em tempos remotos fénix voaram por estes lugares,

porque não regressam hoje?

O nosso imperador supera Fuxi e Huangdi[2],

sentado ao trono, ao lado dos três grandes dignitários.

Para que servem heróis e letrados?

basta o dedilhar do alaúde, a embriaguês em taças de ouro.

Quando o vento leste nos traz as flores da montanha

quem renuncia ao vinho nas taças?

Imperadores de seis dinastias jazem sob a erva,

o musgo enegrece o fundo dos palácios.

Comprar vinho, a mais digna de todas as tarefas.

Que música e canções inspirem o meu poema!

Seguindo a sua peregrinação, o poeta sobe à montanha Tai, a mais sagrada de todas as montanhas chinesas, para ver o nascer do Sol. Lá encontra meninas de jade que lhe oferecem vinho em taças de nuvens.

Mesmo arredio às instâncias de poder, Li Bai cujos poemas eram considerados capazes de comover os deuses torna-se protegido do imperador e, sem prestar concurso aos exames imperiais, foi nomeado como secretário redactor da Academia Hanlin, mas continuou as suas libações pela então capital Chang’an (atual Xi’an). Du Fu (712-770), poeta também consagrado, comentou que:

Incontáveis copos de vinho

e Li Bai compõe cem poemas.

Dorme numa taberna, no mercado de Chang’an,

quando o imperador solicita sua presença.

O poeta recusa a barca do Filho do Céu e diz:

“Que Sua Majestade saiba.

este seu humilde servidor

é o rei dos Bêbados.

Inúmeras histórias, misto de lendas e realidades, são narradas nos três anos de sua permanência na corte. Uma delas conta que o poeta entra no círculo dos “Oito Imortais do Vinho”, que reúne excêntricas personagens conhecidas por uma vasta erudição e uma inexcedível paixão pelo álcool, como descrito por Abreu (1994:18), onde um dos Imortais trocou a insígnia com a tartaruga de ouro por vinho.

Devido a uma impertinência do poeta embriagado durante um banquete imperial, Li Bai é afastado da corte e retorna a sua vida de andarilho errante, onde deixa registado o seu desdém pelo meio: Dos três mil cavaleiros sentados à sua mesa/ de quem recorda o nome de um só deles?

Contudo, o poeta trazia consigo uma pequena placa de ouro incrustada com a recomendação imperial a toda a gente, que o recebessem e o cuidassem. Em 756, Li Bai, por motivo ainda não esclarecido pelos estudiosos, apóia a malfadada rebelião de um dos filhos do imperador na disputa pela sucessão do trono, por sorte, consegue se livrar da pena capital e ser desterrado para Guizhou. No caminho, ele visita amigos e mais cântaros de vinho são esvaziados e outras dezenas de belos poemas são registados. Em 759, antes de chegar ao seu destino, recebe a notícia de sua amnistia e imediatamente toma um barco em sentido de volta à planície central.

Encontrou a sua terra devastada pela guerra, a fome e a peste dizimavam aldeias e cidades. O sexagenário Li Bai busca paz e calmaria e as encontra junto a um distante parente seu, um subprefeito de Dangtu (当涂), província de Anhui. Apesar da sua biografia oficial registar que faleceu em casa, preferimos a lenda romântica que conta que o poeta numa noite tranquila de Outono, anda de barco sozinho num lago repleto de flor de lótus. Bebendo sozinho sob o luar e olhando as montanhas ao longe, Li Bai é tomado por uma imensa melancolia e sente a tristeza de todos os homens. O poeta faz um brinde a Lua e observa o seu enorme reflexo estático como dum espelho, quase ao alcance da sua mão. Embriagado, o poeta entoa um: Li Bai de viagem por terras distantes, o velho Ji de viagem para outro mundo/ onde continuará destilando o puro néctar. Quem lhe comprará aí a aguardente? A seguir, debruça-se e tenta agarrar o disco branco sob a água, que se afasta. Então, “Li Bai desliza da barca para as águas, toma toda a Lua em seus braços e, abraçado ao luar, mergulha no lago, para sempre”, como registado na bela prosa de Abreu.

 

Referências bibliográficas

Abreu, António Graça (1994) Prefácio. In: Li Bai (1994). Poemas de Li Bai. (Tradução de António Graça de Abreu). (pp. 13-48). Macau: Instituto Cultural de Macau. 2ª edição.

Chen, Shou (dinastia Jin Ocidental) (2007) Anais dos Três Reinos [《三国志》 San Guo Zhi]. In: Clássicos da filosofia chinesa. Wuhan: Editora da Universidade Politécnica de Wuhan.

Li Bai (1994). Poemas de Li Bai. (Tradução de António Graça de Abreu). Macau: Instituto Cultural de Macau. 2ª edição.

Li, Shizhen (2008) Compêndio de Ervas Medicinais [《本草纲目》Ben cao gangmu]. Haikou: Editora Nan’hai.

O Livro dos Cantares [《诗经》Shi jing] (1979) (Tradução de Joaquim A. Guerra). Macau: Jesuítas Portugueses.

Sima, Qian (dinastia Han Ocidental) (2007) Registos da História [《史记》Shi Ji]. In: Clássicos da filosofia chinesa. Wuhan: Editora da Universidade Politécnica de Wuhan.

Zhou, Gongdan (dinastia Zhou Ocidental) (2007) Rituais de Zhou [《周礼》 Zhou Li]. In: Clássicos da filosofia chinesa. Wuhan: Editora da Universidade Politécnica de Wuhan.



[1] Livro que regista a história dos 230 anos iniciais da dinastia Han de 206 a.C-24 da Era Atual.

[2] Lendários imperadores chineses.