O direito de estudar em Macau

Chegaram da Bolívia, do Senegal, de Itália, de Moçambique e até de Portugal. Não vieram à aventura ou à procura de um emprego melhor – vieram para estudar no território. Todos na área do Direito

 

Texto Hélder Beja

Fotos Carmo Correia

 

Macau é terra de muitos advogados expatriados. O sistema jurídico local, de matriz portuguesa, faz com que todos os anos cheguem mais tribunos lusos para trabalhar no território. Mas agora a RAEM está também a assumir-se como um pólo de ensino de Direito procurado por estudantes das mais diversas proveniências.

Da Europa, de África ou da América Latina, são alunos que chegam sem saber muito sobre o território ou a Universidade de Macau, onde estudam, e que acabam por encarar a possibilidade de ficar por cá quando terminado o percurso académico. A Ásia, dizem quase todos, é o lugar para estar neste momento.

 

Frank Sousek Medrano

28 anos, Bolívia

Frank chega para falar connosco com olhos de sono e algum atraso em relação à hora marcada. A razão é simples: a sua Bolívia natal teve mais um jogo da fase de grupos da Copa América em futebol, na Argentina, e apesar do fuso horário completamente diferente o adepto não quis perder o embate.

“Vim pela primeira vez a esta parte do mundo porque o meu irmão vive na China. Quando terminei a licenciatura, em 2005, ele começou a persuadir-me a vir para cá”, começa o estudante de Direito na Universidade de Macau (UMAC). Para trás ficou a cidade de Cochabamba, a quarta maior da Bolívia, e vários anos passados nos Estados Unidos para tentar encontrar solução para o problema clínico que o impede de deslocar-se normalmente.

Frank Sousek Medrano tem a certeza de que quer permanecer na Ásia. Começou o  percurso académico na Universidade de Udabol e acabou a estudar em Macau mais ou menos por acaso. “Gostei de toda a experiência asiática e decidi que queria fazer o mestrado aqui. Concorri primeiro para Singapura, era a minha primeira opção. Infelizmente não se verificou e comecei à procura de alternativas”, conta. O Interior da China não era uma opção – “porque se por um lado tinha gostado, sentia que não estava preparado para a experiência de viver lá” – e acabou por surgir a RAEM. “Não sabia muito sobre Macau. Encontrei a UMAC e pareceu-me bem, tinha um programa decente, os custos eram imensamente competitivos quando comparados com os de Hong Kong. E acabei por decidir vir e frequentar um bom programa por metade do preço de Hong Kong.”

Chegou em 2009, para o mestrado em Direito Comparativo Europeu e Internacional. Dois anos depois, está satisfeito com a opção tomada. “Não me queixo da universidade, correspondeu às minhas expectativas, mas direi sempre que a melhor experiência está fora da escola”, continua. No território gosta de “poder encontrar pessoas com experiências culturais muito diferentes” e, devido à barreira linguística, lembra que nos primeiros tempos foi “desafiante fazer coisas simples, como ir para um certo lugar por conta própria, sem ter de depender da ajuda de outra pessoa”.

Frank Sousek Medrano vive na residência da UMAC e está prestes a terminar o mestrado. Depois, a ideia é ficar. “Devo acabar até ao final do ano mas gostaria de tentar encontrar trabalho por aqui, pelo menos por mais um ano”, conta. Porquê? “Porque aqui há oportunidades de trabalho muito melhores do que aquelas poderia ter na Bolívia.”

 

 

Marialaura Fino

26 anos, Itália

França, Inglaterra, Itália, EUA, Quénia, Uganda e é provável que nos estejamos a esquecer de algum destino. Marialaura Fino tem apenas 26 anos mas já viveu um pouco por toda a parte – e viajou por muitos mais lugares. “Depois de viver e trabalhar em África, queria voltar a estudar sobre aquele continente, mas ao mesmo tempo queria vir para a Ásia, porque conheci muitas pessoas chinesas em África e estava mesmo interessada em ver de onde tinham vindo”, diz a jovem que começou os estudos superiores na Universidade Luiss Guido Carli, em Roma, e que hoje frequenta o mestrado em Direito Comparado da UMAC.

As crescentes relações económicas e culturais entre o continente africano e a China foram o factor derradeiro para que a rota apontasse a este lado do mundo. “Pensei em vir para cá, descobrir este continente, e ao mesmo tempo estudar África a partir de uma perspectiva chinesa”, prossegue Marialuara. As portas da instituição abriram-se através do contacto com Salvatore Mancuso, professor de Direito e africanista internacionalmente reconhecido. “Ele foi muito acolhedor desde o começo. Depois, Macau, em comparação com o Interior do País, é uma porta de entrada mais suave na China. Percebe-se que viver em Macau é comparativamente mais fácil para estrangeiros. Esse não era o meu objectivo, mas aprecio isso agora que estou aqui. Tenho a oportunidade de viajar pelo Interior da China e de, ao mesmo tempo, viver num ambiente mais favorável para um europeu”, aponta.

Na sala de aula, as coisas correm bem e o interesse vai além da matéria dada. Marialaura Fino é “praticamente a única estrangeira” numa turma de 15 alunos e garante que a experiência é intensa por poder “estar em contacto com a mentalidade dos estudantes” chineses.

Se a experiência “é interessante do ponto de vista académico e também de uma perspectiva social”, o facto de a UMAC ser uma instituição recente e ainda à procura de maior reconhecimento nos rankings internacionais não melindrou a aluna. “No começo a minha ligação não era com a universidade, mas com o professor [Mancuso]. Decidi que queria estudar África e fazê-lo na China, e a partir daí o ranking da UMAC em comparação com outras não era o que mais interessava”, assegura.

O passaporte muito carimbado desta italiana – que tem aproveitado o tempo em Macau para conhecer o Sudeste Asiático e fala connosco dias depois de chegar do Laos – tanto pode ficar pela RAEM como procurar rapidamente outros destinos. Falta-lhe um ano para completar o mestrado e depois “não há plano”. “Até agora gosto muito de viver na Ásia e não excluo a possibilidade de ficar aqui, mas não tenho planos. Há também a possibilidade de voltar à Europa e continuar os meus estudos lá.” Sempre de mochila às costas.

 

 

Alioune Badara Thiam

29 anos, Senegal

Fala do seu país e do continente que o viu nascer com a responsabilidade de quem sabe que pode vir a ter um papel importante. Alioune Badara Thiam, senegalês, é actualmente estudante de doutoramento em Direito Comparado na UMAC. Tal como no caso de Marialaura Fino, o primeiro contacto com a instituição foi feito através do professor Salvatore Mancuso. Mas há uma diferença substancial na história deste africano de 29 anos: é que já estudou no Interior da China durante dois anos.

“A ideia de vir para a China surgiu-me devido à cooperação económica com África e com o meu país. Estava muito interessado em conhecer o enquadramento legal dessa cooperação, e interessado em conhecer a cultura jurídica chinesa. Foi por isso que vim para a Universidade de Wuhan fazer o mestrado”, conta. O período passado no Continente permitiu-lhe aprender mandarim e ganhar a bagagem académica suficiente para ser admitido na UMAC. “Quando estava a terminar o mestrado [na Universidade Cheikh Anta Diop, em Dakar], entrei em contacto com o professor Mancuso, que sabe muito sobre Direito africano. Percebi que podia ser muito interessante para mim estar perto do professor e continuar os meus estudos aqui”, lembra o estudante que ainda tem mais dois anos pela frente.

No território, a experiência está a ser “exactamente como esperava”. Alioune está a ter “imensas oportunidades” no plano académico. “Talvez não as tivesse se estivesse no meu país. Sei que este é o lugar certo para mim agora”, garante. O facto de ser francófono (apesar de poder falar inglês) não o tem atrapalhado. “O professor Mancuso é poliglota. Fala francês, português, inglês, italiano, chinês também. Percebi que era interessante estar perto dele a aprender com ele, tirando partido da sua experiência.”

Para o futuro, o senegalês é ambicioso. Quer usar as ferramentas adquiridas para ajudar o seu país e África. “Claro que, tendo em conta o meu background e o que estou a fazer, seria bom para mim e para as organizações legais em que me tenho centrado se voltasse para África e visse o que posso fazer para melhorar estas organizações. Mas não sei, a vida é feita de surpresas e quem sabe o que virá a seguir. Escolherei a melhor oportunidade para mim, para o meu país, para África e para o mundo”, aponta.

Alioune Badara Thiam tem particular interesse por instituições como a Organização dos Direitos de Negócios em África. “Quero focar-me nas diferentes ordens legais que funcionam nestes negócios, e depois tentar ver, de um ponto de vista comparativo, o que podemos fazer e se existe uma ponte para que possamos torná-las muito mais consistentes”, adita. Sempre com o tom responsável de quem sabe o que pode fazer.

 

 

Joana Vieira

24 anos, Portugal

É de Leiria e tem no apelido o nome de uma das praias mais famosas daquela zona centro portuguesa. Joana Vieira – como mais alguns alunos de Direito vindos de Portugal nos últimos anos – chegou de propósito para estudar em Macau. E nem sequer o fez com o pensamento na advocacia que poderia vir a exercer na RAEM.

“Tinha feito [um período de intercâmbio] Erasmus na Bélgica durante o meu último ano de curso e depois inscrevi-me para fazer um mestrado em Amesterdão, porque não queria continuar a estudar em Portugal”, conta a aluna que na altura frequentava a Universidade de Coimbra. Só que a Holanda começou a parecer-lhe muito semelhante à Bélgica e, ainda antes de tomar a decisão de rumar aos Países Baixos, apareceu Macau.

“Fui a Coimbra fazer os exames que me faltavam para acabar o curso e um professor que tinha dado aulas em Macau falou-nos dessa experiência. Tinha recebido um e-mail de um amigo de Macau a pedir alunos para o mestrado. Pensei logo que era óptimo, ainda por cima por que me disseram que haveria possibilidade de fazer projectos de investigação, teria bolsa, propinas pagas, e pensei ‘é isto’”, lembra Joana Vieira.

Assentou pé no território com apenas 21 anos, em Novembro de 2008. As coisas acabaram por não correr exactamente como esperava. Não conseguiu a bolsa de estudos mas mesmo assim decidiu permanecer na RAEM. “Falei com os meus pais e acabámos por decidir que ficaria – e digo ‘acabámos’ porque foi uma decisão conjunta, como se pode imaginar.”

Quase três anos depois, o mestrado está praticamente finalizado e o balanço é favorável. “Aqui faço uma coisa que nunca pensei possível. Em Coimbra nunca tínhamos acesso a coisas como escrever artigos, investigar. Éramos muitos. Aqui, por sermos poucos, permite-nos fazer mais: ter acesso a projectos de investigação e a ir a conferências”, explica. Joana Vieira considera que desenvolveu a “capacidade de aprendizagem” por si mesma, a noção “de estar numa biblioteca, de investigar – porque o mestrado é isso mesmo”.

Os estudantes chineses são largamente maioritários na UMAC e a portuguesa acha possível que se criem laços de amizade. Depende sempre das duas partes, defende. “Uma das minhas melhores amigas do mestrado é chinesa. Foi minha parceira em quase todas as investigações, fomos juntas a conferências à Malásia, à Índia e à Tailândia. Estejam eles abertos a nós, e nós a eles, e a relação é possível”, refere.

Joana Vieira viveu um ano na residência da UMAC e hoje partilha casa com amigas portuguesas na península. Já pensa no doutoramento mas está convicta que não quer fazê-lo em regime de bolseira, mas antes trabalhando ao mesmo tempo. “Mas ainda não sei onde. Pode ser aqui, pode ser noutro sítio qualquer. Não quero é voltar para a Europa. A Europa agora só nos transmite energia negativa. Prefiro ficar onde o mundo está a crescer, onde as coisas estão a acontecer – ainda há muito para fazer aqui.”

 

 

Ivan Caetano

29 anos, Moçambique

“Já bebi a água do Lilau.” É assim que Ivan Caetano, que trocou Maputo por Macau para fazer o mestrado, declara amor a esta terra. Chegou em 2007, beneficiando da cooperação entre a Faculdade de Direito da UMAC e a Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, na capital moçambicana. “Escolhi Macau, desde logo, porque já cá estavam colegas meus no âmbito da mesma cooperação e deram-me boas recomendações”, conta. Depois, acrescenta Caetano, porque Macau tem algo em comum com Moçambique: “O facto de terem em Portugal como elemento denominador, a língua e a cultura. E o sonho de conhecer a China também foi um factor que influenciou bastante”.

A integração na comunidade lusófona do território resultou fácil e Ivan Caetano não restringiu a vida em Macau ao mestrado em Direito Internacional. Por exemplo, é jogador do Sporting de Macau, equipa da terceira divisão do futebol local. E é toda essa envolvência que o faz não fechar a porta ao doutoramento. “Como dizia alguém, uma vez em Macau, sempre em Macau. Sinto-me bem cá, fiz grandes e bons amigos e tratam-me bem. Portanto, posso dizer que Macau é a minha segunda casa, e posso sempre voltar, ainda que seja de visita”.

Voltar só mais tarde porque, terminado o mestrado, será hora de regressar à terra. “Devo regressar à mãe África, as saudades já são tantas… Só fui lá de férias em 2008”, lembra. É na Universidade Eduardo Mondlane, onde é assistente estagiário, que conta dar um “contributo”. E está aberto a “outras actividades afins na área do Direito”.

De Macau, Ivan Caetano leva uma experiência humana rica mas está igualmente satisfeito com os frutos académicos. “No que concerne ao ensino cá, devo dizer que senti uma diferença enorme, mas tal diferença resulta do facto de estar a fazer o mestrado em língua inglesa”, elabora. Foi na RAEM que o estudante desenvolveu o idioma de Shakespeare, “entre colegas, livros, etc.”. A exigência foi maior mas o estímulo também e isso “foi positivo no sentido de que exigia outro tipo de organização e traquejo, de disciplina”.

Caetano diz que a qualidade do ensino na UMAC é boa. “Temos excelentes professores, temos uma biblioteca rica, quer física quer virtual, e temos excelentes condições e um bom ambiente. Só tenho a agradecer a oportunidade que me foi dada de poder fazer parte desta família.”