Ser solidário

O antigo dirigente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública (ATFPM) divide o tempo entre o apoio aos mais idosos e o futebol de veteranos. Aos 60 anos, Francisco Manhão, que ainda gosta de tratar o esférico por tu, quer que os pensionistas e reformados tenham uma vida melhor. A solidariedade é uma das suas bandeiras

 

Longe vão os anos em que dava enormes dores de cabeça ao então Governador Rocha Vieira e aos dirigentes políticos portugueses. Era o tempo de tratar de processos complexos, como a integração nos quadros da República (Portugal) ou a fixação do câmbio das pensões. Agora, é a vez de ajudar os aposentados, de criar condições para que os mais necessitados tenham uma vida melhor. A Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas (APOMAC) é a sua segunda casa. Aos 60 anos, orgulha-se do trabalho desenvolvido desde 2001.

Membro de uma das famílias mais numerosas da comunidade macaense, Francisco Manhão é o décimo de 12 irmãos, “seis rapazes e seis raparigas, dava para constituir uma equipa de futebol, com um suplente. Fui o único que nasceu no Hospital São Rafael”.

Viveu até aos 13 anos na avenida Coronel Mesquita, no chamado Bairro de Mong-Há. “Não tinha quase nada para brincar, a família era muito grande e vivíamos com certas dificuldades”, reconhece.

O pai, subchefe da PSP, bem se esforçava para dar as melhores condições aos filhos, mas Macau daquela altura era muito diferente, “as oportunidades eram escassas”.

Com os vizinhos (macaenses e chineses) lá se descobriam brincadeiras e jogos, que se desenrolavam na rua. “Naquele tempo podíamos jogar à bola ou largar papagaios na Coronel Mesquita, já que os carros só passavam de meia em meia hora”, lembra com um sorriso nos lábios. Foi também com os amigos que aprendeu a falar cantonense, pois na escola falar chinês “era proibido”.

Mais tarde, quando alguns dos irmãos já trabalhavam em Hong Kong, foi viver para a esquina das avenidas Coronel Mesquita com a Sidónio Pais, onde hoje está a Torre do Relógio, em frente ao supermercado “Benvindo”.

 

O primeiro ordenado: 199 patacas

 

Depois do Colégio Santa Rosa de Lima (infantil), estudou no Colégio  D. Bosco. Não aceitou a sugestão do pai de ir para o Liceu, que funcionava onde hoje está construído o Banco da China, tendo optado pelo Seminário de S. José, “não por vocação, mas porque os meus irmãos tinham estudado lá”. Em 1967 concluiu o 5º ano. “Não havia condições para continuar a estudar e ter o sétimo ano representava ir fazer a tropa a Portugal, o que não era uma boa solução por causa da guerra colonial”, conta. Até ir para o serviço militar, em 1970, o futebol, o atletismo e o voleibol foram as suas paixões.

O curso de sargento miliciano teve na altura uma grande adesão. “Foi necessário fazer dois pelotões, pois éramos 120. Como não havia lugar para todos, foi feito um sorteio. Ganhei uma vaga, mas um dos colegas pediu-me para trocar e acabei por sair”, revela.

Em Julho de 1970 entrou para os Serviços de Saúde (escriturário no Dispensário Anti-Tuberculose, que funcionava no Tap Seac) a ganhar 199 patacas, “quantia que entregou à mãe”. Em 1971, depois de uma curta passagem de seis-sete meses pelos Correios, regressou à Saúde, onde se manteve até 1984, altura em que ingressou no Gabinete para os Assuntos de Trabalho (GAT). Em 1997, num momento em que o futuro de Macau ainda era uma incógnita, decidiu aposentar-se. Embora tenha adquirido uma casa em Portugal, que já vendeu, nunca pensou deixar a sua terra.

 

As lutas da ATFPM

 

Em 1992, o amigo Jorge Fão (moraram durante anos no mesmo prédio) convidou-o para integrar a lista de dirigentes da Associação dos Trabalhadores da Função Pública. “Nunca tinha andado metido em coisa alguma, mas com a sua determinação e coragem convenceu-me a aceitar”, confidencia.

Durante quatro anos, “os dois mandatos mais difíceis da vida da Função Pública”, foram várias as lutas da ATFPM. “Estava em causa o nosso futuro. Era o momento de discutir o chamado processo de integração e de fixar o câmbio das pensões. Dois processos que levaram a duras negociações com o Governo de Macau, o presidente Mário Soares e a então ministra Ferreira Leite. Rocha Vieira queria que o câmbio das pensões fosse o do dia, o que não foi aceite, pois isso não dava segurança”, nota, frisando que a fixação do câmbio foi uma excelente vitória. “A pataca valia nessa altura pouco mais de 18 escudos e o câmbio acabou por ser estipulado a 21,848 escudos. Em nenhuma província ultramarina houve pensões, o que foi muito importante para os nossos pensionistas”, acentua.

O antigo vice-presidente da Associações dos Trabalhadores da Função Pública não tem dúvidas que o processo de integração foi um erro. “A opção tinha que ser tomada em 1994 e em 1995 as pessoas decidiam se regressavam ou não a Portugal. A situação em Macau era de uma certa incógnita, pois havia muitas interrogações. O melhor caminho era ver o que se passava em Hong Kong e decidir apenas em 1998. Muitas das pessoas que optaram pela integração nos quadros da República estão hoje muito arrependidas”, repara, sublinhando que muitas das carreiras de Macau “não tinham correspondência directa em Portugal, os salários eram inferiores, as pessoas tinham que pagar IRS, etc.”.

O processo de integração levou muitas pessoas a abandonar Macau, “o que acabou por fragilizar a posição da comunidade portuguesa. Se as coisas tivessem sido diferentes, o número dos quadros portugueses a trabalhar em Macau seria agora mais elevado”, sustenta Francisco Manhão, que não esquece as “guerras” que a ATFPM travou com a Administração portuguesa.

Os trabalhadores vieram para a rua várias vezes. O antigo dirigente recorda as manifestações organizadas pela ATFPM, que levaram centenas de pessoas do Largo do Senado até ao Palácio do Governo. “Em 1993 vivemos um Verão muito quente”, recorda, quase vinte anos depois. Em causa estava uma proposta apresentada pelo deputado Alberto Noronha, que era apoiado pela ATFPM, visando a actualização das carreiras da Função Pública. O facto de a então presidente da Assembleia Legislativa, Anabela Ritchie, entre outros deputados, não ter aderido à iniciativa originou protestos vigorosos.

Reforma em 24 horas

 

Em 1995, Jorge Fão e Francisco Manhão deixam as lutas sindicais. O antigo deputado aposentou-se e é substituído na liderança da Associação dos Trabalhadores da Função Pública por Virgílio Rosa.

O então chefe de Sector da Inspecção de Trabalho começa a definir o futuro. “A transição de Hong Kong tinha sido pacífica, o que tranquilizou a população de Macau. A continuidade na DSTE estava condenada, já que não domino a língua chinesa. Estar dependente de alguém para saber o que está escrito nos documentos é mau para qualquer um”, comenta. Em 1997 avança com o pedido de aposentação, “o requerimento foi deferido em 24 horas. Deu-me um grande gozo”.

Dois anos após a transferência de administração em conversa com o seu amigo de longa data, Jorge Fão, surgiu a ideia de criar uma nova associação. Objectivo: auxiliar os reformados e os mais necessitados. Em poucos meses nasceu a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas (APOMAC).

Os contactos com a Caixa Geral de Aposentações (CGA), as transferências das pensões para Macau e a renovação da prova de vida eram assuntos que criavam a muitos aposentados, sobretudo os de etnia chinesa, inúmeros problemas. “Havia muito desconhecimento de todo o processo e o receio de o pagamento das pensões ser suspenso, o que chegou a acontecer com os subsídios de funeral e de morte. Era, portanto, necessário criar uma estrutura para apoiar os reformados”, diz o presidente da APOMAC.

“Se a associação não existisse muitos pensionistas teriam tido dificuldades em continuar a receber as pensões. Em Janeiro de 2003, a situação agravou-se, pois um problema técnico inviabilizou o seu pagamento. Fui ter, primeiro, com o Banco Comercial de Macau e, depois, com o Banco Nacional Ultramarino, para encontrar uma saída, pois muitos precisavam do dinheiro para o dia-a-dia. Os bancos foram muito compreensivos e avançaram com o dinheiro”, relata com satisfação.

O presidente da APOMAC deslocou-se a Portugal para abordar a questão com os responsáveis da Caixa Geral de Aposentações. “Em Macau, por exemplo, não há nenhum serviço que passe o documento comprovativo de que certa pessoa vive ou viveu em comunhão de mesa e habitação com o falecido. A CGD acabou por nunca exigir esse documento”, nota.

Clínica é a nossa bandeira

 

A sede da APOMAC é um verdadeiro centro de convívio e de encontro dos aposentados, familiares e amigos. Na cantina podem ser apreciados pratos da gastronomia macaense, portuguesa e chinesa, que são confeccionados por Vitória Baptista, “uma excelente chefe de cozinha, que serve 50 mil refeições por ano”.

O presidente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas não esconde que a clínica que funciona no primeiro andar do edifício, localizado na avenida Sidónio Pais, é o grande projecto da associação. “Prestar assistência médica, a baixos custos, era uma necessidade e isso tem sido possível na nossa clínica, que está dotada de equipamentos modernos e de pessoal com formação”, diz, sublinhando que a fisioterapeuta, licenciada em Coimbra, acaba de concluir o doutoramento em Hong Kong. “A reabilitação física é essencial para pessoas de idade avançada. Com 50 patacas disponibilizamos consulta e tratamento, as consultas de medicina são gratuitas e em caso de haver medicamentos cobramos apenas 20 patacas”, afirma.

A clínica representa um elevado investimento para a APOMAC, “um milhão de patacas por ano”. Francisco Manhão tem um sonho: ampliar as instalações da associação. “Se a divisão farmacêutica dos Serviços de Saúde for transferida para outro local, podemos pensar numa boa ampliação. Temos 1300 associados e fomos obrigados a suspender a admissão de sócios por falta de espaço”, adianta.

A associação dispõe ainda de duas viaturas para transportar os associados aos centros de saúde e ao hospital e uma outra adaptada para os que andam em cadeira de rodas. Livros, revistas e jornais (portugueses, ingleses e chineses) e acesso à Internet estão à disposição dos sócios, que regularmente aproveitam a sede-refeitório para realizar almoços, jantares, festas de aniversário e de convívio com a família.

 

Fundo de Segurança Social reestruturado

 

O presidente da APOMAC considera que o Governo tem feito um esforço em melhorar o apoio aos reformados e pensionistas, mas adverte que há ainda um longo caminho a percorrer. “Os subsídios e apoios ainda são curtos, não são suficientes, tendo em linha de conta o actual nível de vida em Macau”, observa.

“O Governo não pode fazer tudo de uma vez, mas está apostado em dar mais meios aos idosos”, acrescenta, apontando a necessidade de o Fundo de Segurança Social ser reestruturado. “O modo de funcionamento e… o atendimento devem mudar, temos que abolir os métodos que são muito burocráticos”.

Francisco Manhão defende também a criação de mais centros-lares, pois os aposentados “não podem estar isolados, permanecer em casa sozinhos”.

Relativamente à nova lei do regime de segurança social entende que o valor das pensões a atribuir (1700 patacas) “é reduzido, o mais adequado são 3000 patacas”. No que concerne aos descontos, preconiza que não se devia fixar em 15 anos o tempo de pagamentos, “quem quiser pagar mais anos deve ter essa possibilidade”.

 

O futebol dos veteranos

 

A Associação de Veteranos de Macau é também liderada por Francisco Manhão. Tudo começou em 1999 e desde então o Torneio da Soberania é a principal aposta. “Não estava à espera que as coisas ganhassem uma dimensão tão grande, mas estou muito satisfeito com o que tem sido feito”, admite, destacando o apoio do anterior Chefe do Executivo (Edmund Ho), “que fez sempre questão de estar na final”.

O intercâmbio com as associações congéneres de Hong Kong e de Taiwan e a presença no torneio de Santeirim (Santarém e Almeirim) são outras participações que destaca. Por concretizar está a deslocação a Macau de uma equipa de veteranos de um dos grandes clubes portugueses. “O Marítimo já veio várias vezes, a Académica com Toni também já cá esteve, mas falta trazer grandes nomes de outros tempos. Vamos ver se será possível ter no próximo torneio o Porto ou o Benfica”, perspectiva Francisco Manhão, que aos 15 anos já era campeão de Macau da Bolinha (a “bolinha” é uma modalidade de futebol em que cada equipa joga com sete, em vez de onze, jogadores) e que continua a revelar grandes habilidade para o futebol.

De forma tranquila, reparte o seu tempo entre a APOMAC e a Associação de Veteranos. E é com orgulho que olha para os primeiros dez anos da RAEM. “Para um estrangeiro, que nasceu em Macau, foi uma década muito positiva. A um Governo novo não se pode exigir muito. O caso Ao Man Long manchou um bocado a RAEM, mas não se deve estar sempre a falar disso. É preciso olhar para a frente e procurar fazer melhor nos próximos anos. O problema da corrupção atinge todo o Mundo, basta olhar para a China, onde altos funcionários têm sido condenados. Em Macau fez-se justiça. Agora, devemos perder tempo com assuntos que são mais úteis para a RAEM”.

E, a terminar, uma certeza: “estou convicto que Fernando Chui Sai On, como já sucedeu com Edmund Ho, transmite confiança para o futuro”.